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Política e religião no Brasil: uma relação estreita

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Agenda 09/08/2021 às 12:14

Trata-se de trabalho que, por meio de uma metodologia exploratória da revisão bibliográfica, teve como objetivo demonstrar a existência de uma interferência política na atualidade das religiões no Brasil.

1.Introdução

Uma frase comum de se ouvir atualmente é: “tudo é política”.

Concordamos amplamente com essa afirmativa, pois praticamente todas nossas escolhas representam uma opção política. Optar por ser carnívoro, vegetariano ou vegano tem um viés político; optar por um parto cesárea, humanizado ou natural também tem um viés político; escolher uma pedagogia tradicional, construtivista, montessoriana ou waldorf para a escola dos nossos filhos tem um viés político, até mesmo porque, como afirma Paulo Freire, temos que reconhecer que a educação é ideológica[1]; até no futebol existe política, como aconteceu claramente no caso da democracia corintiana[2]. Enfim, a política interfere, direta ou indiretamente, em todas as nossas escolhas, sendo por essa razão que Aristóteles afirmava que o homem é um animal político pela sua própria natureza[3].

Com a religião não é diferente, nossa opção política interfere na nossa religião e a nossa religião interfere na nossa opção política e sempre foi assim, pois, tal como vimos nas nossas aulas de Ciência Política da Faculdade Prominas, na Mesopotâmia os imperadores eram considerados enviados dos deuses e no Egito os imperadores eram os próprios deuses[4]. Além disso, Paulo Freire menciona a igreja como um dos locais onde o cidadão brasileiro tem ingerência para ganhar mais responsabilidade social e política[5].

Assim, o presente trabalho visa, por meio de uma metodologia exploratória com o estudo de autores especializados, bem como da legislação em vigor, analisar a influência da religião no contexto político brasileiro.


2. Histórico

Hans Küng, em estudo sobre as religiões no mundo, menciona o fato de que foi encontrado na Austrália um esqueleto que possivelmente teria mais de 30.000 anos e estava todo coberto de ocre. Acontece que a referida espécie de argila representa um sinal de vida após a morte, o que leva a crer que o referido corpo foi enterrado por meio de um ritual religioso[6].

Além disso, há diversos registros das relações entre o Estado e a Igreja desde a antiguidade, existindo vários relatos da existência de teocracias com uma adoração dos ídolos[7]. Por exemplo, no Estado Oriental até o auge da Grécia antiga há relatos de monarquias teocráticas, com os reis sendo venerados como deuses tal como era comum no Estado Romano.

Só em seguida, na idade média, surgiram as estruturas próprias do Poder Público e do Poder Religioso, porém continuou existindo mútua interferência[8].  

            Avançando na história, surgiu na idade moderna a estadualização das religiões, com os Estados adotando religiões oficiais e criando leis com cunho religioso, de modo que apenas na Idade Contemporânea surgiram os fundamentos do Estado laico com a devida separação entre Estado e Igreja, porém existindo diferenças entre os estados[9].

Em relação especificamente à Igreja Católica, existe o chamado Direito Canônico, denominação que surgiu no século VIII e que teve o seu ápice com promulgação do primeiro Código Canônico no ano de 1917[10], que tinha como propósito “elaborar um corpo de doutrina no qual fosse reduzida a uma unidade todo o sistema do direito da igreja”[11]. Outrossim, o Direito Canônico ganhou verdadeiramente força no decorrer do século passado, consolidando-se com o atual Código Canônico de 1983.

Assim, conforme se percebe, a relação entre Estado, Política e Religião é extremamente antiga, a dúvida é: ela existe até a atualidade? Ela existe no Brasil? Há, de fato, uma estreita relação entre política e a religião no Brasil??


3.Da Relação Política entre Estado e Religião.

Incialmente, importante frisar não haver como falar da relação da Política com a Religião no Brasil sem falar da realidade Portuguesa, tendo em vista a colonização brasileira por Portugal e a presença, durante anos, da Família Real Portuguesa no Brasil[12] praticando seus cultos e disseminando sua cultura.

Assim, sobre nossa colonizadora Portugal, apesar do referido país ser atualmente também um Estado laico, o mesmo adotou durante vários séculos a religião Católica[13], sempre possuindo uma forte relação com a referida religião, tanto é assim que no ano de 1179 o Papa Alexandre III foi uma das primeiras autoridades mundiais a reconhecer a independência portuguesa, designando na bula manifestis probatum D.Afonso Henriques como monarca. Além disso, já houve um papa Português: João XXI[14], sendo a porcentagem de católicos em Portugal o equivalente a 88,7% da população.[15]

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No mais, a religião Evangélica chegou a ter um grande crescimento em Portugal, muito por influência de uma busca de expansão da Igreja Universal, o que fez Portugal chegar a ser o local fora do Brasil onde a Igreja Universal mais teve templos[16], porém nos últimos anos muitas igrejas evangélicas estão encerrando duas atividades em terras lusitanas, possivelmente em virtude da volta de imigrantes, inclusive brasileiros, para os seus países de origem,[17] bem como de escândalos envolvendo pastores evangélicos em solo lusitano.[18]

Desse modo, é possível que, em um primeiro momento, Portugal tenha influenciado o Brasil no que tange a Religião Católica e, em um segundo momento, Brasil tenha influenciado Portugal no que diz respeito a Religião Evangélica. Assim, passemos a analisar a situação brasileira.

A Constituição brasileira de 1824 trazia a Religião Católica como religião oficial. Entretanto, no ano de 1890 veio o decreto 119-A, que passou a prever ser o Brasil um Estado Laico, o que foi mantido pela Constituição de 1891, permanecendo a referia situação até os dias atuais[19].

Antes disso, inclusive, Pernambuco, no ano de 1817, passou pela Revolução Pernambucana, que foi um movimento separatista que fez Pernambuco se tornar uma República Independente por 75 dias e o Governo instaurado pela dita revolução decretou que Pernambuco seria um Estado Laico em prol da liberdade religiosa[20]. Isso mesmo: o Brasil só virou um Estado Laico em 1890, porém em 1817 já tinha sido decretada a laicidade em Pernambuco.

Enfim, Pernambuco sempre foi uma terra de vanguarda, demonstrando em 1817 ser mais avançada até que o Brasil atual, onde existe uma bancada no Congresso Nacional para uma religião específica e onde o presidente da República diz que vai se utilizar de critérios religiosos para escolher o próximo ministro do STF, conforme será visto a seguir.

No mais, apesar de laico, a influência política da Religião Católica no Brasil ainda é muito forte até os dias atuais, o que pode ser verificado pelos inúmeros feriados religiosos fazendo referência especificamente à Igreja Católica e deixando de lado as outras religiões presentes no território brasileiro, inclusive religiões tipicamente brasileiras, como a Umbanda e o Santo Daime[21].

Dentro dessa realidade, o último censo do IBGE contatou que 64,6% da população brasileira é adepta da Religião Católica.[22] É fato que essa realidade não é mais atual, pois o último censo foi realizado em 2010, ou seja, há mais de 10 de anos e o IBGE deveria ter realizado um novo Censo em 2020, porém o mesmo foi adiado por causa da pandemia do Novo Coronavírus[23].  De qualquer forma, recente pesquisa do DATAFOLHA constatou que 50% da população brasileira ainda se declara adepta da religião católica.[24]

Além da Religião Católica, no Brasil boa parte da população adota a religião Evangélica, que, conforme o Censo realizado em 2010, já ultrapassava 22,2%[25] dos brasileiros, o que também gera grande influência política no Brasil. Ademais, a pesquisa acima mencionada do DATAFOLHA também constatou que o número de evangélicos no Brasil já é de 31%,[26] sendo composta boa parte (44%) de ex-católicos.[27]

O Crescimento da religião evangélica no Brasil acaba gerando efeitos políticos, existindo, tal como dito alhures, até mesmo na Câmara Federal do Brasil uma bancada de deputados autointitulada de Bancada Evangélica[28], sendo atualmente a segunda maior bancada do Congresso Nacional Brasileiro[29].

A presença de grupos evangélicos no Brasil ganhou força logo após o fim da ditadura militar na década de 80, com os evangélicos enxergando na política um mecanismo para fulminar projetos de leis contrários aos seus preceitos, o que fez a Igreja Assembleia de Deus lançar boatos sobre aprovação de temas polêmicos como casamento entre pessoas do mesmo sexo, liberalização das drogas e a possibilidade da realização de aborto[30]. A Igreja Universal do Reino de Deus, por outro lado, procurou lançar candidaturas políticas de membros da igreja, estimulando os fiéis a votarem nos mesmos, inclusive organizando o alistamento dos fiéis que já completaram 16 anos[31].

Entretanto, apesar da bancada evangélica ser numerosa a ponto de muitas vezes atrapalhar a aprovação de projetos que não estão de acordo com os seus preceitos religiosos, não se tornou comum o chamado “voto evangélico” com a aprovação de projetos relevantes, o que é uma decorrência da existência de diversos segmentos evangélicos no Brasil, o que prejudica uma unidade[32], existindo até mesmo segmentos, como é o caso da Igreja Contemporânea Cristã, que apoia a homossexualidade[33].

Ainda assim, a influência política da referida bancada é extremamente grande a ponto de Marcos Feliciano, pastor da Assembleia de Deus, ter chegado a presidir a Comissão Parlamentar de Direitos Humanos com o intuito de fazer prevalecer políticas públicas dissociadas de um Estado Laico como a absurda “cura gay”[34]. Falamos “absurda” porque homossexualidade não é doença, não havendo o que se falar em cura da mesma, sendo por essa razão que não se é correto o uso da expressão “homossexualismo”, pois o sufixo “ismo” é usado comumente para doenças, o que não é o caso da homossexualidade, sendo o uso desse e de outros “ismos”, como afirma Idete Teles em posição na qual concordamos, uma prática de um conservadorismo típico da época medieval[35].

 Frise-se que a referida realidade não se resume ao legislativo federal. Marcelo Natividade, analisando a situação da Baixada Fluminense, traz o descontentamento de movimentos sociais com o fato de alguns políticos vinculados a instituições religiosas dificultarem a aprovação de projetos de âmbito local favoráveis ao grupo LGBTQIA+[36].

Ademais, existe uma influência política também da religião evangélica no executivo brasileiro, a ponto do atual Presidente da República do Brasil ter afirmado que nomearia um ministro para o Supremo Tribunal Federal-STF “terrivelmente evangélico”[37], o que realmente ele buscou fazer[38]. O fato em questão é preocupante, pois não existe nenhum problema em a Suprema Corte ter um ministro adepto de uma religião evangélica, mas não é razoável que esse seja um critério para definir a escolha de um ministro.

No mais, a influência em testilha começa a existir desde o período eleitoral. A título de exemplo, nas eleições presidenciais de 2010 grupos religiosos espalharam Fake News de que a candidata Dilma Roussef seria lésbica com o intuito de a desqualificar perante crentes e católicos[39].

Além disso, existe interferência política de grupos evangélicos em outras instituições públicas brasileira, tal como aconteceu recentemente na Defensoria Pública da União, onde a Associação Nacional do Juristas Evangélicos- ANAJURE atuou em prol da escolha do Defensor Público-Geral Federal[40].  

No último caso citado, a interferência dos evangélicos foi determinante na escolha do Presidente da República, uma vez que o defensor escolhido foi o segundo mais votado da lista tríplice formada pelos defensores públicos federais[41], sendo recomendável a escolha sempre do mais votado para que o escolhido tenha mais legitimidade para exercer o seu mandato, porém não foi o que aconteceu devido ao fato de ter se optado por seguir a indicação evangélica.

Outrossim, importante lembrar a existência de religiões originalmente brasileiras, como é caso da Umbanda, considerada por muitos a pioneira no Brasil e que, conforme afirma Lísias Nogueira Negrão, Doutora em Sociologia pela USP e professora titular da mesma universidade, adota matrizes da macumba, do candomblé, do catolicismo e do kardecismo.[42] Entretanto, a porcentagem de pessoas adeptas da referida religião é muito pequena conforme dados do IBGE de 2010, onde se constatou que apenas 0,3% da população brasileira é adepta do Umbanda ou do Candomblé.[43] O DATAFOLHA afirma que o referido número subiu para 2%[44], o que, no entanto, ainda é um número extremamente pequeno. Existe ainda o Santo Daime, que é uma manifestação religiosa surgida no início do século XX na Amazônia e que tem como base o uso da ayahuasca[45], mas que não existem dados estáticos prevendo quantos adeptos a mesma possui no Brasil, o mesmo acontecendo com a Jurema, religião comum no nordeste brasileiro e que para alguns foi criada antes mesmo da Umbanda, tendo em vista ser uma religião dos primeiros brasileiros: os índios[46].

Ademais, a influência da religião na política brasileira não acontece apenas na ala mais conservadora da sociedade. A título de exemplo, entre os anos 1960 e 1970 alguns bairros de São Paulo tinham sua organização política mediada ao mesmo tempo por sindicatos e pastorais da Igreja Católica ligadas à Teologia da Libertação, que é uma ala católica mais progressista, sendo o referido trabalho realizado com base em discurso coletivos e de classe, o que colaborou com a criação do Partido dos Trabalhadores; diferentemente do Rio, onde a luta da classe trabalhadora era menos intensa e a Igreja Católica tinha lideranças não adeptas à Teologia da Libertação, o que se alinhava mais aos políticos com características mais personalistas[47]. Assim, existe no Brasil influência da religião tanto em políticos de esquerda como em políticos de Direita.

No mais, além de ter influência no Poder Legislativo e no poder Executivo, tal como visto acima, as questões religiosas também possuem influência política no Poder Judiciário. A título de exemplo, recentemente causou polêmica uma decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro permitindo o sacrifício de animais em rituais.

O voto vencedor da decisão acima teve o seguinte teor:

CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA. SACRIFÍCIO RITUAL DE ANIMAIS. CONSTITUCIONALIDADE. 1. Não é inconstitucional a Lei 12.131/04-RS, que introduziu parágrafo único ao art. 2.º da Lei 11.915/03-RS, explicitando que não infringe ao “Código Estadual de Proteção aos Animais” o sacrifício ritual em cultos e liturgias das religiões de matriz africana, desde que sem excessos ou crueldade. Na verdade, não há norma que proíba a morte de animais, e, de toda sorte, no caso a liberdade de culto permitiria a prática( RECURSO EXTRAORDINÁRIO 494.601 RIO GRANDE DO SUL RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO).[48]

 A decisão em testilha gerou uma grande polêmica nos meios de comunicação e nas redes sociais. Entretanto, nos parece que a referida repercussão negativa decorreu de um preconceito com as liturgias das religiões de matrizes africanas. Ora, o peru na ceia natalina não seria um sacrifício de um animal para a comemoração de uma data religiosa? Por que existe a polêmica no caso das religiões de matrizes africanas e não existe nas religiões cristãs?

Ora, matamos animais todos os dias para nos alimentar quando poderíamos adotar uma alimentação vegana ou vegetariana, como proibir então o sacrifício de animais em rituais religiosos?

Desse modo, a tentativa de proibição do sacrifício de animais de especificamente alguns rituais religiosos por intermédio do Poder Judiciário é a demonstração de um preconceito existente no Brasil em relação às religiões que possuem menos adeptos no Brasil.

Diante de todo o exposto, não há como negar que, apesar de ser um país laico, o Brasil ainda possui uma forte influência religiosa na política, principalmente das religiões católicas e evangélicas.


Conclusão

A efetiva existência de estados teocráticos no passado e até no presente foram apenas o nosso ponto de partida do presente artigo científico, pois o nosso objetivo foi analisar se na atualidade ainda existe uma influência política das religiões, especificamente no Estado Brasileiro.

Assim, constatamos que no Brasil a influência de algumas religiões é extremamente forte nos três Poderes da República, bem como em outras instituições públicas.

No mais, apesar de percebemos a existência do Umbanda, do Santo Daime e da Jurema como religiões tipicamente brasileiras, duas outras religiões geram mais influência política no Brasil, quais sejam: a Religião Católica e a Religião Evangélica, que influenciam principalmente políticos de direita, mas também políticos de esquerda.

A realidade constatada é extremamente preocupante, pois, sendo o Brasil um Estado Laico, urge a necessidade de que todas as religiões tenham a mesma importância, inclusive também deve ser assegurado o direito de não ter religião nenhuma.

Desta feita, espera-se que com o tempo a relação entre religião e política no Brasil não seja uma realidade contemporânea, mas apenas um relato histórico.

Sobre o autor
Ricardo Russell Brandão Cavalcanti

Doutor em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga, Portugal (subárea: Direito Administrativo) com título reconhecido no Brasil pela Universidade de Marília. Mestre em Direito, Processo e Cidadania pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Ciência Política pela Faculdade Prominas. Especialista em Direito Administrativo, Constitucional e Tributário pela ESMAPE/FMN. Especialista em Filosofia e Sociologia pela FAVENI. Especialista em Educação Profissional e Tecnologia pela Faculdade Dom Alberto. Capacitado em Gestão Pública pela FAVENI. Defensor Público Federal. Professor efetivo de Ciências Jurídicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco - IFPE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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