4. DAS DENÚNCIAS AO RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DO TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL PELO GOVERNO FHC EM 1995
As décadas de 60 e 70 produziram a primeira leva de denúncias de trabalho escravo contemporâneo no Brasil, e coincidiram com um período de “crescimento econômico” e com a expansão da fronteira agrícola sul por Mato Grosso e Pará (SUTTON, 1994).
Destaca-se como um dos percussores das denúncias de formas contemporâneas de escravidão no Brasil, Dom Pedro Casaldáliga em 1971, defensor dos direitos humanos na Amazônia. Duas fontes de dados sobre o trabalho escravo constituem a principal forma de conhecimento e mensuração deste fenômeno no Brasil: a CPT e o MTE. A CPT foi impulsionadora do processo, pois desde a década de 1980 registra as denúncias de trabalho escravo, ignoradas pelo Estado até 1995, quando o MTE passou a inspecionar os casos denunciados (GIRARDI et al, 2014:6).
As tentativas de se fornecer dados significativos sobre o número de trabalhadores afetados pelo trabalho forçado no Brasil por muito tempo esbarraram em muitas dificuldades. Muitas vezes os casos só eram relatados se os trabalhadores conseguissem fugir, e depois, se sentir suficientemente confiantes para alertar as autoridades ou os organismos não-governamentais. Na verdade, os casos que chegaram a serem registrados representam uma pequena porção, ou seja, uma pequena amostra de um fenômeno muito mais generalizado.
Segundo a pesquisa realizada por Alison Sutton (1994):
Em abril de 1992, a CPI da Violência no Campo informou que 5,2 milhões de trabalhadores rurais (homens, mulheres e crianças) ganhavam menos que o salário mínimo legal, e que 1,3 milhões não recebiam salário algum. A CPI não forneceu estimativas do número de trabalhadores submetidos ao sistema de escravidão por dívida e do trabalho forçado. O único período em que houve monitoramento oficial sistemático, como publicação de dados, foi de 1985 a 1986, quando o recém-criado Ministério da Reforma Agrária e desenvolvimento (Mirad) estudou queixas de violência no campo (...). Segundo o arquivo de José de Souza Martins, professor da Universidade de São Paulo, 173 fazendas foram denunciadas entre 1970 e 1984 pelo uso de trabalho forçado, com 43.641 vítimas; entre 1985 e 1990, 75 propriedades, com 9.779 vítimas. Em julho de 1992, o professor Martins estimava que a cada ano poderia haver 60 mil pessoas em regime de trabalho forçado em cerca de 300 fazendas do país – sem levar em conta outros ramos de atividade, como a produção de carvão e a mineração (SUTTON, 1994: 23-24).
Muitas situações sequer chegaram a serem devidamente investigadas. Em 1991, a Procuradoria Geral da República colheu o depoimento de um ex-funcionário, segundo o qual um deputado estadual de Marabá, da família Mutran, temida na região, contratou pistoleiros para matar trabalhadoras como forma de não arcar com os salários devidos dos trabalhadores:
As pessoas que iam ser mortas estavam cortando castanha na safra para receber dinheiro. Na primeira vez, as pessoas receberam lá na sede e, quando vinham saindo animadas, pela porteira, para pegar um carro para ir para Marabá, foram recebidas por chumbo por pistoleiros. Aconteceu umas três ou quatro vezes essa arrumação... Ele descreveu a maneira como os pistoleiros foram contratados: não era para derrubar mata nem nada, era para fazer a execução dos trabalhadores. Mesmo os que tiravam saldo morriam. Não tem saldo lá dentro. Até mesmo hoje se morre. Se tiver saldo de 40 ou 50 mil, morre. O ex-funcionário também deu detalhes sobre um possível cemitério clandestino situado em uma das fazendas de propriedade da família Mutran, onde os trabalhadores eram enterrados: “eles queimam e lá mesmo enterram”. Uma batida policial posterior não conseguiu localizar o cemitério. (SUTTON, 1994:55)
Expostos aos infortúnios de todo tipo de violência, seja pela natureza da própria condição de dominação imposta aos trabalhadores, seja pela insurgência contra as abusivas agressões, ocupava uma posição de extrema desigualdade a força dos colonos no enfrentamento de seus problemas. Ela (violência) tem uma natureza estrutural e se inscreve como uma face cultural da política brasileira, em especial, mas não exclusivamente, no meio rural.
Dessa forma, é possível afirmar que as práticas de violência persistem, reproduzem-se e, em algumas situações particulares, intensificam-se, alimentada por determinadas condutas institucionais e por um determinado padrão de expressão de interesses ligado à propriedade da terra (MEDEIROS, 1996:4). Ricardo Rezende Figueira (2004), ao tratar do medo (atrelado a violência) que perseguia os trabalhadores escravos, ilustra:
Uma mulher de Bacabal (MA), dona Pureza Lopes, classificou as fazendas segundo a gravidade da violência, distinguindo-as entre “mansas” e “bravas” . O medo também variou, alcançando a situação de “pavor”, quando a fazenda era “brava”. (...) Os funcionários antigos da fazenda contavam de trabalhadores que cavaram a sua própria sepultura. Depois eles (os funcionários da fazenda) os mataram e enterraram no fundo de uma serraria, debaixo de um pé de cajú... (FIGUEIRA, 2004: 171)
Diante desse cenário de violência, tanto a institucional quanto a promovida pelo particular consentida pelo Estado, a resistência dos colonos reduzia-se ao espaço privado da família e da rede de parentesco, dos laços de conterraneidade, das relações pessoais e coletivas de vizinhanças e da coesão confessional das agremiações religiosas (HÉBETTE, 2002: 209).
Evidente que essas relações que se formaram, mostraram-se muito importantes, no isolamento da fronteira, para uma superação parcial das dificuldades e, em particular, para a fixação e a consolidação da posse da terra e para a elaboração de projetos e estratégias de âmbito familiar e local (HÉBBETE; ALVES; QUINTELA, 1996).
Todavia, obviamente, todas essas articulações não foram suficientes para a solução de problemas de natureza mais técnica, ou mesmo de natureza jurídica, como os do respeito dos direitos humanos e dos direitos econômicos e muito menos para solução de problemas com componentes de políticas públicas, assim como para a elaboração de projetos coletivo de maior alcance.
Nesse contexto, se firma como espaço “privado de solidariedade primárias, tradicional no campo” a participação da igreja católica na “possibilidade de colaborar para a construção de um espaço semi público de resistência e elaboração de projetos coletivos em pequena escala, alternativo ao espaço da organização de classe” (HÉBBETE, 2002: 209)17.
Como no período da ditadura o rechaço à luta de classe foi intenso, em que as lideranças tinham sido silenciadas, amordaçadas, não por acaso os movimentos religiosos se tornaram os porta-vozes das denúncias dos abusos cometidos contra os trabalhadores, e não foram poucos os casos de insurgência contra o regime (não por se filiarem a uma proposta “comunista”, mas por declararem a favor da emancipação dos camponeses) em que os líderes religiosos se tornaram também alvo de torturas.
Como que numa contradição da vida, chegou um tempo em que os líderes religiosos tiveram que denunciar não apenas os abusos contra os trabalhadores, mas os abusos sofridos por si próprios. É o que relata Pereira (2015):
(...) qualquer pessoa poderia ser suspeita de ligação com os guerrilheiros. Nem os padres e as freiras que desenvolviam naquelas comunidades rurais os trabalhos pastorais da Igreja Católica foram poupados do sistema de vigilância e repressão do Exército, como aconteceu com os padres franceses Roberto de Valicourt e Humberto Rialland, da Congregação dos Missionários Oblatos de Maria Imaculada que haviam chegado a São João do Araguaia, no início da década de 1970, e a irmã Maria das Graças, dominicana de Monteil, que também morava naquela localidade. Roberto de Valicourt e a irmã Maria das Graças foram presos e torturados, em 01/06/1972, suspeitos de serem guerrilheiros ligados ao PC do B, soltos muitas horas depois por meio da interferência do bispo da Prelazia de Marabá, Dom Estevão Cardoso de Avelar. Roberto de Valicourt conta que ele e Irmã Maria das Graças foram presos e torturados por soldados do Exército depois de ter celebrado uma missa no dia de Corpus Christi, em São Domingos do Araguaia. (PEREIRA 2015:110)
Entre as empresas que se instalaram aqui, com todas as regalias já relatadas no item anterior desse capítulo, a Volkswagen ganhou notoriedade. Em 1973 a empresa “adquiriu” 140.000 (cento e quarenta mil) hectares de terra em Santana do Araguaia, no Sul do estado do Pará. Importou para a sua propriedade o que havia de mais moderno em termos de tecnologia na atividade de exploração agrícola. As razões que motivaram a instalação já são conhecidas: incentivos fiscais18 concedidos pelo governo para promover o “desenvolvimento regional” através da Sudam e com o apoio do banco estatal Basa.
O projeto de exploração agrícola da Companhia Vale do Rio Cristalino19 (nome da fazenda da Volkswagen) foi aprovado sem muitas dificuldades, uma vez que além da influência da multinacional, sua localização – proximidade da Belém-Brasília -, e pela qualidade das terras, os municípios do Sul do Pará, Conceição do Araguaia e Santana do Araguaia, atraíram muitas empresas e, entre 1966 e 1975, a maior parte dos projetos aprovados até então para a Amazônia pela Sudam foram para esta região. (FIGUEIRA, apud BUCLET, 2006).
A grande pomposidade ostentada pelo projeto contrasta com as mais primitivas formas de exploração humana. No início dos anos 1980, começaram a surgir testemunhos da outra realidade da Vale do Rio Cristalino. Pouco a pouco, apareceu o incrível paradoxo da convivência das mais modernas tecnologias agrícolas e de gestão do trabalho com formas arcaicas de exploração da mão de obra.
Uma das empresas mais estimada no país, dispondo do total apoio das autoridades públicas brasileiras, envolvida em um empreendimento lucrativo e cheio de promessas, “numa zona já consagrada, como vocacionalmente ditada para implantação de um grande centro criatório” (SUDAM apud BUCLET, 2006), não conseguiu evitar a exploração bárbara dos peões, aqueles empregados sob coerção para executar trabalhos de baixa qualificação.
A partir de 1980, muitas denúncias vieram à tona, coincidentemente paralelo ao regime de redemocratização que passava o país. Em 1983, vários relatos envolvendo a Vale do Rio Cristalino chegaram à CPT, reforçando, inclusive situações de violações pretéritas.
De acordo com os registros de Pe. Ricardo Rezende Figueira, neste ano o jornal O Globo, do Rio de Janeiro, finalmente publicou uma notícia pequena sobre essas denúncias de trabalho escravo na fazenda da Volkswagen. Esta notícia ganhou notoriedade na imprensa internacional, que começou a solicitar informações mais detalhadas sobre estes acontecimentos.
Este foi o ponto inicial de uma série de ações articuladas entre o nível local (a CPT, o Sindicato de Trabalhadores Rurais, a diocese), estadual (audiências com o governador), federal (intervenção de deputados federais) e internacional (imprensa, ONGs, sindicatos e partidos políticos) (BUCLET, 2006:7).
Apesar dos esforços conjuntos para extirpar essa prática violadora da dignidade dos trabalhadores, o reconhecimento do estado brasileiro da existência de escravidão contemporânea em seu território não se deu de forma a rápida e a contento.
Foram necessários diversos constrangimentos promovidos por denúncias, articulações de organismos internacionais como a OIT, Ongs, movimentos sociais e vários outros grupos da sociedade civil organizada, para que após a submissão vexatória do país à corte interamericana de Direitos Humanos, houvesse o reconhecimento da prática pelo governo brasileiro.
O caso que deu impulso a esse vexame internacional foi o de José Pereira. Em setembro de 1989, contando 17 anos e um colega de trabalho, que atendia pela alcunha de “Paraná” ao executarem uma fuga entraram em confronto com pistoleiros contratados pelos proprietários da fazenda Espírito Santo, localizada em Sapucaia, Sul do Pará.
O embate resultou na morte de Paraná e graves lesões a José Pereira. Este conseguiu chegar até à fazenda mais próxima, recebeu ajuda e foi encaminhado a um hospital. Já recuperado, ele denunciou o caso à Polícia Federal, e após a intervenção na fazenda, houve o resgate de 60 trabalhadores que se encontravam na mesma situação, em regime de escravidão na fazenda Espírito Santo.
Por se tratar de um caso exemplar de omissão do Estado Brasileiro em cumprir com suas obrigações de proteção dos direitos humanos, de proteção judicial e de segurança no trabalho, a Comissão Pastoral da Terra (CPT)3, bem como as organizações não-governamentais Center for Justice andInternational Law (CEJIL –Centro pela Justiça e o Direito Internacional) e Human Rights Watchapresentaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 22/02/1994. (COSTA, 2010:29)
Em 1992, o representante do Governo Brasileiro negou a existência do trabalho escravo no país, argumentando que os casos relatados não passavam de apenas violações da legislação trabalhista. Em 1993, a Central Latino-americana de Trabalhadores -CLAT apresentou uma reclamação contra o Brasil, baseada no Artigo 24 da Constituição da OIT, alegando a inobservância das convenções 29 e 105 sobre o trabalho forçado.
O Conselho de Administração da OIT recomendou ao Governo Brasileiro que tomasse uma série de medidas a respeito. Na petição apresentada à Comissão interamericana de Direitos Humanos- CIDH, em 16/12/1994, alegou-se que, nos fatos relacionados a José Pereira, haviam sido violados os artigos I e XXV da Declaração Americana sobre Direitos e Obrigações do Homem que estabelecem: o direito à vida, à liberdade, à segurança e integridade pessoal e o direito à proteção contra detenção arbitrária. O Estado Brasileiro também foi acusado de ter violado os artigos 6, 8 e 25 da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, os quais referem-se à proibição de escravidão e servidão; garantias judiciais e proteção judicial.
A partir de 1995 a atitude do Governo começou a mudar, ao reconhecer oficialmente a existência de trabalho escravo no país. Todavia, o desfecho dessa história ocorreu apenas 10 anos depois, em 2003 quando, após a tramitação, o Governo Brasileiro reconheceu sua responsabilidade diante do caso de José Pereira, prontificando-se a assinar um Acordo de Solução Amistosa. A oferta foi aceita pelas peticionárias.
Representado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, o Estado Brasileiro e as peticionárias, representadas pela CEJIL- Brasil e pela CPT, assinaram o Acordo de Solução Amistosa em 18/09/2003, em Brasília/DF, na solenidade de criação da CONATRAE - Comissão Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo.
Convém destacar, portanto que, no Brasil, a categoria de “trabalho escravo” não é apenas resultado de uma discussão baseada em parâmetros históricos, filosóficos e jurídicos. Ela derivou principalmente de motivações sociais e políticas que emergiram a partir de pressões de grupos de defesa dos direitos humanos, como a Comissão Pastoral da Terra, e de sindicatos, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais (CONTAG) (FIGUEIRA, 2004: 42-43).
O “caso Zé Pereira” foi o propulsor da discussão entre os grupos que lidavam com um problema sobre o qual não havia um consenso acerca da sua definição, dificultando o enquadramento legal de situações que violavam diferentes aspectos dos direitos humanos.
A “escravidão” tornou-se, portanto, uma categoria política, parte de um campo de luta, utilizada para designar todo tipo de trabalho não-livre, de exploração exacerbada e de desigualdade entre os homens (ESTERCI apud FIGUEIRA, 2004: 44). É a partir da categoria “trabalho escravo” que o trabalho forçado é tornado crime na legislação brasileira e combatido, tanto por grupos organizados da sociedade civil, quanto por empresas brasileiras. A ampliação gradual da sua definição jurídica ocorreu de forma paralela às ações de grupos de defesa dos direitos humanos.