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Uma análise do princípio da função social da posse como instrumento de promoção da dignidade humana ao efetivar o direito à moradia

O objetivo desse estudo é desenvolver o questionamento acerca da relevância do princípio da função social da posse para a concretização do direito à moradia no que tange promover o princípio da dignidade da pessoa humana.

1     INTRODUÇÃO

A moradia é um direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988 e a propriedade de um imóvel está diretamente ligada à sua função social, uma vez que também está tipificada na Constituição, logo, é interessante observar e analisar esta função social no âmbito jurídico e social. O presente trabalho tem como objetivo analisar o princípio da Função Social da Posse como um instrumento utilizado a fim de promover a dignidade humana à luz Constitucional ao dar provimento ao direito à moradia.

Inicialmente se faz necessário analisar as inconsonâncias da doutrina no que diz respeito à existência ou não da função social da posse, mas para se chegar até a posse, se faz necessário estudar os conceitos e compreender melhor a propriedade e também sua função social. A propriedade é muito fácil de se conceituar e entender, uma vez que no capitalismo e na sociedade atual ser proprietário, tanto de um bem móvel ou imóvel, é primordial para a sobrevivência e dignidade. A função social da propriedade também se torna mais legítima já que está prevista na Constituição e é protegida pelo âmbito jurídico. Encontra-se dificuldade analítica quando se entra no âmbito da Posse e de sua função social, dado que o estudo da posse é controverso e bastante discutido. Encerrando o primeiro capítulo faz-se o questionamento da existência ou não da função social da posse à luz do que a legislação brasileira elucida sobre a mesma e alguns doutrinadores.

Seguindo, passa-se pelo estudo e análise das matérias constitucionais relacionadas à propriedade, posse e principalmente a moradia. Busca-se aqui analisar os Direitos Fundamentais resguardados pela Constituição Federal e também dá enfoque maior ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o direito à moradia, uma vez que a moradia está diretamente ligada a tal princípio.

Este trabalho tem como objetivo geral a análise da função social da posse à luz da Constituição Federal e identificá-la como protegida e válida pela/para a carta magna, uma vez que a posse tem efetivo poder de garantir a moradia.

2     DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS ACERCA DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE

Para se chegar à discussão acerca da existência ou não do princípio da função social da posse, é necessário que se faça pequenas conceituações acerca da propriedade, abordado no primeiro subtópico, da função social da propriedade, que é positivada na Constituição Federal de 1988, abordado no segundo subtópico, para que então se diferencie a propriedade da posse, conceitue a posse, abordados no terceiro subtópico, e se faça uma análise doutrinária da função social da posse, abordado no último subtópico.

2.1 Da propriedade

A propriedade é uma das instituições mais relevantes no âmbito social, haja vista que desde os primórdios a mesma está enquadrada como necessidade primária do homem. Para Belime apud Nader, a propriedade é tão importante que constitui a base do Direito e da Moral, “pois a distinção entre o meu e o teu é o primeiro princípio da probidade”. (NADER, 2016). Assim sendo, a propriedade acaba se tornando um ponto bastante importante no direito e o centro do direito das coisas. De acordo com Gonçalves, o direito de propriedade é

o poder jurídico atribuído a uma pessoa de usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, em sua plenitude e dentro dos limites estabelecidos na lei, bem como o de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha. (GONÇALVES, 2012b)

No que diz respeito à constituição da propriedade, Gonçalves (2012a) ainda afirma que temos 4 elementos: o direito de usar, que "consiste na faculdade de o dono servir-se da coisa e de utilizá-la da maneira que entender mais conveniente, podendo excluir terceiros de igual uso" (GONÇALVES, 2012a); o direito de usufruir, que consiste no poder de usar e se aproveitar economicamente dos frutos da coisa; o direito de dispor da coisa, que permite a transferência, alienação, divisão e consumação do bem, tendo em vista sempre que o uso da propriedade deve condicionar-se ao bem-estar da sociedade e o último elemento, que é o direito de reaver, consistindo na reinvindicação da coisa em casos de posse injusta. O terceiro direito constitutivo da propriedade fala do condicionamento da propriedade ao bem-estar social, que será analisado no subtópico seguinte.

2.2 Da função social da propriedade

De acordo com Moraes Filho, fora no início do século XX que León Duguit concebeu à propriedade uma função social. O mesmo dizia que os indivíduos possuíam a obrigação de cumprir uma certa função na sociedade em decorrência do lugar ocupado pelos mesmos. Assim, através da propriedade, o indivíduo teria a obrigação de intentar a prosperidade geral caso quisesse ter proteção. Para Duguit apud Gonçalves (2012b):

a propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder.

Com este pensamento, a propriedade deixou de ser uma coisa exclusivamente privada e de apenas provedora de benefícios ao proprietário e passou a requerer de seu detentor atitudes a fim de resultar no crescimento da riqueza geral/social. Logo, o direito à propriedade deve moldar-se de acordo com as necessidades da sociedade para que da mesma obtenha proteção.

No ordenamento jurídico brasileiro, a função social da propriedade teve sua concretização com a Constituição Federal de 1988. Nossa carta magna afirma, no seu art. 5º, inciso XXIII, que a propriedade atenderá sua função social. Para Teori Zavascki apud Judith Martins-Costa (2002), a função social da propriedade é:

um princípio que diz respeito à utilização dos bens, e não à sua titularidade jurídica, a significar que sua força normativa ocorre independentemente da específica consideração de quem detenha o título jurídico de propriedade. Os bens, no seu sentido mais amplo, as propriedades, genericamente consideradas, é que estão submetidas a uma destinação social, e não o direito de propriedade em si mesmo.

Isto posto, com a efetivação da função social da propriedade, o legislador penaliza o não aproveitamento ou subaproveitamento da coisa, além de intervir na propriedade privada, pois, de acordo com Roberto Kaisserlian Marmo apud Nader (2016), a lei "sanciona, em muitas hipóteses, em favor do ser (social), em detrimento do ter (individual)."

2.3 Da posse

O estudo da posse desperta inúmeras dificuldades, discussões e controvérsias. São encontradas dificuldades relacionadas à sua origem na história, a uma fundamentação coerente que embase sua proteção, aos seus elementos, etc. De acordo com Lafaille apud Gonçalves (2012b),

diversas causas têm contribuído para que a posse seja um dos setores mais árduos e mais complicados do Direito Civil. Os problemas que ela coloca são já de si difíceis, tanto no que se refere ao distingui-la de outras figuras, como no que respeita ao regulamentá-la e no organizar a sua defesa. Tudo isto, aliás, se agrava com a anarquia de linguagem que se reflete nos autores e nas próprias leis.

Apesar de ser contraditório o assunto, pode-se dizer que a posse se caracteriza como quando alguém manifesta ou pode manifestar algum dos elementos caracterizadores do direito de propriedade, como o uso, gozo, etc. Assim, se alguém se instala em um imóvel e se mantém no mesmo, de forma branda e pacata, por mais de ano e um dia, firma-se uma situação possessória que assegura direito a proteção. (Gonçalves, 2012b). Estar em posse não significa que o apossado tem direito à mesma. (Nader, 2016). De acordo com Gonçalves (2012b), “a posse é protegida para evitar a violência e assegurar a paz social, bem como porque a situação de fato aparenta ser uma situação de direito. É, assim, uma situação de fato protegida pelo legislador”.

Em linhas gerais, a posse diz respeito a estar apossado da coisa e pode estar enquadrada em duas possíveis situações distintas: 1- onde o possuidor é também proprietário da coisa; e 2- onde o possuidor não é o titular do direito referente àquela posse. No primeiro caso, não há nenhum problema, uma vez que o titular do direito também está em posse da coisa; mas, no segundo caso, há o problema de que o possuidor não é titular daquele direito e pode desencadear na desistência da defesa dos direitos de posse e o possuidor, eventualmente, passará a ter direito àquele bem, através da usucapião, ou ocasionará no verdadeiro titular do direito de propriedade buscando, na justiça, reivindicar a sua propriedade. Assim, enquanto o proprietário não buscar meios legais de desapropriação, o possuidor indevido é protegido pela legislação brasileira.

A conceituação de posse está positivada no direito brasileiro através do Código Civil, em seu artigo 1.196, que considera o possuidor como "todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade” (BRASIL, 2002). Para Gonçalves (2012b), o legislador precisa complementar e informar em quais casos o citado exercício configura posse ou detenção, incluindo o artigo 1.198, que elucida:

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Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.

Parágrafo único. Aquele que começou a comportar-se do modo como prescreve este artigo, em relação ao bem e à outra pessoa, presume-se detentor, até que prove o contrário. (BRASIL, 2002)

Complementando, é trazido por Gonçalves (2012b) o artigo 1.208, que diz: “Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”. Havendo este último artigo já sido comentado.

Apresentado o conceito de propriedade, seu princípio da função social e rapidamente o conceito de posse, entramos agora a um dos ponto principal de discussão deste artigo, onde se questiona a existência ou não da função social da posse, ou se apenas a propriedade possui a mesma.

2.4 Há o princípio da função social na posse?

A função social da posse tem bastante relevância atualmente, haja vista que é através dela que se dá a efetivação constitucional do sexto artigo da Constituição Federal de 1988 "Art. 6º. São direitos sociais a educação (...), o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança (...), na forma desta Constituição." (BRASIL, 1988). Como grifado, é através da função social da posse que se assegura o usufruto do trabalho e da moradia e consequentemente o princípio da dignidade da pessoa humana. Um possível problema neste caso seria apenas a positivação da função social na propriedade, esquecendo-se da posse. Como visto anteriormente, a função social da propriedade está na Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXIII e no Código Civil. Apesar do citado, a falta de positivação não afasta sua base constitucional, tendo em vista que a posse está diretamente ligada à justiça distributiva e redução das desigualdades sociais (FIUZA, SANTOS, 2015). A função social da posse pode ser deduzida da própria função social da propriedade, já que, como observado em tópico anterior, a posse é exatamente o exercício dos direitos do dono.

De acordo com Fiuza e Santos (2015) quando se diz respeito à função social, é evidente que a função social da posse é mais abrangente que a da propriedade, uma vez que a posse abarca muitos outros casos, como é o de locatário, do usufrutuário, o devedor fiduciante, etc. Em todos estes casos, o possuidor não é proprietário, detentor daquele direito, mas a função social da posse funciona como um instrumento de promoção da dignidade humana. Portanto, a posse se torna autônoma em relação à propriedade, se tornando instrumento a fim de promover a dignidade da vida. Os autores exemplificam com os casos de milhares de pessoas que não possuem casa própria dependendo de aluguel “são locatários, possuidores de imóvel residencial alheio. Sua posse deve ser protegida, ainda que contra o próprio dono. ” (FIUZA, SANTOS, 2015). Aí entra a função social da posse, que ampara aqueles que, mesmo não detentores de todos os direitos do proprietário, precisam deste acolhimento. Nesses casos, a posse acaba significando dignidade.

Embora não esteja positivada de forma explícita, como é o caso da função social da propriedade, a função social da posse implicitamente se faz presente na legislação brasileira, como nos casos dos artigos 1.239 e 1.240 do Código Civil:

Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (BRASIL, 2002)

Ambos se tratam da usucapião, que assegura ao possuidor a propriedade do bem contanto que o mesmo o utilize para sua moradia ou trabalho nos casos em que o proprietário não utilize do bem. Nota-se aqui a função social da posse deixando o individualismo de lado e buscando o bem comum como principal função do bem.

Levando em consideração estes aspectos, é possível afirmar que a posse é de extrema importância na sociedade, uma vez que através da mesma se têm a efetivação do supracitado artigo 6º da Constituição Federal de 1988.

Desta forma, aquele possuidor que exerça de forma produtiva a posse de um determinado bem, ou o utilize para sua moradia, mesmo não sendo o proprietário, concretiza a função social da posse, alcançando o objetivo do legislador constituinte e promovendo a dignidade da pessoa humana. (FIUZA, SANTOS, 2015)

3     DAS MATÉRIAS CONSTITUCIONAIS ATINENTES

3.1 Direitos Fundamentais

Para fundamentar e legitimar a ordem social alguns pensadores criaram a figura do contrato social, daí porque são chamados de contratualistas, visto que entenderam que havia necessidade de se pensar porque o Estado existe, porque é criado e qual sua importância. Com o discurso do contrato social não só se fundamenta o Estado como se legitima a sua existência ao lhe conferir extremo valor e relevância porque se entende que ele surge para acabar com as mazelas que a sociedade estaria suscetível se não houvesse quem a organizasse. Como exemplo há o pensamento hobbesiano do estado de natureza, em que predominava a lei do mais forte e não havia garantias, por isso o medo era constante (BOBBIO, 1998; RIBEIRO, 1995).

Em linhas gerais, ao firmar o contrato social as pessoas alienam seus direitos a uma figura que lhe oferece aquilo que no estado anterior elas não possuíam: segurança. Nessa nova ordem as pessoas possuem direitos reconhecidos e, consequentemente, deveres. Dentre esses direitos reconhecidos está o direito de propriedade, tão importante para a burguesia que acabara de ascender. Os deveres existiam para assegurar os direitos, acabar com o medo e assim garantir a segurança. Agora as pessoas podiam possuir algo sem temer que alguém viesse e lhe tomasse. A figura, compreendida como o Estado, passa a ter o legítimo uso da força e empreende tal poder quando alguém não cumpre os seus ditames ou age como se ainda estivesse na ordem anterior (BOBBIO, 1998; RIBEIRO, 1995).

O direito era divido entre direito natural e direito positivo. O natural era aquele decorrente da natureza e pertencente a todos os homens. O positivo decorria do Estado e poderia, na medida em que positivasse, incluir alguns direitos naturais. Por serem decorrentes do Estado os titulares eram aqueles que possuíam vínculo jurídico com o mesmo. Por isso, para Locke, ao firmarem o contrato social os indivíduos apenas concordam em formar a sociedade civil, sem aceitar serem controlados, por possuírem o desejo de preservar e consolidar os direitos naturais sob a proteção de uma norma (BOBBIO, 1998).

Dimitri Dimoulis (2014, p. 28) ao conceituar direitos humanos diz que: “Em âmbito internacional, a expressão indica o ‘conjunto de direitos e faculdades que garantem a dignidade da pessoa humana e se beneficiam de garantias internacionais institucionalizadas’”. Os direitos humanos estão atrelados à ideia de direito natural. Impossível falar de direitos fundamentais sem perpassar pelos direitos humanos, visto que os fundamentais são entendidos como aqueles direitos humanos reconhecidos e disciplinados na ordem interna de um país (DIMOULIS, 2014).

É inegável a força que os direitos humanos ganharam após os catastróficos eventos da Segunda Guerra Mundial e isso porque os atos alemães apesar de terem sido cruéis estavam sob a égide da lei. Daí porque consolidar direitos de tutela universal que, por assim o ser, não estão atrelados a uma Constituição e, consequentemente, a um Estado (ALEXY, 2015). Apesar dessa internacionalização os estados nacionais continuam a ser “a principal força protetora dos direitos humanos que encontraram respaldo constitucional positivo, transformando-se em direitos fundamentais, ou seja, normas jurídicas supremas dentro do Estado que vinculam todas as autoridades constituídas” (DIMOULIS, 2014, p. 29). Ainda sobre o tema:

Direitos fundamentais são direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual (DIMOULIS, 2014).

3.2 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Ao tratar de princípio se faz necessário realizar a sua distinção em relação às regras. Em linhas gerais princípios possuem texto aberto e demandam um esforço interpretativo maior para que seja dado o seu sentido. Por sua vez, as regras também demandam um esforço interpretativo, porém ele é bem menor se comparado aos princípios porque o seu sentido está, por assim dizer, mais claro (NETO; SARMENTO, 2012). Definindo a dignidade da pessoa humana:

[...] é uma qualidade intrínseca, inseparável de todo e qualquer ser humano, é característica que o define como tal. Concepção de que em razão, tão somente, de sua condição humana e independentemente de qualquer outra particularidade, o ser humano é titular de direitos que devem ser respeitados pelo Estado e por seus semelhantes. É, pois, um predicado tido como inerente a todos os seres humanos e configura-se como um valor próprio que o identifica (DUARTE, 2008, p. 15).

Entende-se que o homem sem dignidade perde a sua característica principal, o que o torna quem ele é. Ele se reduz a mero “objeto inanimado e morto” (OLIVEIRA apud DUARTE, 2008, p. 15). A falta de dignidade também põe em xeque a igualdade, uma vez que não se concebe a ideia de pessoas com um grau maior de dignidade. Assim, a dignidade além de inerente ao homem é também inalienável (DUARTE, 2008, p. 16). Ou seja, no momento da feitura do contrato social, relembrando os contratualistas, em momento algum se cogita a sua transferência porque não há Estado sem sociedade, sociedade sem pessoas e pessoas sem dignidade.

Em relação aos direitos fundamentais tal princípio é entendido como aquele que “ilumina o universo de direitos” (PIOVESAN apud DUARTE, 2008, p. 16), ou seja, todos os direitos existentes são irradiados por tal princípio. Alguns autores defendem, inclusive, que ele é um princípio hierarquicamente superior, como Taciana Duarte (2008, p. 17) afirma em seu trabalho. Contudo, é consolidado que não existe hierarquia entre normas constitucionais, logo não existe também hierarquia entre princípios constitucionais (NETO; SARMENTO, 2012).

É justamente a DUDH que o consolida e lhe impõe o caráter de princípio orientador central de textos constitucionais e direitos. Essa consolidação, assim como a própria Declaração, surge da necessidade decorrente dos eventos ocorridos entre 1939 e 1945. Tornou-se imprescindível a homogeneização de “valores éticos aos ordenamentos jurídicos”. Com a intenção de tornar compreensível que ainda que os países sejam soberanos, existem determinadas coisas que são tão substanciais que possuem tutela universal, logo devem ser respeitadas por todas as constituições daí porque o princípio se torna o âmago dos direitos humanos (PIOVESAN apud DUARTE, 2008, p. 19).

3.3 Direito à moradia

O direito à moradia está inserido no rol de direitos fundamentais de segunda dimensão no que tange ser um direito social. É um direito que possui “forte carga humanitária” (p. 39) por ser compreendido como pressuposto da dignidade da pessoa humana, ou seja, sem moradia o homem não pode viver com dignidade visto que a moradia é a base para a fruição de outros direitos concernentes às atividades básicas imprescindíveis para se viver (IRENO JÚNIOR, 2008). Conceituando:

[...] pode ser sumariamente conceituado como a prerrogativa atribuída a toda pessoa de ocupar por tempo razoável um imóvel no qual possa se proteger das intempéries, e, com resguardo da intimidade, praticar os atos elementares da vida como a alimentação, o repouso, a higiene, a reprodução, a convivência etc (CUNHA apud IRENO JÚNIOR, 2008, p. 39).

Além de constar na Declaração Universal de Direitos Humanos o direito aparece também no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil em 1992. A ratificação do Pacto importa porque supre o déficit de eficácia jurídica, inclusive coercitiva, da DUDH. Isso porque a Declaração é uma resolução e não um tratado, logo não é imperativa em relação aos Estados-Partes (IRENO JÚNIOR, 2008, p. 40). No artigo 11° do Decreto decorrente do PIDESC:

Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento (BRASIL, 1992).

No cenário brasileiro somente após a Emenda Constitucional n°26, de 14 de fevereiro de 2000, foi que expressamente consagrou-se tal direito como fundamental. Tal emenda alterou a redação do artigo 6° da CF/88 inserindo a moradia como um dos direitos sociais (BRASIL, 2000). Segundo Ireno Júnior (2008, p. 41-42) mesmo antes de tal emenda é possível notar que o país entende a moradia como um direito fundamental atrelado à própria noção de dignidade humana ao estabelecer o Sistema Financeiro da Habitação em 1964. Ora, o Sistema possui o objetivo justamente de viabilizar a aquisição de moradia, principalmente pela camada mais pobre da população por querer a eliminação de moradias precárias que, por assim o ser, colaboram para uma subvida (BRASIL, 1964). Ainda sobre o tema Ireno Júnior (2008, p. 43) afirma:

[...] parece evidente que um direito fundamental à moradia pode ser extraído sem dificuldades do conjunto de princípios que orientam a carta de 1988 (arts. 1° e 3°), com destaque para o princípio da dignidade da pessoa humana, que restaria totalmente esvaziado em seu conteúdo caso não se garantisse à universalidade de seus destinatários, como ente individual ou integrante de uma unidade familiar, uma moradia digna para o seu abrigo, instrumento indispensável para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e para o gozo de outros direitos fundamentais (saúde, liberdade, segurança, intimidade etc).

4     DISCUSSÕES RELEVANTES SOBRE O TEMA

4.1 Sobre posse, propriedade e suas respectivas funções sociais

Por todo o exposto, percebe-se que posse e propriedade estão intrinsicamente conectadas, porém trata-se de institutos autônomos e independentes. Por isso, posse e propriedade podem existir de forma isolada. Entretanto, para Sérgio Luiz Gonçalves (2014): “só que a propriedade sem a posse é como um recipiente oco, vazio, tendo em tal situação econômica e social limitadas”. Isso porque a posse é conteúdo do direito de propriedade, portanto para que a propriedade cumpra sua função social e seja juridicamente protegida ela precisa da posse.

Por outra perspectiva, não é possível falar em posse abstrata uma vez que “a posse não sobrevive sem a realidade de sua existência” (p. 43). Porém, é possível falar em propriedade abstrata já que a propriedade pode sobreviver sem o exercício da posse se considerar o título aquisitivo. Se mesmo sem o uso a propriedade se mantém então é cabível dizer que é mais claro a função social da posse até porque, como expresso anteriormente, ela é meio para a fruição de direitos fundamentais atinentes a funções vitais para o homem (GONÇALVES, 2014).

Mais claro no que tange dizer que se apenas considerando o título aquisitivo, que é um formalismo para o ordenamento jurídico, pode se falar em propriedade, mas não é possível o oposto, ou seja, abstrair a posse, torna-se imprescindível que ela de fato exista e a sua própria existência é meio para que necessidades vitais sejam atendidas e essa necessidade demonstra a importância da posse para a sociedade (GONÇALVES, 2014).

Ainda que a função social da posse não esteja explícita na Constituição e seja tratada apenas com princípios constitucionais positivados, ela deve ser interpretada à luz da Magna Carta. Como citado diversas vezes, ela é meio hábil para concretização de direitos fundamentais e ao mesmo tempo colabora para a efetivação da função social da propriedade. Entende-se essa última parte com base em decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que julgou que a função social da posse prevalece em relação a da propriedade se, mesmo que atendida sua finalidade econômica, não se atender a sua função social (TEPEDINO apud GONÇALVES, 2014).

Assim, a função social da posse visa atender a “necessidade individual” e também “proporcionar vantagens para o bem comum” (p. 42). Não basta só o contato do homem com a terra, é preciso que haja o aproveitamento do solo pelo trabalho do homem de acordo com o que ele e a sociedade desejam e o fruto, dessa transformação por ele gerada, é aproveitado por todos (GONÇALVES, 2014). Ainda sobre o tema:

[...] a função social da posse não determina apenas a “juridicização” de um fato social – do fato da posse em si -, tampouco um efeito da posse, mas constitui exigência de sistematização das situações patrimoniais de acordo com a nova ordem constitucional, no âmbito de uma Constituição normativa que pretende seja real e efetiva, muito menos condicionada aos fatores do poder e a um destino de simples folha de papel, do que em condicionar e realizar sua força no sentido do bem comum, tendo por base o princípio da igualdade e dignidade da pessoa humana (ALBUQUERQUE apud GONÇALVES, 2014).

4.2 Sobre o direito à moradia

“O direito à moradia pode ser classificado como fundamental, social, expressamente positivado, individual, à prestação e de personalidade” (p. 138). No que tange ser direito social, o direito à moradia é assim classificado porque para o homem importa na garantia real de sua liberdade e igualdade, ou seja, o homem deve ser livre, assim como deve lhe ser destinado as mesmas oportunidades de acesso aos bens essenciais para viver dignamente. Por sua vez, para o Estado importa em trabalhar para que esses objetivos sejam alcançados e esse trabalho ocorre através de políticas públicas (IRENO JÚNIOR, 2008).

No que tange ser um direito à prestação, assim é classificado porque se precisa que o Estado aja para que ocorra a sua fruição. Esse agir estatal ocorre quando o Estado faz prestações materiais como, por exemplo, instituir políticas públicas voltadas à moradia. Um exemplo de trabalho estatal desse tipo é o chamado “Minha Casa, Minha Vida” que se trata de uma iniciativa do governo federal que objetiva dar casa própria para famílias de baixa renda que até então viviam em condições precárias (IRENO JÚNIOR, 2008).

A prestação mencionada anteriormente não se resume a isso. Não se trata apenas de prestações materiais, mas também normativas. Essas prestações normativas importam para a promoção do direito e sua própria viabilização. Além disso, é possível afirmar que ele possui “relevante função de defesa” (p. 138) porque implica que o Estado não obste seu exercício, ou seja, o Estado deve respeitar o direito e esse caráter é essencial para que seja declarada inconstitucional e/ou ilegal determinada atuação que por ventura ofenda o conteúdo mínimo do direito (IRENO JÚNIOR, 2008).

5     CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho intentou desenvolver o questionamento acerca da relevância do princípio da função social da posse para a concretização direito à moradia na perspectiva de que essa concretização promove a dignidade humana. Foi imprescindível adentrar em determinadas discussões doutrinárias sobre temas atinentes ao conteúdo do trabalho. Tentou-se discuti-las da melhor maneira possível para que fossem explicadas sem ser de forma prolixa por entender ser desnecessário agir de tal forma. Primeiro foram trabalhados os que estavam diretamente relacionados aos direitos reais, após adentrou-se as matérias constitucionais.

O princípio da dignidade da pessoa humana, além de orientar a Constituição vigente, é o fundamento do contravertido princípio da função social da posse e também do direito à moradia. O primeiro existe pela necessidade social de que aquele que possua um pedaço de terra faço uso dele, o transforme e o que se consegue com esse trabalho seja usufruído pela coletividade. O segundo é uma decorrência histórica que objetiva bem mais que ter um abrigo, mas ter um abrigo digno capaz de dignificar aquele que o possui.

Em síntese os institutos supracitados estão relacionados com a dignidade humana porque além de ser por ela fundamentados, visam a sua própria promoção. O direito à moradia é um direito meio, ou seja, é um direito que possui existência própria, mas ao mesmo tempo é fundamento para a concretização de outros direitos também autônomos. E os direitos que no fim o direito à moradia ajuda a serem concretizados tornam digno o ser humano.

Em que pese a função social da posse, ela permite a aquele que possui viver com dignidade porque ele se torna capaz de garantir a sua sustentação mediante o seu trabalho desenvolvido naquele pedaço de terra. Além disso, o fato dele possuir remete a moradia, porque posse é diferente de ter, como aqui foi trabalhado. Não se tem, se possui, se usa, se melhora, se transforma, se melhora e ao realizar tudo isso o mesmo acontece com o indivíduo e consequentemente com a sociedade, tendo em vista o caráter da função social da posse em relação a coletividade.

 

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. 673 p. Tradução de: Virgílio Afonso da Silva.

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______. Institui a correção monetária nos contratos imobiliários de interesse social, o sistema financeiro para aquisição da casa própria, cria o Banco Nacional da Habitação (BNH), e Sociedades de Crédito Imobiliário, as Letras Imobiliárias, o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo e dá outras providências. Lei N° 4.380, de 21 de Agosto de 1964.

______. Institui o Código Civil. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 18 mar. 2017.

BOBBIO, Noberto. Locke e o Direito Natural. Imprenta: Brasília, Universidade de Brasília, 1998.

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