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A tutela de urgência nos casos de obesidade mórbida, após o advento do Código de Defesa do Consumidor e da lei 9656/96

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Agenda 04/01/2007 às 00:00

Cresce o número de obesos que buscam a intervenção do Poder Judiciário para lhes assegurar a manutenção/restauração de sua saúde, o direito à vida e à dignidade da pessoa humana.

Resumo: O presente trabalho analisa a relação jurídica havida entre as operadoras de planos e seguros de saúde e seus beneficiários portadores de obesidade mórbida, para determinar se tais instituições estão ou não obrigadas a autorizar o tratamento médico hospitalar a seus usuários, e como deverá se dar a prestação jurisdicional quando houver o litígio. Tal análise enfatizará na abordagem, seguindo um método hipotético dedutivo monográfico qualitativo, a Lei federal 9656/96 e o Código de Defesa do Consumidor, nada obstante o necessário exame da Constituição Federal, além do posicionamento dos Tribunais brasileiros. Iniciaremos a monografia com algumas colocações propedêuticas à luz da principiologia e dos conceitos específicos que irão permear o texto. Em seguida, abordaremos os contratos de planos de saúde, desde a origem histórica no Brasil, permeando a classificação do instituto para, após, enfocar a obesidade mórbida propriamente dita, sua história, diagnóstico, classificação, riscos e formas de tratamento. Assim, buscando identificar nela o periculum in mora na hipótese, aspecto que será tratado por fim, visaremos esclarecer os requisitos jurídicos destas tutelas de urgência, suas modalidades, pressupostos e a possibilidade de fungibilidade entre elas. Após esta explanação, esperamos esclarecer o problema central deste trabalho, suscitado no início deste parágrafo, demonstrando que a Lei que regula os planos de saúde e o CDC obrigam estas instituições a tratarem os usuários portadores da obesidade mórbida, e que tal direito, dissociado das tutelas de urgência, não teria como se materializar.

Palavras-chave: : : Tutela de urgência / Obesidade mórbida.

Sumário: 1. Introdução 2. Colocações propedêuticas 2.1 A tutela constitucional 2.2 O Código de Defesa do Consumidor 2.2.1 Dos princípios consumeristas 2.3 A lei dos planos de saúde e a legislação específica 2.4 Breves noções da teoria geral dos contratos 2.4.1 Conceito e evolução histórica 2.4.2 Requisitos 2.4.3 Princípios contratuais 2.4.4 Novas manifestações contratuais 2.4.5 Formação dos contratos 3. Do contrato de plano de saúde 3.1 Conceito 3.2 Espécies 3.3 Classificação 3.4 Da aplicabilidade do CDC 3.5 Limites de cobertura e a obesidade 3.6 Responsabilidade das operadoras de plano de saúde pela negativa imotivada a tratamento 4. Da obesidade mórbida 4.1 Conceito 4.2 Diagnóstico e classificação 4.3 Fatores determinantes para evolução da patologia 4.4 Riscos e co-morbidades 4.5 Principais formas de tratamento disponíveis 4.6 Resultados esperados 5. Das tutelas de urgência 5.1 Noções gerais 5.2 Espécies 5.3 Estudo comparado 5.4 Pressupostos e características 5.5 Fungibilidade entre as tutelas de urgência do CPC 5.6 A tutela de urgência prevista no código de defesa do consumidor 5.7 Da responsabilidade civil do beneficiário da tutela de urgência 5.8 Entendimento jurisprudencial 6. Conclusão 7. Referências Anexo I: Portaria 1.075/GM do Ministério da Saúde Anexo II: Resolução CFM N° 1.766/05 do Conselho Federal de Medicina


1. INTRODUÇÃO

Irresignados com o tratamento desrespeitoso e contrário ao que determina a Constituição Federal e o que negociaram ao contratar seu plano de saúde, cresce o número de obesos que buscam a intervenção do poder judiciário para lhes assegurar a manutenção / restauração de sua saúde, o direito à vida e à dignidade da pessoa humana.

No século XIX, quando a culinária primava pelo alto teor de calorias, a Marquesa de Santos personificava a sedução feminina de formas arredondadas e flácidas. Hoje, a obesidade é um problema de saúde, reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o mal do século, uma vez que afeta, indistintamente, homens e mulheres, pobres e ricos, brancos pretos, amarelos e vermelhos, católicos, espíritas e evangélicos, novos e velhos, interferindo não apenas nas atividades sociais e cotidianas do homem, o que, por si só já seria bastante grave, mas também tem causado grande limitação para o exercício das atividades laborais, sofrimento físico e espiritual e diversas co-morbidades associadas, que reduzem a expectativa e a qualidade de vida, além de privar-lhes de relacionamentos afetivos.

O Estado e os planos de saúde, por muito tempo, entendiam a obesidade como um problema estético, a ser tratado às expensas do paciente. Hoje, contudo, com o alastramento desta doença e o avanço das técnicas de tratamento e das pesquisas médicas, não há mais como se afastar a classificação da obesidade, e em especial da obesidade mórbida, como patologia grave cujo tratamento independe da força de vontade do paciente, que acaba fraquejando nas restrições alimentares e sociais e acaba por recuperar o peso perdido, ultrapassando o limite anterior, em um fenômeno conhecido como "efeito sanfona", que causa outros tantos males.

Apesar de reconhecida como doença e de sua gravidade, contrariando a Constituição Federal, que em seu art. 109. define como função do Estado promover a saúde do cidadão, as operadoras de plano e seguro de saúde têm se negado a custear o tratamento da doença, obrigando os pacientes a solicitarem a intervenção estatal, o que o fazem através das tutelas de urgência, na modalidade cautelar ou tutela antecipada, abarrotando a justiça com inúmeras demandas.

Contudo, não basta terem surgido critérios, objetivos inclusive, para se diagnosticar a obesidade. Segundo a Organização Mundial da Saúde, para se determinar o grau de risco e comprometimento da obesidade, deve-se calcular seu Índice de Massa Corpórea, de forma objetiva, pela fórmula IMC = Peso/Altura2, onde o IMC entre 20 e 25 é tido como normal, entre 25 e 30, sobrepeso, entre 30 e 35, obeso, de 35 a 40, obesidade severa e acima de 40, a obesidade mórbida.

Ter o reconhecimento pela comunidade médica e científica de que a obesidade mórbida é uma patologia grave e que necessita de medidas de tratamento drásticas e urgentes, como será amplamente demonstrado neste trabalho, não tem assegurado aos usuários de planos de saúde portadores deste mal o tratamento esperado.

Para ver sua saúde restaurada e sua vida preservada, além de tantos outros direitos e garantias restabelecidos, os usuários anteriormente descritos precisam ainda enfrentar uma prestação jurisdicional morosa e burocrática. A solução deste conflito conciliando a urgência dos obesos com as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa só podem ser alcançados em nosso ordenamento através das tutelas de urgência.

Neste sentido, o presente trabalho pretende esclarecer se existe ou não a obrigação das operadoras de plano de saúde de custearem o tratamento médico/hospitalar de seus beneficiários, e como deverá se dar a prestação jurisdicional quando houver o litígio. Para atingir tais objetivos, utilizaremos o método hipotético dedutivo monográfico qualitativo e iniciaremos com algumas colocações propedêuticas, onde traremos os principais princípios e conceitos que irão permear o texto, e, em seguida, abordaremos os contratos de planos de saúde, com seus elementos histórico, e classificação, para, após, enfocarmos a obesidade mórbida, sua história, diagnóstico, classificação, riscos e formas de tratamento, buscando identificar nela a caracterização do periculum in mora, requisito necessário para a concessão da tutela de urgência, tema que será tratado por fim, com vistas a esclarecer os aspectos jurídicos destas tutelas, suas modalidades, pressupostos e a possibilidade de fungibilidade entre elas. Toda esta abordagem será pautada sob o prisma do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e da lei 9.656/98 que regula as operados de plano e seguro de saúde, além de analisarmos diversos julgados selecionados. Após esta explanação, esperamos esclarecer a questão suscitada no início deste parágrafo, demonstrando que a Lei que regula os planos de saúde e o CDC obrigam estas instituições a tratarem os usuários portadores da obesidade mórbida, e que tal direito, dissociado das tutelas de urgência, não teria como se materializar.


2. COLOCAÇÕES PROPEDÊUTICAS

Para determinar se as operadoras de plano de saúde estão ou não obrigadas a custear o tratamento médico / hospitalar de seus beneficiários portadores de obesidade mórbida, não basta a constatação da gravidade do problema, deve-se, ainda, apreciar o vínculo obrigacional existente entre as partes e os diplomas jurídicos que regulam tais relações jurídicas, que no caso em tela são a Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei 9656/98, que trata dos planos e seguros de saúde, para se demonstrar a real existência do direito que se pretende tutelar.

Neste sentido, importante se faz realizar um estudo comparado para se vislumbrar a posição adotada nos outros países, em especial na Europa, berço da civilização, além do posicionamento dos Tribunais, enquanto aplicadores do direito material, e do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Medicina, posto que este tema transcende o mundo jurídico, afetando as ciências da saúde.

Mas antes mesmo de se aprofundar nestes debates, imperioso se apresenta destacar previamente os princípios e conceitos que norteiam o direito tutelado e o tema em questão, o que será feito a seguir.

2.1. A TUTELA CONSTITUCIONAL

Os direitos à vida, à dignidade da pessoa humana e à saúde dos portadores de obesidade mórbida que se pretende proteger mediante a tutela de urgência é de tão relevante importância que o legislador constituinte cuidou de registrá-los na Carta Magna do país, a Constituição Federal de 1988, conhecida como a Constituição Cidadã, ao positivar os princípios da dignidade da pessoa humana, do direito à vida e à saúde.

O Princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, inc. III da Constituição Federal, teve sua prova inequívoca de aplicação e amplitude no clássico episódio ocorrido na França envolvendo o espetáculo de lançamento de anões1, que foi interditado por violação direta de tal instituto, o qual não pode sequer ser renunciado pela parte, constituindo direito da personalidade.

Considerado por doutrinadores, como o mestre Rizzatto Nunes (2005, p.128) como o princípio maior da Constituição Federal, mas, para tanto, deve ser feita uma leitura do sentido de dignidade, e, para tanto, faz uso o retromencionado autor de um conceito criado pelo professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo, que é o do piso vital mínimo, pois, segundo ele, ninguém terá sua dignidade preservada se não tiver acesso a seus direitos sociais, como educação, saúde, trabalho, lazer, segurança e tantos outros previstos no art. 6° e no art. 225, ambos da carta magna de 1988.

Se, por um lado, o termo dignidade não enseja um conceito claro e inequívoco, o que a prima face poderia ser visto como uma limitação a sua aplicação, por outro, constitui uma garantia de sua permanente atualidade, pois não se pode esquecer que há apenas poucas décadas, a mulher e, antes disso os negros e índios, sequer eram considerados seres humanos, sendo alvo de toda sorte de maus tratos, humilhações, preterições e privações.

Desta forma, negar aos portadores desta patologia a oportunidade de terem um estereótipo socialmente aceito e classificado como normal pelo homem médio quando este tem direito a tal tratamento, é inaceitável e colide diretamente com o direito à dignidade da pessoa humana.

Os direitos à vida e à saúde, por sua vez, encontram-se previstos nos artigos 5º, caput e 6º, ambos do mesmo diploma legal, e devem ser interpretados juntamente com o princípio anterior, pois quando a carta magna garante o direito à vida, não se refere simplesmente a manter-se vivo, mas a lhe ser assegurada uma vida digna, com todos os elementos subjetivos acima referidos, com respeito aos demais princípios e elementos do ser humano, como sua imagem, e, neste sentido, oportuna se faz a transcrição abaixo:

Basta lembrar o estranho debate sobre a proibição de fumar em recintos fechados, como restaurantes, para verificar o quanto de desrespeito e desconhecimento há. O ar que se respira num local público é típica questão de meio ambiente, que implica a possibilidade de afetar a saúde dos indivíduos. A proibição de fumar em restaurantes é obviamente legal, e está de acordo com o texto constitucional, que determina que tanto o Poder Público quanto a própria coletividade lutem pela preservação da sadia qualidade de vida. (NUNES, 2005, p.41)

Mister se faz, ainda, chamar a atenção para a relevância destas normas constitucionais, pois o fundamento comumente apontado pelas operadoras de plano e seguro de saúde para a não autorização do tratamento médico hospitalar a seus beneficiários, e em especial os portadores de obesidade mórbida, têm cunho meramente financeiro.

Assim, não há como se criar um paralelo entre o direito à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana, com a preservação das exorbitantes taxas de lucro destas empresas, pois a desproporcionalidade entre tais valores é incomensurável. Ademais, o lucro e o prejuízo fazem parte do risco do negócio, e só cabe ao empresário.

Além destes princípios, cuidou a Constituição Federal de estabelecer, em seu art. 5°, XXXII, e no art. 170, V, a defesa do consumidor, o que constituiu uma inovação nas constituições brasileiras, embora, no estudo comparado, a primeira inserção constitucional visando a proteção do consumidor se deu na Constituição portuguesa de 1976, e, em seguida, na Constituição espanhola de 1978. (BULOS, 2005, P.214)

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Das tentativas de se combater a eficácia destas normas, que foram reguladas pela Lei 8078/90, de 11 de setembro de 1970, dentre as quais a que ganhou maior destaque, pela amplitude de seus efeitos, foi a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n° 2.591, que tentou afastar a submissão das instituições financeiras ao CDC, cujo julgamento segue transcrito.

Código de Defesa do Consumidor. Art. 5º, XXXII, da CB/88. Art. 170, V, da CB/88. Instituições financeiras. Sujeição delas ao Código de Defesa do Consumidor, excluídas de sua abrangência a definição do custo das operações ativas e a remuneração das operações passivas praticadas na exploração da intermediação de dinheiro na economia [art. 3º, § 2º, do CDC]. Moeda e taxa de juros. Dever-poder do Banco Central do Brasil. Sujeição ao Código Civil. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor. [...] Ao Conselho Monetário Nacional incumbe a fixação, desde a perspectiva macroeconômica, da taxa base de juros praticável no mercado financeiro. O Banco Central do Brasil está vinculado pelo dever-poder de fiscalizar as instituições financeiras, em especial na estipulação contratual das taxas de juros por elas praticadas no desempenho da intermediação de dinheiro na economia. Ação direta julgada improcedente, afastando-se a exegese que submete às normas do Código de Defesa do Consumidor [Lei n. 8.078/90] a definição do custo das operações ativas e da remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras no desempenho da intermediação de dinheiro na economia, sem prejuízo do controle, pelo Banco Central do Brasil, e do controle e revisão, pelo Poder Judiciário, nos termos do disposto no Código Civil, em cada caso, de eventual abusividade, onerosidade excessiva ou outras distorções na composição contratual da taxa de juros.

(ADIN 2.591, Rel.p/ o ac. Min. Eros Grau, julgamento em 7-6-06, DJ de 29-9-06) (Grifo nosso)

2.2. O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Antes de se adentrar no suporte jurídico que o Código de Defesa do Consumidor dá para a solução dos conflitos entre as operadoras de planos e seguros de saúde e seus beneficiários portadores de obesidade mórbida, é imprescindível verificar se existe ou não uma relação de consumo entre eles, e para isto deve-se analisar seus elementos, previstos nos arts. 1º a 3º do referido diploma legal, a seguir transcritos:

Art. 1° O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48. de suas Disposições Transitórias.

Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

[...]

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. (grifos nossos)

Isto posto, basta a simples leitura de tais dispositivos para se tornar evidente a natureza consumerista da relação entre operadoras de planos de saúde e seus usuários, sendo portanto aplicável o CDC e demais normas e princípios de proteção ao consumidor para resolver tais litígios.

2.2.1. Dos princípios consumeristas

Uma vez demonstrado ser, a relação em estudo, consumerista, e, portanto, sujeita ao Código de Defesa do consumidor, os princípios mais significativos que guardam relação com o tema em apreço, são o da efetividade, da prevenção dos danos, da publicidade e do dever de informação, dentre outros, a seguir tratados.

O legislador instituiu como meta maior da Política Nacional das Relações de Consumo, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, no caput do art. 4° do CDC, além de, seguindo o modelo da Constituição Federal, ao tratar dos direitos básicos do consumidor, no art. 6° do mesmo diploma legal, começar pela a proteção à vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços, posto que a vida é o bem máximo e condição primeira a ser observada e a saúde, o principal instrumento mantenedor da vida, positivando desta forma os princípios de proteção à vida e à saúde, para que não reste dúvida ao intérprete do dever do fornecedor de zelar por estes bens jurídicos.

Neste sentido, e já tangenciando o tema objeto deste trabalho, a saúde do ser humano funciona como uma engrenagem, da qual o funcionamento adequado de uma parte pressupõe o bom funcionamento do restante.

Não há que se falar em tratar um problema expondo o paciente ao risco concreto de outras complicações, posto que quando se contrata um Plano de Saúde, não se está a buscar o tratamento de uma determinada doença, mas sim à manutenção da sua saúde como um todo e da própria vida, de forma que, submeter o paciente a um tratamento diverso do que seu médico, após acompanhar seu caso e estudar seus exames, conhecidas as peculiaridades do caso concreto e não em um modelo abstrato, entendeu ser o mais adequado de forma a preservar-lhe a saúde física e mental, bem como sua dignidade, simplesmente por ser esta técnica mais cara que outra, é por o lucro acima da vida humana.

O Código de Defesa do Consumidor buscou ainda, além de todas estas garantias e de outras mais, dar verdadeira efetividade na proteção ao consumidor, dando ao consumidor mecanismos que garantam sua real proteção, e, dentre, estes institutos tem-se a tutela de urgência prevista no art. 84. do referido diploma legal e que será devidamente tratado no Capítulo 5 deste trabalho, de caráter processual, bem como a proteção contra o abuso do poder do fornecedor, refletida em normas de natureza material, como a regra inserta no art. 51, segundo a qual, havendo no contrato cláusula que implique na renúncia a direito, como regras de tratamento em desacordo com a Lei dos Planos de Saúde já referida, deverá a cláusula ser considerada nula de pleno direito, como se não escrita fosse, pois, como demonstra o parágrafo primeiro deste citado artigo, cominado com seu inciso segundo, presume-se exagerada, entre outros casos, a vontade que restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual.

O Código Civil, a seu tempo, através seus arts. 423. e 424, estabelece ainda, que, sendo os instrumentos de vínculo entre as partes um contrato de adesão, como o é o contrato de plano de saúde, havendo cláusulas ambíguas ou contraditórias, ou ainda que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio, deverá ser adotada a interpretação mais favorável ao aderente. Já na segunda hipótese, tais cláusulas serão consideradas nulas e, portanto, como não escritas.

As operadoras de plano e seguro de saúde, quer pelas propagandas veiculadas nos meios de comunicação ou através de panfletos, quer pela ação de seus prepostos, que na hipótese estudada se materializa na figura da equipe de vendas, costumam oferecer uma proteção integral a seus beneficiários, em uma ampla rede de hospitais e clínicas credenciadas.

Contudo, no momento em que solicitam autorização para a realização de serviços médico/hospitalares, diversos obstáculos são criados para a não concessão deste benefício, sendo suscitado inclusive ausência de direito, o que já foi demonstrado ser inverossímil, pois, como se não bastassem as disposições legais já relatadas, os artigos 30 e 34 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), cominados, estabelecem que a propaganda, vinculada ou feita por seus prepostos, se vincula ao contrato mantido entre as partes, atribuindo-lhes os mesmos elementos obrigacionais das cláusulas escritas.

Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.

[...]

Art. 34. O fornecedor do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes autônomos.

Não obstante esta proteção ao consumidor ser bastante ampla, a oferta, quando válida, vincula seu emissor, mesmo quando a relação não for consumerista, com fulcro no art. 427. do Código Civil vigente.

O dever de informação, positivado no art. 6°, inc. III do CDC, garante ao consumidor o direito de ter acesso a informações claras e precisas, em consonância com os ditames da realidade atual. onde informação é poder, até mesmo o poder de escolha, mas, acima de tudo, uma garantia do consumidor contra qualquer ato ou procedimento que atente contra seu direito à informação, o que passou a ser ilegal após a vigência da Lei 8078/90.

Mas não basta que haja a informação e que ela esteja disponível ao consumidor para que o fornecedor veja respeitada tal obrigação, é preciso mais, deve a informação ser ampla, substancial, extensiva a todos os aspectos da relação de consumo desenvolvida e tem de ser acessível ao consumidor, posto que, o processo de comunicação só é eficaz quando o receptor decifra a mensagem enviada pelo emissor.

Assim, deve o conjunto de informações destinadas ao consumidor serem redigidas, ou transmitidas, de forma a que este possa efetivamente conhecer o produto ou serviço que está contratando, seus riscos, limitações, vantagens e características.

Positivado no art. 6°, VI, e nos arts. 12. usque 25, dentre outros, o princípio da prevenção e da reparação de danos deve ser repartido em dois, por uma questão didática, a prevenção de um lado e, do outro, a reparação, que se manifesta quando o primeiro falhou, mas que, enquanto pese sua relevância e dos desdobramentos que poderiam advir, como a responsabilidade civil objetiva do fornecedor, uma abordagem com a profundidade que o tema requer e a paixão que dele exala, além de ser por si só tema para um trabalho desta natureza, constituiria fuga do tema, razão pela qual só será tratado neste tópico a prevenção.

Uma vez delimitado o foco desta abordagem, mister se faz destacar a amplitude deste dever de prevenção de danos, posto que envolvem danos morais e materiais, individuais, coletivos e difusos, trazendo para a cobertura do manto de proteção do CDC uma infindável gama de bens jurídicos, e que o Código de Defesa do Consumidor buscou garantir ao consumidor, em razão de sua hipossuficiência, de mecanismos eficazes de combate aos abusos praticados pelos fornecedores, re-equilibrando o poder das partes nesta luta, que pode ser comparada ao combate mitológico entre Davi e Golias.

2.3. A LEI DOS PLANOS DE SAÚDE E A LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA

Com a entrada em vigor da Lei 9.656, em 03 de junho de 1998, houve uma reestruturação do mercado de planos e seguros de saúde, que antes era regido pelo Decreto-Lei n° 73, de 21 de novembro de 1966, através da padronização dos produtos ofertados pelas diversas empresas do setor, sendo instituído inclusive o plano-referência de assistência à saúde, com a redação atribuída a seu art. 10. pela medida provisória nº 2.177/44, de 24 de agosto de 2001, abaixo transcrito:

Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12. desta Lei, exceto: (Grifo nosso)

A simples leitura deste dispositivo, associada à leitura da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde 10ª RevisãoCID-10 (em especial os itens E 66.0 Obesidade devida a excesso de calorias, E 66.1 Obesidade induzida por drogas, E 66.2 Obesidade extrema com hipoventilação alveolar, E 66.8 Outra obesidade e E 66.9 Obesidade não especificada), torna inequívoca a obrigação dos planos e seguros de saúde de autorizarem tratamento médico hospitalar a seus beneficiários portadores de tal patologia.

Aliado a esta orientação normativa, o Ministério da Saúde expediu a Portaria nº 1.075, publicada em 04 de julho de 2005, instituindo diretrizes para a atenção ao portador de obesidade, a serem implantadas em todas as unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão.

O Conselho Federal de Medicina, por sua vez, expediu a Resolução CFM N° 1.766/05, publicada no D.O.U. em 11 de julho de 2005, na Seção I, p. 114, que estabelece normas seguras para o tratamento cirúrgico da obesidade mórbida, definindo indicações, procedimentos aceitos e equipe, sendo sua principal contribuição a estipulação dos critérios indicativos para tal tratamento, que deve ser prescrita apenas para pacientes com Índice de Massa Corpórea (IMC) acima de 40 kg/m2 ou que, apesar do IMC seja maior que 35 kg/m2 e menor que 40 kg/m2, possua co-morbidades (doenças associadas à obesidade que elevam a morbidade de seus portadores, afetando ainda sua qualidade de vida, mas que costumam melhorar quando a mesma é tratada de forma eficaz), tais como diabetes, apnéia do sono, hipertensão arterial, dislipidemia, doença coronariana, osteo-artrites e outras.

Requer ainda uma idade mínima de 18 anos, sendo que os idosos e jovens entre 16 e 18 anos podem ser operados, mas exigem precauções especiais e o custo/benefício deve ser muito bem analisado. Por fim, deve ainda estar a obesidade estável há pelo menos cinco anos, e ter pelo menos dois anos de tratamento clínico prévio, não eficaz, além da ausência de drogas ilícitas ou alcoolismo e de quadros psicóticos ou demenciais graves ou moderados.

2.4. BREVES NOÇÕES DA TEORIA GERAL DOS CONTRATOS

O pleno entendimento do tema ora abordado implica no domínio de certos conceitos e princípios da teoria geral dos contratos, e considerando que esta monografia trata de assunto afeta a duas ciências distintas, a medicina e o direito, faremos uma abordagem sucinta e despretensiosa da teoria geral dos contratos, visando facilitar a compreensão daqueles que não militam na área jurídica.

2.4.1. Conceito e evolução histórica

Conceituar um instituto é sempre uma tarefa árdua, ainda mais quando este instituto possui a dimensão e a magnitude dos contratos, tanto para os dias atuais quanto para a evolução das sociedades ocidentais, mas alguns doutrinadores modernos conseguem fazê-lo com a precisão científica que se espera quando se estuda um tema com paixão, e com a simplicidade de quem escreve para se fazer entender, como se pode perceber do conceito a seguir transcrito.

O contrato é um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios da função social e da boa fé objetiva, autodisciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a autonomia das suas próprias vontades. (STOLZE, 2006, p.11)

Embora o instituto do contrato seja anterior até mesmo ao império romano, e apesar de nosso direito privado ser recheado de institutos que têm sua origem no direito romano, o marco histórico que mais representa os contratos na modernidade foi a Revolução Francesa, que com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade permearam o Código Francês de Napoleão, que, por sua vez, influenciou os códigos Italiano, Alemão e o nosso Código Civil de 1916.

Como decorrência do fundamento da igualdade trazido pela Revolução Francesa, todos, ao serem iguais, podiam agora adquirir e transmitir propriedades, as efetivas fontes de riqueza da época, possibilitando a circulação das riquezas e permitindo aos burgueses, classe ascendente, adquirir e materializar suas riquezas.

Desta forma, em nossa sociedade o contrato exerce uma função e apresenta um conteúdo constante: o de ser o centro da vida dos negócios (RODRIGUES, 2002, p.11), onde a influência da Igreja e o renascimento dos estudos romanos na Idade Média enfatizaram o sentido obrigatório dos contratos (VENOSA, 2006, p.361).

2.4.2. Requisitos

Em nosso ordenamento, o contrato é tido como espécie do gênero negócio jurídico, e, como tal se sujeita aos requisitos previstos no art. 104. do Código Civil, que requer sujeito capaz, requisito subjetivo, objeto lícito possível, determinado ou determinável, requisitos objetivos, e, forma prescrita ou não defesa em lei, requisito formal. Tais requisitos, contudo, são os genéricos, a que todos os contratos devem obedecer, mas existem outros, os requisitos específicos, que variam em razão do contrato. Assim, v.g., são requisitos específicos do contrato de venda e compra, o preço e o objeto, enquanto não o sejam dos contratos de comodato. (KRUCHEWSKY, 2006, p.29)

Além destes requisitos legais, deve ser observada ainda a vontade das partes, elemento que após a Revolução Francesa ganhou destaque, pois antes se observava mais à forma que a vontade das partes, e após tal marco, buscava-se a priorizar mais a vontade.

2.4.3.Princípios contratuais

Os contratos cíveis são regidos pelos princípios da autonomia da vontade, da força obrigatória dos contratos, da boa-fé objetiva, da função social dos contratos, da relatividade de seus efeitos e da equivalência material de suas prestações.

O princípio da Autonomia da vontade teve seu período de apogeu com a já abordada Revolução Francesa, que passou a priorizar as manifestações de vontade do que a forma, como no ordenamento romano. A vontade passou a ser elemento central dos contratos, devendo, para tanto, ser livre, sem vícios, e emitida por sujeito capaz.

Este princípio foi consagrado em nosso ordenamento em diversos artigos, mas o que mais reflete sua importância e sentido nos contratos modernos está inserta no art. 112. do Código Civil vigente, segundo o qual, nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.

Neste sentido, ela deve refletir tanto a possibilidade de se decidir se deseja ou não celebrar aquele contrato, como também, de poder determinar o conteúdo deste instrumento, haja vista que ele gerará obrigações para as partes, como se pode perceber do texto a seguir transcrito:

A autonomia da vontade se apresenta sob duas formas distintas [...] podendo revestir o aspecto da liberdade de contratar e de liberdade contratual. Liberdade de contratar é a faculdade de realizar ou não determinado ato, enquanto a liberdade contratual é a possibilidade de estabelecer o conteúdo do contrato. (WALD apud GAGLIANO, 2005, p.39).

Com a evolução nas dinâmicas sociais e comerciais, com novos conceitos de riqueza, como as marcas, os bens incorpóreos e a prestação de serviços, levou à chamada Crise dos contratos, representada pela mudança de paradigma.

Se antes a autonomia da vontade era limitada, podendo as partes livremente dispor de todos os seus bens da forma como melhor lhes conviesse, com a transformação do Estado liberal para o Estado do bem estar social, a Constituição Federal e o Código Civil vigente, em especial o art. 421, esta dita autonomia passa a ser limitada pela ordem pública, marcando a crescente interferência do Estado na relação contratual privada.

O maior exemplo disso é a intervenção legislativa garantindo superioridade jurídica ao contratante mais fraco como forma de compensar a inferioridade econômica, como nas relações de consumo.

Aliado a esta interferência cada vez maior do Estado, outro fator limitador da autonomia da vontade foi a mudança no sistema de produção, que largou a produção artesanal para adotar o modelo de produção em massa, onde as manifestações de vontade sobre as próprias características dos produtos começaram a ser mitigadas, até que novas formas de contratação surgiram que, mais uma vez, atingiam a autonomia da vontade, agora para simplesmente restringir a manifestação da parte mais fraca da relação a decidir se quer ou não contratar, sem poder interferir nos termos deste instrumento.

Tais mudanças levaram a abusos por parte dos comerciantes que resultaram em uma releitura deste princípio, não se sendo mais exigido força absoluta.

A principal conseqüência do princípio da autonomia da vontade é o princípio da força obrigatória dos contratos, ou o pacta sunt servanda, segundo o qual o acordo de vontades faz lei entre as partes, e, amparado em forte doutrina e no direito canônica, se o contrato resultou da livre vontade das partes, este deve ser respeitado e cumprido, não podendo a parte dele desistir unilateralmente, sem que isto estivesse previsto no instrumento vinculatório ou na lei.

Essa força obrigatória, atribuída pela lei aos contratos, é a pedra angular da segurança do comércio jurídico, e gera a intangibilidade do contrato, de forma que, a vontade livre e soberana das partes os termos resultantes dela não podem ser alterados sem a concordância das partes, nem mesmo pelo Judiciário. Este princípio também foi atingido, na medida em que a própria autonomia da vontade não é mais absoluta.

Segundo o princípio da relatividade dos contratos, se o elemento que une os contratantes é a vontade por elas manifestada, a sua força obrigatória só atinge as partes que dele participaram, de forma que, pela regra geral, o contrato só ata aqueles que dele participaram, res inter alios acta, aliis neque nocet neque potest.

Contudo, situações existem e podem vir a existir em que as obrigações decorrentes de um contrato podem estender seus efeitos a terceiros, onde deve ser considerado como terceiro em relação ao contrato quem quer que apareça estranho ao pactuado, ao vínculo e aos efeitos finais do negócio. Porém, o representante e aquele que redigiu o contrato podem vir a ser chamados por via reflexa para responder pelos efeitos do negócio.

Outro princípio que deve permear os contratos é o da boa-fé objetiva, enquanto gerador de deveres anexos aos gerados pelo contrato, deveres estes de lealdade, informação, cooperação, confidencialidade ou sigilo, confiança etc, mas antes de adentrarmos nos aspectos da boa-fé objetiva, imperioso se faz diferenciá-la da subjetiva, e, para tanto, seguem os brilhantes ensinamentos a seguir transcritos:

Esta última, de todos conhecida por estar visivelmente presente no Código Civil de 1916, consiste em uma situação psicológica, um estado de ânimo ou de espírito do agente que realiza determinado ato ou vivencia dada situação, sem ter ciência do vício que a inquina.

[...]

Distingue-se, portanto, da boa-fé objetiva, a qual, tendo natureza de princípio jurídico – delineado em um conceito jurídico indeterminado -, consiste em uma verdadeira regra de comportamento, de fundo ético e exigibilidade jurídica.

Embora o art. 422. do Código Civil determine que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé, já é entendimento consolidado na doutrina e na jurisprudência, que sua exigibilidade vai além destes limites, alcançando os períodos anteriores e posteriores ao contrato.

Superada estas questões primeiras acerca da boa-fé objetiva, e adentrando no seu estudo mais profundo, identifica-se três funções distintas para este princípio. A primeira delas, a interpretativa ou de colmatação, e inserta no art. 113. traz a boa-fé como elemento norteador, juntamente com os usos do lugar, para a interpretação de suas cláusulas e efeitos. A outra, a de proteção ou delimitadora, corresponde à função primeira de eticidade, enquanto geradora dos deveres anexos tratados anteriormente. Por fim, a terceira e última função, a função delimitadora do exercício de direitos subjetivos, que vis evitar o uso abusivo destes direitos, o que, inclusive, dá sustentáculo ao combate às cláusulas leoninas ou abusivas, e se manifesta através do art. 187. (GAGLIANO, 2006, p.69-77)

O tratamento jurídico dado a este princípio foi de tamanha magnitude, que o professor e magistrado Rodolfo Pamplona (2005, p.1), acerca do tema se pronunciou da seguinte forma:

Destaque-se que, nesse aspecto, o novo Código Civil pode ser considerado mais explícito, no prestígio à boa-fé, que o próprio Código de Defesa do Consumidor, UMA DAS LEIS MAIS AVANÇADAS DO PAÍS, que consagra, indubitavelmente, o instituto, mas não dessa forma tão expressa e genérica. (PAMPLONA FILHO, 2005, p.1)

A função social do contrato, ou princípio da socialidade, ganhou destaque em nosso ordenamento com a Constituição Federal, juntamente com a função social da propriedade, trazendo um limite para as partes disporem de seus bens e da forma como desejam se vincular. Este princípio trouxe consigo uma nova reflexão sobre o papel do homem na sociedade, que cede o papel de centro do universo e dos interesses econômicos, políticos e sociais para a sociedade. É o fim do individualismo como fora concebido no Código Civil de 1916, e, neste sentido:

A partir do momento em que se começou a perceber que a propriedade somente mereceria tutela se atendesse a uma determinada finalidade social, abandonou-se o antigo modelo oitocentista de concepção desse direito, que cederia lugar a uma doutrina mais afinada aos anseios da sociedade atual.

Com isso, socializando-se a noção de propriedade, o contrato, naturalmente, experimentaria o mesmo fenômeno, ainda que o reconhecimento legal dessa alteração no seu trato ideológico não se houvesse dado de forma imediata. (GAGLIANO, 2006, p.46)

Destarte, embora seja a função social do contrato um conceito aberto como outros já vistos aqui, pode-se recorrer aos ensinamentos do professor Pablo Stolze para conceituar este princípio:

Para nós, a função social do contrato é, antes de tudo, um princípio jurídico de conteúdo indeterminado, que se compreende na medida em que lhe reconhecemos o precípuo efeito de impor limites à liberdade de contratar, em prol do bem comum. (GAGLIANO, 2006, p.48)

Materializado no art. 421, o Código Civil submete a vontade do particular ao interesse social, ao determinar que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, mas, cumpre destacar, o interesse social não deve contrariar tanto quanto possível a vontade contratual, a intenção das partes.

Por fim, surge o princípio da equivalência material, desenvolvido por Paulo Luiz Netto Lobo, e ainda combatido por boa parte da doutrina, que entende ser este princípio um subproduto do princípio da boa-fé objetiva. Nas palavras de seu criador, entende-se este princípio como sendo:

O princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é mais a exigência cega de cumprimento do contrato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária. O princípio clássico pacta sunt servanda passou a ser entendido no sentido de que o contrato obriga as partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres entre elas.

[...]

O princípio da equivalência material desenvolve-se em dois aspectos distintos: subjetivo e objetivo. O aspecto subjetivo leva em conta a identificação do poder contratual dominante das partes e a presunção legal de vulnerabilidade. A lei presume juridicamente vulneráveis o trabalhador, o inquilino, o consumidor, o aderente de contrato de adesão. Essa presunção é absoluta, pois não pode ser afastada pela apreciação do caso concreto. O aspecto objetivo considera o real desequilíbrio de direitos e deveres contratuais que pode estar presente na celebração do contrato ou na eventual mudança do equilíbrio em virtude de circunstâncias supervenientes que levem a onerosidade excessiva para uma das partes. (LOBO, 2002, p.5)

2.4.4. Novas manifestações contratuais

Nos Contratos com cláusulas predispostas, a automatização do contrato não inibe nem dilui os princípios de boa-fé, relatividade das convenções e obrigatoriedade e intangibilidade das cláusulas, mantém-se as regras de investigação interpretativa diversas nos contratos coletivos, mas nos contratos de massa o elemento objetivo do contrato ganha proeminência sobre o elemento subjetivo.

Os Contratos de adesão, a seu turno, são representados pela ausência de possibilidade de discussão de seu conteúdo e, por vezes, até mesmo vontade de contratar, como nos casos dos serviços públicos impostos pelo Estado, como, v.g., o serviço de esgoto por tantos combatido.

Ele se apresenta com todas as cláusulas predispostas por uma das partes, e, a outra parte, o aderente, somente tem a alternativa de aceitar ou repelir o contrato, de forma que, o consentimento manifesta-se pela adesão às cláusulas que foram apresentadas pelo outro contratante.

Surgido do Direito alemão, onde recebia a menção dos termos "contrato standard", é um contrato elaborado unilateralmente, e que requer a forma escrita, derivado da necessidade de criar situações negociais homogêneas e numerosas predispondo um esquema contratual, um complexo uniforme de cláusulas. Devido aos abusos na utilização deste instrumento, a matéria passou a ser disciplinado pelos diplomas legais competentes, impondo regras de interpretação hermenêutica diferenciadas, como se observa da simples leitura do art. 424. do Código Civil e do art. 54, § 3° do Código de Defesa do Consumidor.

Por fim, tem-se o Contrato-tipo, que se distingue do contrato de adesão porque, no contrato-tipo, as cláusulas, ainda que predispostas, decorrem da vontade paritária de ambas as partes sendo o âmbito dos contratantes identificável. Este tipo de contrato surgiu para dar segurança jurídica nas relações entre particulares, onde um terceiro, alheio ao contrato e estranho às partes, disponibiliza modelos de contratos para as partes leigas. Esta modalidade se tornou difundida através dos contratos de locação de imóvel residencial disponibilizados em papelarias e livrarias.

2.4.5. Formação dos contratos

O processo de formação clássico dos contratos é composto de três fases distintas e sucessivas, a fase das tratativas, a fase da oferta e a fase da aceitação. Contudo, na dinâmica atual, muitas vezes esta seqüência não é obedecida.

A primeira delas, a fase das tratativas ou da pontuação, é quando as partes se sondam, isolada ou mutuamente, acerca do interesse alheio em celebrar um contrato e dos termos em que este se vincularia. Nesta fase, não há nenhum vínculo entre as partes.

A fase seguinte é a da oferta, da proposta, da policitação ou da oblação, onde uma das partes, o policitante, emite uma oferta ao outro, o policitado, para que este declare se aceita ou não os termos da proposta. É a primeira fase efetiva do contrato, disciplinada na lei, e não depende, em regra, de forma especial.

Constitui ela uma declaração de vontade pela qual uma pessoa (o proponente) propõe a outra (o oblato) os termos para a conclusão de um contrato, devendo conter, para tanto, os elementos essenciais do negócio jurídico.

A oferta, via de regra, possui força vinculante e deve ser mantida sob certo prazo e condições, não se confundindo, contudo, a vinculação da proposta com sua irrevogabilidade. Desta forma, se o ofertante deixar de realizar o negócio, submeter-se-á a perdas e danos.

Contudo, como já antecipado, existem situações em que a proposta não é obrigatória, estando estas exceções contidas nos arts. 427. e 428, observada a regra do art. 434. do Código Civil, a seguir transcritos.

Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso.

Art. 428. Deixa de ser obrigatória a proposta:

I - se, feita sem prazo a pessoa presente, não foi imediatamente aceita. Considera-se também presente a pessoa que contrata por telefone ou por meio de comunicação semelhante;

II - se, feita sem prazo a pessoa ausente, tiver decorrido tempo suficiente para chegar a resposta ao conhecimento do proponente;

III - se, feita a pessoa ausente, não tiver sido expedida a resposta dentro do prazo dado;

IV - se, antes dela, ou simultaneamente, chegar ao conhecimento da outra parte a retratação do proponente.

[...]

Art. 434. Os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a aceitação é expedida, exceto:

I - no caso do artigo antecedente;

II - se o proponente se houver comprometido a esperar resposta;

III - se ela não chegar no prazo convencionado.

Vale salientar que o próprio ofertante pode ressalvar que a proposta não é obrigatória, conforme art. 427, inserindo no documento cláusulas como "não vale como proposta"; "sujeita a confirmação".

A última das fases de formação do contrato é a aceitação, consistente na aquiescência a uma proposta formulada, e que para ser válida, deve ser pura e simples, obedecendo aos requisitos de tempestividade e de forma, quando houver.

Neste sentido, a aceitação com reservas, fora do prazo ou com condições, por força do art. 431, em verdade não se configura uma aceitação e sim uma nova proposta, e como tal, desvincula o antigo ofertante, que agora assume o papel o oblato. A aceitação deve ser um ato simples de aderência à proposta feita.

A questão do prazo acima referido envolve duas questões determinantes, primeiro, se a proposta foi realizada entre ausentes ou entre presentes, e em seguida, qual o momento em que se reputa aceita a proposta e, portanto, celebrado o contrato.

A primeira questão revela-se primordial por força dos incisos I e II do art. 428. já transcrito, e o critério empregado para se determinar se foi a proposta realizada entre presentes ou entre ausentes não está na presença física das partes, mas na possibilidade de se verificar se o oblato tomou realmente ciência da proposta e qual o teor de sua resposta, em tempo real. Destarte, é considerada entre presentes as propostas realizadas pessoalmente, por telefone, programas de computador que permitam interatividade, como salas de bate-papo, chats, MSN, ou por meio de comunicação semelhante.

A segunda questão, a determinação do momento em que a proposta é aceita, envolve uma questão não pacificada na doutrina, posto que duas são as doutrinas que tentam solucionar este aspecto.

Pelo sistema da cognição ou informação, o contrato somente se perfaz no momento em que o proponente toma conhecimento do teor da aceitação. Por sua imprecisão, e por dar margem à má-fé do proponente, que poderia receber a mensagem mas não lê-la para enquanto aguardava o desdobramento de outros fatos para não se ver vinculado, v.g., esta teoria não encontra guarida em nosso ordenamento.

A segunda, delas, a da agnação, se divide em três sub-teorias, sendo a primeira delas, a da declaração propriamente dita, através da qual o contrato aperfeiçoa-se pela declaração do oblato, não é aceita também, pelo mesmo motivo da anterior, sendo, agora, a possibilidade de má-fé atribuída ao oblato, que poderia, no mesmo exemplo anterior, preparar a resposta mas guardá-la até um momento mais favorável.

A segunda subteoria é a teoria da expedição, segundo a qual o momento de ultimação do contrato é aquele em que a aceitação é expedida pelo oblato, e a última, a teoria da recepção, onde o aperfeiçoamento do negócio jurídico somente ocorre quando o proponente recebe o comunicado da aceitação, ainda que não a leia, sendo uma teoria mais segura que as demais.

Sobre estas duas existe verdadeira divergência doutrinária, onde doutrinadores como Silvio de Sávio Venosa e Silvio Rodrigues sustentam ser a da expedição a aceita pelo nosso Código Civil, pois em seu art. 434. consta que "os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a aceitação é expedida [...]" (grifo nosso).

Já para autores como Pablo Stolze Gagliano e Carlos Roberto Gonçalves, nosso ordenamento positivo adota a terceira sub-teoria, a da recepção, pois uma leitura mais atenta do referido diploma, mais especificamente o art. 433, segundo o qual "considera-se inexistente a aceitação, se antes dela ou com ela chegar ao proponente a retratação do aceitante" deixando claro que o momento decisivo não é o da postagem, mas sim o da recepção. (GAGLIANO, 2006, p. 94-96) (Grifo nosso)

Sobre o autor
Alex Leão de Paula Vilas-Bôas

advogado, especialista em direito civil e do consumidor e professor de direito civil e de IED

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VILAS-BÔAS, Alex Leão Paula. A tutela de urgência nos casos de obesidade mórbida, após o advento do Código de Defesa do Consumidor e da lei 9656/96. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1282, 4 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9350. Acesso em: 23 dez. 2024.

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