5. Conclusão
Ao analisarmos as diversas estruturas de Estado existentes, e partindo da premissa de que nossa sociedade evoluiu, pois vivenciou uma república escravocrata, duas ditaduras (Estado Novo e Ditadura Militar) e, consequentemente, dois processos de redemocratização política (Constituições de 1946 e 1988), podemos tirar conclusões que nos ajudarão a compreender o novo ordenamento jurídico estabelecido pela Carta de Outubro.
No tocante aos direitos criados por cada estrutura política estatal, Paulo Bonavides [27] assim nos ensina:
"força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo ‘dimensão’ substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade. Ao contrário, os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia; coroamento daquela globalização política para a qual, como no provérbio chinês da grande muralha, a humanidade parece caminhar a todo vapor, depois de haver dado o seu primeiro e largo passo. Os direitos da quarta geração não somente culminam a objetividade dos direitos das duas gerações antecedentes como absorvem – sem, todavia, remove-la – a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos de primeira geração. [...] Tais direitos sobrevivem, e não apenas sobrevivem, senão que ficam opulentados em sua dimensão principal, objetiva e axiológica, podendo, doravante, irradiar-se a todos os direitos da sociedade e do ordenamento jurídico".
Desta feita, da mesma forma que houve a evolução normativa, gerada pelos diversos ordenamentos jurídicos proclamados por cada nova estrutura estatal, que criaram e graduaram as respectivas "gerações de direitos" (primeira, segunda, terceira e quarta), deve haver a progressão interpretativa por parte dos operadores do direito, os quais devem procurar analisar o texto da lei não somente em seu aspecto literal, mas sobretudo em seu sentido histórico, sistemático e teleológico, visando atingir os fins estabelecidos pelo legislador, a fim de que não partam de premissas que conduzirão a conclusões retrógradas e dessarazoadas.
Sintetizando tal evolução, vimos que o Estado Liberal assegurou o direito individual (plano do ser), que ensejava uma postura omissa do governo em não intervir na sua livre manifestação, limitando a atuação política estatal na esfera do indivíduo, visando assegurar a liberdade; o Social ampliou o conceito de direito publico subjetivo e criou os direitos sociais (plano do ter), exigindo políticas governamentais positivas que garantissem o mínimo de bem-estar a população, limitando o poder econômico, objetivando implementar a igualdade material.
Por sua vez, o Estado Democrático de Direito Brasileiro amplia o conceito de direito social, criando o chamado "direito fraternal", reclamando do Estado uma postura pro-ativa, que deve se antepor aos fatos, buscando controlar a sociedade, implementando formas de concretizar o modelo previsto na C.F/88, pautado nos ditames da justiça, solidariedade, pluralismo e ausência de preconceitos.
Mas como assim "controlar a sociedade"? Os direitos fraternais, previstos no art.4º, I e IV, bem como no Preâmbulo da CF/88, buscam formas de "controlar" a sociedade que promove discriminações culturais, raciais, religiosas e sexuais, realizando, assim, injustiças sociais, como, p.ex., contra ciganos, índios, negros, homossexuais e ateus.
O Estado, assim, deve agir pro-ativamente, se antevendo aos fatos, pois necessita executar políticas públicas e formular leis que assegurem os direitos de afirmação do ser humano, privilegiando os direitos das minorias étnicas, raciais, sexuais e religiosas.
A título de exemplo desses direitos, podemos citar as cotas afirmativas de negros e índios em universidades públicas, reservando-lhes um percentual de vagas.
Os direitos fraternais, também chamados de afirmativos ou compensatórios, buscam compensar as desigualdades civis e morais sofridas pelas classes discriminadas ao longo da história. Outros exemplos de tais direitos, que, por sinal, encontram-se previstos no texto constitucional, são o fato da mulher se aposentar 5 (cinco) anos a menos que os homens (art. 40, III) e a assistência gratuita e integral ao necessitado (art.5º, LXXIV).
Podemos, em síntese, afirmar que enquanto o Estado Liberal vivenciou a fase Declaratória dos Direitos (individuais) e o Social, a fase Garantista dos Direitos (sociais), o Estado Democrático de Direito, no qual vivemos, insere-se na fase Concretista dos Direitos (fraternais), por meio da qual se busca, efetivamente, formar uma sociedade plural, onde se respeitam as diferenças de credo, sexo, cor e religião.
Nesse sentido, Lênio Streck afirma que enquanto o Estado Liberal produziu um Direito Ordenador; e o Social, um Direito Promovedor, o Estado Democrático visa concretizar um Direito Transformador. [28]
Assim, não basta apenas declarar direitos (liberalismo clássico) ou garanti-los (Estado Social), urge que consigamos, efetivamente, concretizá-los, razão pela qual vivemos em um Estado Democrático de Direito, que, via de regra, na precisa lição de Lênio Streck, deve nos fornecer um Direito Transformador, a fim de que possamos implementar o modelo de sociedade pluralista e sem preconceitos previsto na Constituição Federal de 1988.
A fim de concretizar esta transformação social, ao aplicarmos e interpretarmos a norma jurídica em conformidade com a Constituição de 1988, não podemos, em nenhum momento, esquecer os postulados do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito Brasileiro (art. 1º, III, CF/88) que, em apertada síntese, representa a seguinte equação: concretização dos Direitos Individuais (art.5º, CF/88 - plano do ser - Liberdade) + Direitos Sociais Genéricos (art.6º, CF/88 - plano do ter – Igualdade Material) + Direitos Fraternais (art. 4º, I e IV, CF/88 - plano do respeitar – Fraternidade).
Mas, para que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana seja plenamente concretizado em nosso ordenamento, não basta somente a vigência das chamadas "leis dirigentes ou programáticas", necessita-se que tais normas tenham eficácia social, obtida mediante a participação direta de toda a sociedade e dos operadores do Direito, através da realização dos ensinamentos da moral, do respeito ao próximo, da fraternidade e da honestidade, conceitos que não se aprendem lendo artigos e livros jurídicos ou se cumprindo, friamente, as disposições legais, mas sim através de uma boa formação humana, ética e educacional, a qual devemos, primeiramente, propiciar ao povo brasileiro, para que possamos, por via conseqüêncial, lutar pela efetivação dos – ainda hoje tão idealistas – direitos fraternais garantidos pela Carta de Outubro desde 1988.
6.BIBLIOGRAFIA
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Notas
1
sans-culottes (tradução: sem-calças): população pobre de Paris, formada pela massa de artesãos, aprendizes, lojistas, biscateiros e desempregados; teve importante participação nos acontecimentos revolucionários de 1789 a 1794.2
ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 126.3
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4º ed. 7º tiragem. Ed. Malheiros: São Paulo.4
MATTOSO, Kátia M. de Queiróz. Textos e Documentos para o estudo da História Contemporânea, 1789- 1963, São Paulo, HUCITEC: Ed. da Universidade de São Paulo, 1977.5
CALMON, Pedro. Curso de Teoria Geral do Estado. 3.ed.: São Paulo, 1949, p.95.6
ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 128.7
8
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Trad. brasileira de Marco Aurélio Nogueira. 2º ed. São Paulo:Brasiliense, 1988, pág. 19.9
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4º ed. 7º tiragem. Ed. Malheiros: São Paulo, pág. 55.10
GORDILLO, Agustín. Princípios Gerais de Direito Público. Trad. Brasileira de Marco Aurelio Greco. Ed. RT: São Paulo, 1977, pág. 74.11
Inserida no rol do art.6º da C.F./88 por meio da Emenda Constitucional nº 26/2000.12
BRITO, Carlos Ayres de. Principio da Dignidade da Pessoa Humana. Aula Magna exibida em 12.10.06 na TV Justiça (Canal 04 da NET).13
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 118.14
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 205-206.15
DANTAS, Ivo. Da defesa do Estado e das Instituições Democráticas. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1989, p.27.16
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia – Uma Defesa das Regras do Jogo. Trad. Brasileira de Marco Aurélio Nogueira. 2ºed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, pág.20.17
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 524-526.18
HÄBERLE, Peter. El estado constitucional. Trad. de Hector Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003. p. 75-77.19
FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p.88.20
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 17.21
Ibid., p. 18.22
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 117, apud Emili Crosa, Lo Stato democrático, p.25.23
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.119.24
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 2005.25
DANTAS, Ivo. Da defesa do Estado e das Instituições Democráticas. Rio de Janeiro: Aide Editora, 1989, p.27.26
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4º ed. 7º tiragem. Ed. Malheiros: São Paulo, pág. 56.27
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 524-526.28
STRECK, Lênio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: as possibilidades transformadoras do Direito. Palestra referente a III Jornada de Estudos da Justiça Federal, exibida em 22.09.06 na TV Justiça (Canal 04 da NET).