Resumo: O mandado de segurança coletivo é um remédio constitucional indispensável na concretização dos direitos coletivos em sentido amplo, servindo a garantia material de tais direitos enquanto de instrumento jurídico hábil a demandá-los e defendê-los frente ao Poder Judiciário. Nesse sentido, não se poderia restringir seu manejo unicamente às pessoas enumerados no art. 5º, LXX, da Constituição da República. É imperioso reconhecer viabilidade jurídica de uma interpretação extensiva do rol de legitimados para impetração do writ coletivo, para alcançar não só o Ministério Público e a Defensoria Pública, mas também os próprios Entes Públicos e suas autarquias, como a OAB. Com efeito, tal possibilidade se lastreia essencialmente em três pilares: i) o regime jurídico único do processo coletivo e seus princípios regentes; ii) a própria natureza jurídica do mandado de segurança enquanto um remédio constitucional; iii) a inerente característica dos processos coletivos enquanto litígios de interesse público.
Sumário: Introdução; 1) Uma visão inicial do tema; 2) O regime jurídico do processo civil coletivo; 2.1) Princípio da legitimidade ativa concorrente ou pluralista; 2.2) Princípio da aplicação integrada dos diplomas legais de tutela coletiva; 3) O mandado de segurança coletivo como um remédio constitucional; 4) A conotação público-social do processo coletivo; 5) Conclusão.
Introdução:
Entre os chamados remédios constitucionais, há de se dar destaque ao mandado de segurança. Embora esse seja marcado pela sua residualidade frente ao Habeas Corpus e ao Habeas Data, isso não lhe implica uma status de ação constitucional de segunda categoria. Muito pelo contrário, é justamente em razão da sua abrangência – não encontrando-se restringido em seu objeto, como ocorre aos demais writs[1] – que assume a mais significante importância. Ele é um meio de defesa de uma verdadeira infinidade de direitos e, como tal, um instrumento indispensável à efetividade da Constituição.
A versatilidade desse writ lhe permite, inclusive, que seja manejado em favor não só de direitos individuais, mas também de interesses coletivos em sentido amplo. Trata-se do mandado de segurança coletivo, previsto no art. 5º, inciso LXX, da Carta Maior, cujos legitimados ativos são, pelo texto constitucional, i) os partidos políticos com representação no Congresso Nacional, ii) as organizações sindicais, iii) as entidades de classe e iv) as associações regularmente constituídas e em funcionamento há pelo menos um ano. Figura-se uma hipótese de legitimidade extraordinária[2], na qual tais entes atuam em nome de seus associados, defendendo seus interesses enquanto substitutos processuais.
Frente ao desenho constitucional do writ coletivo a questão que se coloca é justamente acerca da viabilidade jurídica de extensão dos legitimados para sua impetração. Será que poder-se-ia considerar o rol do art. 5º, inciso LXX, como numerus clausus? Ou, ao contrário, seria esse meramente exemplificativo, permitindo que outros atores sociais manejem o mandado de segurança na defesa de direitos coletivos em sentido amplo? Especificamente coloca-se em pauta a legitimidade dos Municípios, Estados, Ministério Público e da Defensoria Pública para se utilizar do writ coletivo, em particular frente as missões institucionais-constitucionais dessas entidades.
1. Uma visão inicial do tema
A indagação que aqui se coloca não é de fácil resolução.
Deve-se reconhecer que há razoabilidade em argumentar pela impossibilidade da extensão proposta. Poderia se argumentar, primeiramente, que, como o constituinte originário concedeu a legitimidade para o manejo do mandamus somente aos entes do art. 5º, inciso LXX, da Constituição e a ninguém mais, tratou-se esta de uma escolha expressa em restringir a sua utilização apenas àqueles. O silêncio do constituinte, seguido pelo legislador ordinário na Lei n. 12.016/2009, seria eloquente, afastando qualquer possibilidade de uma interpretação ampliativa, constituindo uma omissão intencional.
Além disso, também é de se considerar que a legitimidade extraordinária é excepcional, só sendo permitida quando autorizada pelo ordenamento jurídico (art. 18 CPC). Conforme ensina Patrícia Pizzol, citando Donaldo Armelin, a legitimidade extraordinária se caracteriza pela possibilidade de a decisão judicial proferida atingir não a esfera jurídica do legitimado, mas a alheia, daquele não participou da relação processual [3]. Ao se admiti-la, consequentemente, opera-se uma ampliação dos limites subjetivos da coisa julgada para além das partes do processo[4]. Assim, ela deveria ser usada com cautela, não poderia ser permitida sem a correspondente anuência constitucional ou legal.
Deveras, ambos esses argumentos parecem ser chancelados pelos Tribunais Superiores. O Supremo Tribunal Federal, em sede do MS n. 21.059-1/RJ, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence, pronunciou-se desfavoravelmente a extensão da legitimidade ativa para impetração do mandamus à Estado-membro da Federação. Restou consignado naquele julgamento a interpretação taxativa do art. 5º, inciso LXX, da Constituição. Aduziu o Relator que a “legitimidade extraordinário coletiva – e a consequente abertura à tutela jurisdicional dos interesses compreendidos nas suas finalidades institucionais, seguem, contudo, excepcionais, dependentes de norma explícita que excecione a regra geral [...]”.
Transcreve-se abaixo a ementa do acórdão:
Mandado de segurança coletivo: questão de legitimidade extraordinária de Estado-membro em defesa de interesses da sua população. Ao Estado-membro não se outorgou legitimação extraordinário para a defesa, contra ato de autoridade federal no exercício de competência privativa da União, seja para a tutela de interesses difusos de sua população – que é restrito aos enumerados na lei da ação civil pública (L. 7.347/85 - , seja para a impetração de mandado de segurança coletivo, que é objeto de enumeração taxativa do art. 5º, LXX da Constituição. Além de não poder extrair mediante construção ou raciocínio analógico, a alegada legitimidade extraordinário não se explicaria no caso, porque, na estrutura do federalismo, o Estado-membro não é órgão de gestão, nem de representação dos interesses da sua população, na órbita da competência privativa da União. (STF, Mandado de Segurança MS 21/059-1/RJ, Relator: Min. Sepúlveda Pertence, Data do Julgamento: 05/09/1990) (grifo nosso)
Na mesma linha argumentativa aparenta caminhar o Superior Tribunal de Justiça. No julgamento do RMS n. 49.257/DF, de relatoria da Min. Maria Thereza de Assis, – consideravelmente mais recente que o anterior – o Tribunal Cidadão negou legitimada a Defensoria Pública para o manejo do writ. A razão da negativa, segundo a Relatora, seria simples: “o rol dos legitimados a impetrar mandado de segurança coletivo previsto no art. 5º, inciso LXX, da Constituição Federal, assim como no art. 21 da Lei nº 12.016/2009, não elenca a Defensoria Pública. Nesse passo, não tem a recorrente legitimidade para impetrar mandado de segurança coletivo na defesa de direitos ou prerrogativas de seus assistidos”.
Segue-se a ementa do RMS:
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. FALTA DE LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA IMPETRAR MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. IMPETRAÇÃO GENÉRICA. DECLARAÇÃO DE DIREITO EM TESE. SEGURANÇA NORMATIVA. NÃO CABIMENTO. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O rol dos legitimados a impetrar mandado de segurança coletivo previsto no art. 5º, inciso LXX, da Constituição Federal, assim como no art. 21 da Lei nº 12.016/2009, não elenca a Defensoria Pública. 2. Considerando que a impetração se deu em nome próprio, como sustentado pela Defensoria Pública neste recurso, incabível o mandamus porquanto a pretensão consubstancia pedido de declaração, em tese, do direito, finalidade para a qual não se presta o writ. 3. Desse modo, é incabível o writ porque a Defensoria Pública não tem legitimidade para impetrar mandado de segurança coletivo e também porque não se admite mandado de segurança normativo. 4. Recurso ordinário a que se nega provimento. (STJ - RMS: 49257 DF 2015/0229556-9, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 03/11/2015, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/11/2015) (grifo nosso)
Seria, então, essa a solução ao nosso questionamento? O art. 5º, inciso LXX, da Constituição da República seria efetivamente um rol numerus clausus? A concessão de legitimidade ativa a outros entes públicos para o mandado segurança coletivo seria inviável frente a falta de previsão constitucional e normativa nesse sentido? Se nos contentássemos em simplesmente concordar passivamente com o entendimento jurisprudencial exarado até então, assumindo uma visão mais conservadora quanto as funções institucionais do mandado coletivo, a resposta a esses questionamentos seria positiva.
No entanto, com as máximas vênias a intepretação efetuada pelos nosso Tribunais Superiores, acreditamos que devemos adotar uma posição mais crítica quanto a matéria. Dada a importância do mandado de segurança dentro do contexto constitucional enquanto instrumento de efetivação dos direitos fundamentais ali positivados, é imperioso propormos uma nova visão sobre o tema. Não se pode interpretá-lo de forma desassociada do contexto democrático da Constituição de 1988 e o seu compromisso com a plena efetividade dos direitos fundamentais[5]. Em especial, ponderando a relevância dos direitos coletivos em sentido amplo trazida pela própria Carta Maior de 1988.
2. O regime jurídico do processo civil coletivo
No âmbito desta discussão que buscamos suscitar, há um primeiro ponto que consideramos de suma importância a discussão: a existência de um regime jurídico constitucional próprio ao processo civil coletivo.
Inegavelmente, a Constituição de 1988 foi um marco na tutela jurídica dos direitos transindividuais. O constituinte concedeu-lhes manifesta dignidade constitucional, mencionando-os expressamente na epígrafe do Capítulo I, Título II, da Carta Maior: “DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS”. Embora o art. 5º seja extremamente tímido quanto a esses, não prevendo em seu rol quase nenhum direito efetivamente coletivo – versando apenas sobre direitos individuais de expressão coletiva[6], com uma breve alusão ao direito dos consumidores no inciso XXXII –, é uma omissão de pouco prejuízo, pois a maior parte desses sobrevieram ao longo da Constituição, como é o direito ao meio ambiente (art. 255), o direito à cultura (art. 215) etc [7].
Ademais, mesmo que não houvesse direta referência aos direitos transindividuais no texto constitucional, entendemos que seu status de direitos fundamentais ainda seria inegável. Se o Estado brasileiro se volta a realização de uma sociedade justa, livre e solidária, que garanta o desenvolvimento nacional e o bem de todos (art. 3º, incisos I, II e IV, CR), tal objetivo só pode ser atingido mediante uma tutela efetiva e satisfatória dos direitos coletivos em sentido amplo[8]. Especialmente em uma sociedade de riscos massificados, na qual as consequências de certos atos ultrapassam a esfera do indivíduo para atingir a sociedade como um todo, transcendendo até mesmo o tempo para afetar as gerações futuras[9], é indispensável uma defesa ampla dos interesses coletivizados.
De um modo ou de outro, é certo que a Constituição se preocupou enormemente com a tutela dos direitos transindividuais, trazendo-os ao seu âmago como forma a garantir-lhes a máxima proteção. Inclusive, frente a essa situação alguns autores defendem uma nova summa divisio do Direito pátrio entre Direito Coletivos e Direito Individuais, a superar a clássica separação entre Direito Público e Direito Privado [10].
Deveras, nesse quadro, não se poderia permitir que essa preocupação do constituinte originário com os direitos transindividuais restasse ineficaz. As normas constitucionais que preveem e garantem tais direitos não poderiam ser encaradas como meras declarações abstratas, mas sim regras dotadas de uma materialidade e aplicabilidade real. E, o meio para assegurar essa efetivação é justamente a concessão de instrumentos jurídicos hábeis a demandar e defender esses direitos, principalmente por meio do Poder Judiciário, em consonância ao art. 5º, inciso XXXV, da Constituição.
Ocorre que, a tutela jurisdicional dos direitos transindividuais, em razão das próprias peculiaridades desses, não poderia se submeter ao modelo processualista comum, caracterizado por uma lógica individualista. O direito processual civil clássico se demonstra como inadequado e insuficiente a proteção satisfatória dos direitos coletivos em sentido amplo. Segundo a doutrina especializada[11], entre as inúmeras impropriedades relacionadas a sua aplicação a jurisdição coletiva, pode-se citar:
A) a inadequação dos tradicionais critérios de legitimidade processual (preconizando que ninguém pode pleitear em nome próprio direito alheio);
B) a limitação subjetiva da coisa julgada aos sujeitos do processo;
C) o risco da sucessão de decisões judiciais conflitantes, especialmente nos litígios de massa nascidos de um mesmo fato;
D) a morosidade e o custo financeiro do ajuizamento de centenas ou milhares de ações individuais para cada lesado;
E) a ocorrência do fenômeno da “litigiosidade contida”, representado pelo desinteresse dos lesionados em levar suas demandas ao Judiciário por considerar o procedimento complexo, custoso e ineficiente
F) a reduzida efetividade da tutela jurisdicional, que se limitaria a conceder e proteger os direitos daquele reduzido número de indivíduos que entrassem em juízo.
Portanto, havia a necessidade de se desenvolver um regime jurídico próprio ao processo coletivo, que abarcasse as nuncias da tutela dos interesses transindividuais. Essa exigência foi suprida com o advento do Código de Defesa do Consumidor (CDC), o qual muito além de reger as relações de consumo, funciona como um efetivo Código Processual Coletivo[12]. O CDC, mediante a inclusão do art. 21 na Lei n. 7.347/85 e do seu próprio art. 90, promoveu a integração das diversas legislações que regiam as ações coletivas (Lei da Ação Popular, a Lei da Ação Civil Pública, Lei de Improbidade Administrativa etc.), assim criando uma unidade sistemática ao processo coletivo.
Surgia, então, o microssistema de processo coletivo, cuja existência é de amplo conhecimento, inclusive na jurisprudência pátria:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. JUNTADA DE DOCUMENTOS. AUSÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO DA PARTE CONTRÁRIA. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. MICROSSISTEMA DE TUTELA COLETIVA. ARTS. 19 DA LEI DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ART. 90 DO CDC. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 326 E 398 DO CPC. DIES A QUO DO PRAZO PRESCRICIONAL. DATA EM QUE O FATO SE TORNA CONHECIDO PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ART. 23, II, DA LEI 8.429/90. FATO ILÍCITO. PRAZO. 5 ANOS. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, PARCIALMENTE PROVIDO [...]
Os arts. 21 da Lei da Ação Civil Pública e 90 do CDC, como normas de envio, possibilitaram o surgimento do denominado Microssistema ou Minissistema de proteção dos interesses ou direitos coletivos amplo senso, com o qual se comunicam outras normas, como os Estatutos do Idoso e da Criança e do Adolescente, a Lei da Ação Popular, a Lei de Improbidade Administrativa e outras que visam tutelar direitos dessa natureza, de forma que os instrumentos e institutos podem ser utilizados com o escopo "propiciar sua adequada e efetiva tutela" (art. 83 do CDC) [13]. (grifo nosso)
Assim, as ações coletivas (em seu sentido mais amplo) passaram a se submeter a uma lógica própria, com normas e princípios específicos. Embora haja divergência doutrinária acerca de quais seriam tais princípios, de regra geral, são conhecidos de maneira unânime: a) o princípio da indisponibilidade da demanda coletiva; b) o princípio legitimidade ativa concorrente ou pluralista; c) o princípio da atipicidade das ações coletivas; d) o princípio do devido processo legal coletivo; e ) o princípio da prioridade da tramitação do processo coletivo; f) o princípio da primazia do conhecimento de mérito; g) o princípio da máxima efetividade e do máximo benefício da tutela jurisdicional coletiva; h) o princípio da aplicação integrada dos diplomas legais de tutela coletiva[14].
Para os fins desse trabalho nos interessam, sobretudo, o princípio da legitimidade ativa concorrente ou pluralista e o princípio da aplicação integrada dos diplomas legais de tutela coletiva, sobre os quais nos estenderemos a seguir.
2.1) Princípio da legitimidade ativa concorrente ou pluralista
O princípio em comento é expressamente mencionado por Gregória Almeida Assagra e Luiz Phillipe Vieira de Mello Neto. Para os mencionados autores, tal axioma jurídico exprimiria a ideia de que “a legitimidade ativa no direito processual coletivo não deve ser interpretada de forma fechada ou restritiva, mas de forma aberta e flexível, em razão de decorrer de princípio constitucional”[15]. A partir da interpretação dos arts. 103, 125, §2º e 129, §1º, da Constituição, têm se a necessária conclusão de que a legitimidade ad causum coletiva é caracteristicamente concorrente e disjuntiva. Significa dizer, ela é naturalmente concedia a mais de uma pessoa, que poderá a exercer independe dos demais.
Essa lógica é seguida por outros estudiosos do tema. Antônio Herman Beijamin defende que a questão da legitimação no processo coletivo seria compatível com uma interpretação flexível. Isso porque o autor vislumbra a legitimação ativa não como um tema meramente processual, mas o interrelaciona a garantia de acesso à justiça (art. 5º, inciso XXXV, CR), sendo, portanto, um instrumento de concretização e tutela dos interesses coletivos em sentido amplo. Assim, argumenta em favor da extensão do rol de legitimados, mesmo que não estejam expressamente indicados na lei[16].
A viabilidade (e imperiosidade) de uma interpretação extensiva encontra lastro na própria técnica processual. Como é sabido a legitimidade ad causum resulta da existência de uma relação entre o bem jurídico que se demanda em juízo e o sujeito processual. De acordo com Patrícia Miranda Pizzol: “Verifica-se, via de regra, a legitimidade, no processo, quando coincidem a situação em que se encontra a parte perante o ordenamento jurídico e aquela que ela atribui a si[17]”. Deveras, sempre que presente essa “pertinência subjetiva da ação”, a parte será qualificada como legítima para atuar no processo.
O que se extrair dessa breve explicação é que, de maneira geral, a legitimidade ad causum, só poderá ser efetivamente averiguada no caso concreto, ope judicis[18]. Ocorre que no caso das ações coletivas, o legislador optou por conceder uma presunção de legitimidade aos entes enumerados no art. 82 do CDC e o art. 5º da Lei da Ação Civil Pública (LACP)[19]. Embora relativa - podendo sofrer controle de adequação judicial -, tais normas ensejam uma pressuposição da existência da “pertinência subjetiva” daqueles para atuar na tutela dos direitos transindividuais, inclusive por meio do mandamus.
De fato, como poderia se dizer que, por exemplo, o Ministério Público não possuiria legitimidade ativa para se valer do mandado de segurança coletivo? O texto constitucional expressamente lhe confere o dever de defender os interesses sociais e individuais indisponíveis, atuando ativamente na proteção dos direitos difusos e coletivos (art. 127, caput, e art. 129, inciso III, da Constituição). Assim, como já afirmou Nelson Nery, parece claro que, em certas situações, o Ministério Público será, em virtude de suas funções constitucionais, parte legítima para usar do mandamus em nome da tutela e promoção de tais direitos[20]. Exempli gratia, o caso de determinado órgão do Poder Público autorizar uma construção ilegal em uma área de preservação ambiental.
Do mesmo raciocínio compartilha Cassio Scarpinella Bueno:
O silêncio do art. 21, caput, da Lei n. 12.016/2009 não afasta a legitimidade ativa do Ministério Público para a impetração do mandado de segurança coletivo. Ela, embora não seja prevista expressamente pelo inciso LXX do art. 5° da Constituição Federal, decorre imediatamente das finalidades institucionais daquela entidade tais quais traçadas pelos arts. 127 e 129, III, da mesma Carta e, infra-constitucionalmente, pelo art. 6°, VI, da Lei Complementar n. 75/1993, para o Ministério Público da União, e no art. 32, I, da Lei n. 8.625/1993, para o Ministério Público dos Estados [21]
Diga-se mais, deve-se atendar aquelas legitimidades que advém da própria Constituição. Se o próprio constituinte originário optou por conceder de maneira ampla e irrestrita a legitimação ativa para atuar-se em juízo em defesa dos direitos coletivos em sentido amplo, não se poderia desejar limitá-la, seja pela via de lei ordinária, seja pela via interpretativa, principalmente tratando-se do Ministério Público e da Defensoria Pública Como afirma Patrícia Pizzol , A” legitimidade do Ministério Público e da Defensoria Pública decorre da CF (arts. 127 e 134), logo, não pode a legislação infraconstitucional restringi-la”[22]
2.2) Princípio da aplicação integrada dos diplomas legais de tutela coletiva
O princípio da aplicação integrada dos diplomas legais de tutela coletiva é, em verdade, muito mais um postulado interpretativo[23]. Através desse busca-se ensejar a noção de que as leis especificamente relacionadas à tutela coletiva não podem ser interpretadas de maneira individualizada, mas sim enquanto parte de um todo único que é o microssistema de processo coletivo. Assim, é necessária uma leitura integrativa de tais diplomas legais (CDC, LACP, LAC, LMS etc.), os quais intercomunicam e interpenetram, indo muito além de uma simples aplicação subsidiária ou supletiva[24].
Com efeito, no âmbito do microssistema de processo coletivo, há de se lançar mão da teoria do diálogo de fontes. Deve-se considerar que as normas processuais de tutela coletiva têm, ínsitas a si, a característica de serem intercambiantes[25]. Há entre elas uma intertextualidade sistemática, que exige do aplicador do direito atenção a uma interpretação harmônica entre os diversos dispositivos legais na resolução de problemas concretos a fim de alcançar a solução que melhor tutele os interesses envolvidos.
Nesse sentido, ao se examinar a Lei do Mandado de Segurança (LMS), ou qualquer outra legislação extraordinário de tutela coletiva, é preciso o fazer em vista, principalmente, dos dispositivos do CDC e da LACP, normas gerais do processo coletivo. Assim, a resolução de problemas que surjam nesse âmbito deve seguir, de preferência, os seguintes passos: a) primeiramente, há de se analisar o diploma específico (LMS); b) não se encontrando uma solução ou sendo ela insuficiente, deve-se seguir ao exame do CDC e da LACP; c) se ainda não se vislumbrar uma saída, então, deve-se procurada a ratio do sistema processual coletivo, interpretando-se conjuntamente suas normas[26].
Diante a esse cenário, é mister consignar que, muitas vezes, os enxutos rol de legitimados do art. 5º, inciso LXX, da Constituição e do art. 21 da LMS podem se demonstrar inadequados a proteção de certos direitos coletivos em sentido amplo, especialmente dos direitos difusos. Frente a essa deficiência, poderá se utilizar do art. 83 do CDC e do art. 5º da LACP para embasar uma extensão da legitimidade ativa do mandamus, ampliando a todos os entes elencados naqueles dispositivos legais.
A viabilidade dessa comunicabilidade entre os legitimados à impetração do mandado de segurança coletivo e ao propositura da ação civil pública é viabilizada, inclusive, por um certo parentesco entre eles. Como comenta a melhor doutrina, há uma afinidade entre os institutos por serem ambos qualificados enquanto de remédios constitucionais, destinatários de um conteúdo e um objeto especial, qual seja, a proteção de bens jurídicos de ordem coletiva, fruto de um aprimoramento do Estado de Direito.
Sobre o assunto, traz-se à baila as ponderações de Hely Lopes, atualizadas por Gilmar Ferreira Mendes e Arnoldo Wald:
Cabe indicar, inicialmente, a existência de um certo parentesco entre o mandado de segurança, a ação popular e a ação civil pública, por serem remédios especiais, de natureza e origem constitucional, que se destacam e dissociam da técnica e até da filosofia tradicionais do processo civil clássico. Essa analogia entre os três institutos é, amos tempo, técnica e filosófica, por se caracterizarem todos eles, pelo fato de serem instrumentos de conteúdo mais denso, refletindo o aprimoramento institucional do Estado de Direito, com alguma vinculação histórica com o habeas corpus, e destinando-se à proteção do indivíduo contra o Poder Público, no caso do mandado de segurança, ou para a defesa da sociedade ou de seus membros, em casos especiais que justifiquem procedimento mais rápido e a legitimidade extraordinária ,como ocorre nas hipóteses das ilegalidades que ensejam a lesão ao patrimônio público, justificando a propositura da ação popular, e da defesa dos interesses difusos, coletivos e homogêneos individuais, no caso da ação civil pública. São institutos que honram a ciência jurídica brasileira e revelam a sensibilidade do legislador e do Poder Público em questões básicas ligadas à proteção dos direitos individuais, à moralidade administrativa, à ecologia, à proteção ao consumidor, à ordem econômica e ao patrimônio cultural e artístico, assegurando, outrossim, a igualdade racial [27].
Em conclusão, nos parece que, considerando a evolução do processo coletivo no sentido da formação de um microssistema jurídico próprio, regido de princípios peculiares a si, bem como considerando a exigências constitucionais da tutela dos interesses transindividuais como parte de concretização do Estado de Direito brasileiro, não se poderia desejar interpretar a LMS de maneira restritiva e individualizada. Há a necessidade de se considerar uma comunicabilidade com os demais diplomas de tutela coletiva, em especial a LACP, com quem divide uma afinidade filosófica e teleológica.