A coerção social que objetiva impor às mulheres um determinado controle é um fenômeno que ocorre ao longo da história, persistindo até a contemporaneidade. Nesta perspectiva, observa-se que o caráter machista e restritivo é reforçado por diversos setores da sociedade, como, por exemplo, a utilização inadequada dos meios de comunicação e a distinção de tratamento, em certas hipóteses, entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Destaca-se ainda, as redes sociais, consideradas um dos principais meios de divulgação de imagens, expondo, por vezes, mulheres com conotação objetificada.
A “objetificação” elimina automaticamente os atributos emocionais e psicológicos do indivíduo. É importante compreender que, comumente, depara-se com o corpo feminino sendo objetivado nas redes sociais, ao ser exposto como “coisa”. Assim, na lógica da dominação masculina, enquanto as mulheres tiverem suas individualidades retiradas, haverá a ascensão do sentimento e da mentalidade de superioridade, autoridade e propriedade sobre a mulher, desencadeando, pois, a noção de que o feminino se reduz à sua exploração, seja doméstica, sexual, reprodutiva e/ou demais formas de violência.
A objetificação da mulher, nesse raciocínio, corrobora com a arcaica visão de domínio sobre o gênero, naturalizando, inclusive, as diversas formas de violência ainda praticadas atualmente contra as mulheres.
Historicamente, este tipo de violência evidencia as práticas em que a mulher aparece sendo subjugada, apresentando-se, assim, como um problema complexo e de raízes sociais profundas.
A violência contra a mulher consiste-se em “qualquer ato de violência apoiado no gênero que produza ou possa produzir danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais na mulher incluindo as ameaças, a coerção ou a privação arbitrária da liberdade tanto na vida pública como na privada”, conforme expressa a Declaração das Nações Unidas sobre a Erradicação da Violência Contra as Mulheres, adotada pela Assembleia Geral da ONU, em 1993. Ademais, ocorre em espaços privados, como no trabalho ou em eventos de lazer, ou públicos, como, a exemplo, em supermercados, praças e ruas. Nesta categoria de violência, independe a relação entre a vítima e o agressor, bastando o ânimo da agressão ocorrer pela exclusiva razão de a vítima ser mulher.
A violência doméstica e familiar contra a mulher, em contrapartida, conforme preceitua art. 5°. e 7°., incisos I a V, da Lei nº 11.340 / 2006 – “Lei Maria da Penha”, incide, dentre outras, nas formas física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, seja em âmbito doméstico, familiar ou em qualquer relação íntima de afeto.
O Ciclo da Violência1">1 possui três fases: a primeira, chamada de Aumento da Tensão; a segunda, Ato de Violência; e, por fim, a fase três, chamada Arrependimento e Comportamento Carinhoso.
A fase de Aumento da Tensão ocorre quando o agressor passa a demonstrar irritabilidade por razões mínimas e insignificantes, gerando um ambiente tenso entre ele e a vítima por dias ou semanas. Neste período, o homem é tomado pela frustração e quebra de expectativa sobre o não atendimento de uma ou várias condutas comissivas ou omissivas esperadas da mulher, relacionadas imediatamente à condição feminina de subordinação e obedecimento.
Em seguida, a segunda fase, Ato de Violência, corresponde ao ponto em que o agressor realiza a consumação do ato violento. Esta fase, além de também apresentar correlação com a servitude feminina, traduz a questão da mulher enquanto propriedade, na medida que o agressor reage sobre ela como um objeto.
Ao final, na fase Arrependimento e Comportamento Carinhoso, também denominada como “lua de mel”, o agressor demonstra remorso, compromete-se a mudar e age, durante um período, de maneira amável. Em consonância ao exposto pelo Instituto Maria da Penha, “como há a demonstração de remorso, ela se sente responsável por ele, o que estreita a relação de dependência entre vítima e agressor”. Mais uma vez, o aspecto de servidão feminina aparece, no sentido de que a mulher se sente coagida a “ajudar” o agressor a se recuperar.
Desta forma, a violência de gênero como um todo, incluindo a doméstica, reflete a associação do domínio masculino para com duas particularidades presentes no estudo da violência: (i) a desestruturação da individualidade da vítima e; (ii) a manutenção da autoridade do agressor.
Já na esfera da violência contra a mulher, esta perde sua simbolização, identidade e reconhecimento enquanto ser humano.
Na internet, ao consumir inadequadamente corpos de maneira objetificada, ao despersonificar a mulher e ao reduzi-la a um caráter inanimado, adota-se o mesmo critério das práticas de violência: tratando seres racionais e livres como irracionais, insensíveis, mudos, inertes e passivos. Sob o mesmo sentido, a violência de gênero imprime sobre a mulher a negação como um indivíduo semelhante ao homem.
Neste contexto, constata-se que a objetificação contorna a assimilação, pela cultura machista, de que o corpo feminino é um bem próprio para sua satisfação, bem como a ideia de que a ele seriam válidas condutas pertinentes ao campo das diversas agressões, físicas, psicológicas e/ou demais, posto à condição do corpo da mulher como suposta ‘propriedade’ de alguém, desprovida de vontade e querer.
Entre os principais tipos penais que envolvem a violência de gênero, têm-se os crimes sexuais, como estupro (art. 213), importunação sexual (art. 215-A) e assédio sexual (216-A), todos estes previstos no Código Penal Brasileiro. Ademais, cabe-se evidenciar que estes crimes estão intimamente relacionados à concepção de propriedade da mulher, trazendo a naturalização da ilimitada e não consensual “utilização” do homem que a agride.
A violência, de um modo geral, é associada a conceitos de poder, força, autoridade e dominação. Diversos tipos penais no âmbito da violência contra a mulher incidem sobre um ciclo de quebra de expectativa do homem em relação à ultrapassada posição feminina de subordinação e obediência, geradas pelo caráter machista da sociedade. Nesta esteira, o consumo de imagens de mulheres nas redes sociais, que contribui para a dominação masculina, abastece a mentalidade de que a mulher possui a obrigação de submeter-se ao homem. Por sua vez, quando ele enxerga sua suposta autoridade e poder em risco, ele reage de uma forma a qual ele acredita ser legítima, mesmo não o sendo – a forma violenta.
A título de exemplo, mencionada reação à perda da autoridade masculina pode ser traduzida nos tipos penais de vias de fato (art. 21 da Lei de Contravenção Penal), lesão corporal, ameaça, crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação) e até mesmo na divulgação de fotos íntimas, estes previstos nos artigos 129, 9°., 147, 138, 139, 140 e 218-C do Código Penal Brasileiro, respectivamente.
Sendo assim, a anulação da individualidade da mulher enquanto ser humano, bem como a imposição da posição autoritária do homem, são fatores que se complementam e afetam os tipos penais relacionados à violência de gênero, podendo um incidir em maior grau que outro ou de forma equivalente. Desta maneira, ao negar direitos às mulheres e atribuir força e autoritarismo aos homens, acaba-se por naturalizar as violências sofridas por elas.
Diante de todo o exposto, observa-se que a exposição de corpos femininos em conotação despersonalizada, recorrente e que ganha espaço no universo das redes sociais, bem como anula a individualidade das mulheres e ressaltando o domínio histórico-cultural masculino, reflete, inclusive, na naturalização da incidência da violência contra a mulher.
Neste contexto, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) resgata, juntamente com suas atualizações, medidas jurídicas e assistenciais sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher a serem realizadas, em rede, por equipes multidisciplinares. De forma conjunta às autoridades de combate à violência contra a mulher, instituições, e voluntários engajados na causa almejam superar a banalização de tais práticas de violências, a partir de um olhar voltado para a cultura machista e patriarcal brasileira. Sublinha-se, ainda, que a violência de gênero apresenta-se com certas justificativas e causalidades, mas estas nunca irão lhe atribuir legitimidade.
Portanto, é preciso enxergar os traços holísticos do problema, visando alcançar não apenas suas raízes políticas e consequências jurídicas, bem como perseguir e lutar contra as causas sociais e históricas do domínio masculino, que revogam a identidade da mulher enquanto pessoa.
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