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O hate speech, a banalização da prisão e o preço da Democracia

Agenda 15/08/2021 às 13:57

O artigo analisa o discurso de ódio enquanto fundamento da decisão pela prisão de Roberto Jefferson e a banalização da prisão

A prisão preventiva do ex-Deputado Federal e atual Presidente do PTB, Roberto Jefferson Monteiro Francisco, está diretamente ligada ao discurso de ódio, presente em suas manifestações e levadas ao conhecimento do Judiciário pela Polícia Federal. A incitação ao ódio é um dos fundamentos de sua prisão.

Entre as declarações mais importantes está o incentivo da invasão popular ao Senado brasileiro como forma de desconstituir a CPI. Incitação bem ao estilo da realizada por Donald Trump que, negligenciada, terminou se concretizando no lamentável episódio da invasão popular ao Capitólio ocorrida em 06/01/2021, resultando em algumas mortes, sendo duas delas bastante simbólicas da sanha mortífera que permeia os extremos.

De um lado, morreu o agente Brian Sicknick, espancado pelos apoiadores do Presidente americano, que tinha sido derrotado em eleições previamente colocadas sob suspeição por meio de discursos reiterados e insistentes postagens em redes sociais. Do outro lado, morreu baleada a extremista Ashli Babbitt, veterana da Força Aérea americana.

O Conselho da Europa define o incitamento ao ódio como qualquer ato de comunicação que inferiorize ou incite ódio contra uma pessoa ou grupo, tendo por base características como raça, gênero, etnia, nacionalidade, religião, orientação sexual ou outro aspecto passível de discriminação.

Não pretendo esgotar aqui o tema relativo ao hate speech, cuja definição não é tão simples quanto sua percepção social. Mas há um certo consenso, na linha do pensamento de Thiago Dias Oliva[1], no sentido de que se constitui numa espécie de visão mais radial do discurso discriminatório.

Neste sentido, as referências de Roberto Jefferson à UERJ e às Universidades públicas é encaixe perfeito no conceito.

Não vou repetir aqui tudo o que disse o ex-Deputado quanto ao aspecto. Vou apenas defender veementemente a Educação Pública Superior afirmando que é falsa a informação que dela só saem apenas Gays, drogados e comunistas.

Aliás, tentar explicar a qualidade das Universidades Públicas brasileiras a partir da orientação sexual de seus egressos é de uma pobreza de raciocínio enorme. É puro discurso de ódio, pois nem mesmo as propaladas premissas cristãs e conservadoras lhes dão sustentação. Além disso, essa conduta não é cristã.

O hoje segregado parece falar de um lugar de organizador de uma tal Primavera Brasileira que teria o seu estopim no próximo dia 07/09/2021, onde ocorreria uma espécie de cassação de dez Ministros do STF, deixando a salvo tão somente aquele que foi indicado pelo atual Presidente da República. Apesar das ameaças, estou certo que isto não ocorrerá, pois nossas instituições democráticas não permitirão.

Verdade seja dita, o título Primavera Brasileira é tão antitético em relação à Primavera Árabe ou as demais primaveras históricas (Primavera dos Povos e Primavera de Praga) quanto são inadequadas as invocações à liberdade, à vida, à Deus, ao Espírito Santo, ao cristianismo, ao patriotismo, ao abuso de criancinhas, ao fascismo e à drogadição do nosso povo.

Portanto, a partir do que foi exposto na decisão proferida pelo Min. Alexandre de Moraes (PET 9.844), as declarações do ora encarcerado foram, em tese, ilícitas e penalmente tipificadas.

Contudo, antes de analisar o conteúdo da mencionada decisão, é necessário esclarecer que apesar da jurisprudência brasileira, desde o julgamento do caso Ellwanger[2], ter se encaminhado para não admitir como inserido no conceito de liberdade de expressão o hate speech, sou daqueles que avalia com a máxima cautela a limitação do direito fundamental da liberdade de expressão e de imprensa, pois são vitais para o desenvolvimento integral do ser humano e da democracia.

É que a repressão ao discurso de ódio não pode nos levar à submissão às doutrinas morais majoritárias e ao politicamente correto, momentaneamente reinante.

O perigo de não perceber isso é enquadrar a liberdade de expressão nas opiniões majoritárias e criminalizar aquelas que incomodam ou socam o status quo.

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Diga-se de passagem, que atualmente nos deparamos com casos difíceis relativos aos limites que podemos impor à maioria para proteger grupos minoritários e estigmatizados.

Com essas palavras quero fazer coro com Daniel Sarmento, que em memorável artigo[3] diz que se fôssemos apreciar a questão sob o manto da categorização chegaríamos a conclusão de que “O Mercador de Veneza”, obra-prima de Shakespeare, deveria ser banida por ser profundamente anti-semita. Afinal, “Shylock, o mercador, é um judeu usurário, vil, vingativo e avarento, que exige a execução de uma garantia de dívida que lhe dá o direito de cortar uma libra de carne do peito de Antônio”.

Nesta toada maniqueísta do bem contra o mal, do legal versus ilegal, do certo de um lado e do errado do outro, este articulista, advogado, católico, não pode defender a família heterossexual segundo o catolicismo, verbi gratia. Seria homofobia.

Como diz o notável constitucionalista citado, o caminho do meio é a saída. A ponderação, fundada no princípio da proporcionalidade.

A par dessas achegas, limitadas ao espaço e ao propósito do artigo, é chegada a hora de examinar a decisão judicial.

De logo percebo que o Douto Ministro entendeu que o representado estava em estado flagrancial (art. 301, CPP), reproduzindo entendimento esposado no Inquérito 4.781, quando mandou prender o Deputado Daniel Silveira.

Apesar das contestações doutrinárias a essa ideia de flagrante, o que se vê é uma consolidação da postura do STF em considerar em permanente estado de flagrância aquele que comete crimes pela internet, enquanto a postagem estiver disponível.

Na sequência, nota-se que a preocupação investigatória está ligada à proteção da Democracia e do Estado de Direito. Entrementes, é justamente neste último aspecto que a decisão parece falhar, por mais paradoxo que possa inicialmente parecer.

Eis que observo que na gênese da decisão está a gravidade dos supostos delitos. A gravidade se apresenta como óbvia também em nossa opinião. Porém, nossa jurisprudência é farta ao considerar que a gravidade em abstrato do delito não é causa suficiente para o decreto de prisão preventiva (STF - HC 135250; STJ-HC 384.523).

A decisão, por sua vez, não diz claramente de que forma o investigado integra associação criminosa, deixando entender que a aderência se deu tão somente pela semelhança no modus operandi e da convergência de objetivos.

Respeitosamente, afirmamos que essa fundamentação parece bastante genérica, pois no clima de polarização política em que o país está mergulhado, onde o Chefe Político da Nação diariamente estimula ataques pessoais a autoridades e o menoscabo de instituições, muitos cidadãos brasileiros poderiam de igual forma serem rotulados como membros de tal associação, em especial os seus seguidores. É próprio do discurso de ódio, realizá-lo em grupo, em que pese não seja impossível em voz única.

A habitualidade do crime cometido através das redes sociais também não me convenceu enquanto justificativa para a prisão preventiva, pois tais condutas habituais poderiam cessar, como de fato cessarão, por meio de medida diversa da prisão, a exemplo da correta determinação para bloqueio das contas do investigado em redes sociais.

Como se sabe, a prisão é a ultima ratio.

A propósito, recentemente a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou essa lição criminal comezinha de que a prisão preventiva deve ser imposta somente como ultima ratio e que, existindo medidas alternativas capazes de garantir a ordem pública e evitar reiteração delitiva, deve-se preferir a aplicação dessas em detrimento da segregação extrema (HC 588.538/SP).

No Estado Democrático de Direito, a banalização da prisão processual é um atentado direto à liberdade, valor fundamental em favor do qual se colocou o devido processo legal. Diz a Mãe das Leis: LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

Assim, os supostos “crimes contra a honra, racismo, homofobia e incitação à prática de crimes, bem como o tipo penal decorrente de integrar organização criminosa” praticados pelo político investigado, por mais graves que sejam, precisam ser apurados em um processo devido, com todas as garantias constitucionais, ainda que grande seja o asco. E neste processo, com esse viés, até pode ser decretada uma prisão processual, mas não como medida inicial, senão como última providência.

Roberto Jefferson atacou toda a advocacia quando a colocou, generalizadamente, como insuscetível de compor as altas Cortes de Justiça, nos termos da Constituição. As razões apontadas por ele geraram um dano moral coletivo para a classe que o albergou em seus quadros.

No entanto, a devolutiva que a advocacia lhe deve dar não é a vingança, mas a defesa de sua liberdade imediata, ainda que momentânea e acompanhada de cautelares diversas da prisão. Não para defender os seus atos abjetos, mas para que responda a um processo justo, e nele seja condenado ou até preso, se for o caso, desde que preenchidos os requisitos para a prisão, por enquanto inexistentes, salvo melhor juízo.

A Polícia Federal justificou o pedido de prisão cautelar, como medida excepcionalíssima e necessária, “para evitar o acirramento e o estímulo a tais práticas no cenário atual”.

Essa justificativa também não nos parece resistir à constatação de que os mesmos atos e conteúdos continuarão sendo defendidos todos os dias pelo próprio Presidente da República. Logo, o acirramento que se quer evitar não terá êxito com a prisão em testilha. Os possíveis e decorrentes “atos de violência, diretamente ou por interpostas pessoas” já são iminentes e não teve ou tem, no líder partidário mencionado, o centro de gravitação.

Para finalizar, não há como encerrar o texto sem uma manifestação de solidariedade com todos os ofendidos, sem exceção.

As manifestações de cunho discriminatórias são ilegais, sejam desferidas contra as minorias desprotegidas, seja contra Ministro(a) do STF. Não há como confundir a crítica ao STF com o achincalhamento de seus integrantes. Outrossim, o discurso homofóbico não é menos covarde porque dirigido contra uma ou algumas das mais altas autoridades judiciais do país. É e será sempre um discurso covarde.

Concordo com Min. Alexandre de Moraes no sentido de que “A Constituição Federal não permite a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático (CF, artigos 5º, XLIV; 34, III e IV), nem tampouco a realização de manifestações nas redes sociais visando ao rompimento do Estado de Direito, com a extinção das cláusulas pétreas constitucionais – Separação de Poderes (CF, artigo 60, §4º), com a consequente instalação do arbítrio”, mas discordo da decretação da prisão do ora segregado, apesar da reprovabilidade de suas condutas, conforme exposto.

Afinal, não li na decisão ora analisada fundamentação suficientemente posta para o atendimento do que exige o § 2º do art. 312 do Código de Processo Penal, data máxima venia.

Rejeito veementemente o hate speech de Roberto Jefferson, mas defendo que sua reprimenda se dê de forma cautelosa, pelo método da ponderação e não da categorização, mediante o devido processo legal, servindo-se dos parâmetros exemplificativos que nos fornecem Daniel Sarmento, cujo rol não pude apresentar aqui para poupá-los de enfadonha leitura, que já se alonga.

Ao terminar de escrever este artigo, pensei o quão estranho alguns acharão da defesa da soltura de Roberto Jefferson, após ofensas tão acintosas e públicas. Preocupei-me.

Todavia, lembrei que meu compromisso cristão é de lutar contra o pecado, jamais contra o pecador. Como advogado, jurei não me incomodar com impopularidade ou antipatias na defesa da Constituição, da ordem jurídica, do Estado democrático de direito, dos direitos humanos, da justiça social e da boa aplicação das leis.

Parafraseando o Min. Marco Aurélio, recentemente aposentado: “paga-se um preço por se viver numa democracia e é módico: o respeito irrestrito às regras estabelecidas”[4]

 


[1] OLIVA, Thiago Dias. O discurso de ódio contra as minorias sexuais e os limites da liberdade de expressão no Brasil. 2015. Dissertação (Mestrado em Diretos Humanos) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. doi:10.11606/D.2.2015.tde-14122015-093950. Acesso em: 2021-08-15.

[2] HC nº 82.424/RS, Plenário, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento concluído em 19 de setembro de 2003.

[3] SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do "Hate Speech". In: SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

 

[4] Frase pronunciada no julgamento da TV Globo no caso da Escola Base de São Paulo.

Sobre o autor
Adir Machado Bandeira

Advogado. Fundador do escritório Adir Machado advogados associados. Foi Diretor de Controle Externo de Obras e Serviços do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe (TCE/SE), é bacharel em Direito, graduado em 1999 pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), quando aos 23 anos de idade também se tornou advogado. Como advogado atuou na defesa de diversas Câmaras Municipais e Prefeituras. Na qualidade de consultor jurídico, prestou serviços para os Legislativos junto ao Congresso Nacional e escreveu diversos pareceres, respondendo consultas de órgãos públicos e corporações privadas. No período de junho de 2009 a 2015 assessorou o Conselheiro Clóvis Barbosa, coordenando as atividades da 5ª Coordenadoria de Controle e Inspeção do TCE/SE. Entre 2008 e maio de 2009, assessorou o Governo de Marcelo Déda exercendo a função de controle interno na Secretaria de Estado da Educação, durante a gestão do Prof. Dr. José Fernandes de Lima. Em 2007, passou pela Assembleia Legislativa como assessor parlamentar. Entre os anos de 2000 e início de 2007, chefiou a Procuradoria da Câmara Municipal de Aracaju, capital do Estado de Sergipe. Durante sua trajetória como jurista lecionou Hermenêutica Jurídica, Filosofia do Direito, Ética Geral e Profissional e Introdução ao Estudo do Direito na UFS. Foi ainda professor de Direito Civil da Faculdade de Sergipe e da Faculdade de Administração e Negócios do Estado de Sergipe, com destaque para a disciplina Responsabilidade Civil. Além disso publicou diversos artigos científicos em áreas como o Direito Constitucional, Administrativo, Financeiro, Civil e Processo Civil. Durante sua fase de formação jurídica, lecionou História Geral e do Brasil em escolas particulares.

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