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A legalização do aborto e o Código Civil

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Agenda 05/10/2021 às 19:22

CUSTOS DE SAÚDE PÚBLICA

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” CF.

Em 2020, conforme dados do SUS, o sistema de saúde brasileiro já gastou 30 vezes mais com procedimentos pós-abortos incompletos (R$ 14,29 milhões) do que com abortos legais (R$ 454 mil). Foram realizadas cerca de 238 mil curetagens decorrentes de aborto, excluídos custos com internações por período superior a 24 horas, gastos com UTI e os recursos necessários aos atendimentos de sequelas decorrentes do aborto.

Prova cabal que o apontamento da economista Viviane Petinelli na ADPF 442 se deu apenas em promover que o gasto do aborto pelo SUS seria realizado sem uma comoção, e não na prevenção e propagação de política social para que seja evitado, o que em dados pelo Ministério da Saúde, geraria economia dos R$ 500 milhões que foram gastos nos atendimentos de complicações.

Conforme apontamento da antropóloga, professora da UNB (Universidade de Brasília) e pesquisadora da Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), pessoa de Débora Diniz, as complicações consomem mais recursos de saúde do que sua prevenção.

Segundo o estudo de Diniz e Medeiros (2012), para a prática do aborto em primeiro lugar de sua pesquisa, foi relatado o uso de chás e combinações com a medicação cytotec: “a dose mais comum é de quatro comprimidos aplicados por via oral e vaginal, e a finalização do aborto é feita no hospital”; ficando em segundo lugar a curetagem em clínica privada e a busca à parteiras para a realização do aborto.

“A discrepância entre procedimentos como curetagem e aspiração em abortos legais mostra claramente que o número de interrupções legais é menor do que deveria ser” relato do obstetra Jefferson Drezett, que implementou e coordenou por 24 anos o serviço de aborto legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo:

"Pros níveis de violência que a gente tem hoje no Brasil, que são muito, muito perversos com as mulheres, nós deveríamos ter um número muito maior de abortos legais. Essa proporção maior de curetagens e aspirações do que de abortos legais é esperada, mas o tamanho dela não é justificável. Não é possível que a gente tenha, depois de 80 anos de lei, um percentual tão pequeno de abortos legais em um país que é tão violento contra as mulheres".

Segundo dados da pesquisa do Ministério da Saúde, no Brasil, foi observado que 1 em cada 5 mulheres, até os 40 anos, já fez um aborto pelo menos. Somente no ano de 2015, 503 mil mulheres, de 18 a 39 anos, interromperam voluntariamente a gestação e aproximadamente 250 mil precisaram de atendimento médico por complicações. (STF, ADPF 442, texto digital, 2019).

Havendo “opções seguras, gratuitas e acessíveis, as mulheres podem refletir sobre o que desejam para suas vidas” (Galdino e Rocha, 2015). Pois a legalização permitiria a diminuição de abortos clandestinos, visto que haveria “fortalecimento de políticas de planejamento, educação sexual e saúde para essas mulheres”. (Galdino e Rocha, 2015). Enfatiza-se que a partir da legalização do aborto seria possível se obter números reais para enquadrar em dados a problemática em locais ou grupos específicos, salientando ainda se a procura se motiva por falha na distribuição de métodos contraceptivos ou se é uma questão de acesso, de pouca informação sobre os métodos de prevenção, atendimento precário nas unidades de saúde, até desemprego em face do enfraquecimento da economia, fatores de idade, carência de iniciativas educacionais e assistenciais do poder público para auxiliar gestantes, exiguidade de perspectivas futuras, entre outros. (Galdino e Rocha, 2015).

Recentemente, um caso de repercussão nacional de uma criança de 10 anos que engravidou após ter sido estuprada pelo tio no estado do Espírito Santo, explicitou a dificuldade que o próprio sistema de saúde impõe no atendimento às vítimas para realização do aborto, visto que neste âmbito a Lei n° 12.485/2013 c/c Manual do Ministério da Saúde para humanização do atendimento às vítimas de violência sexual, permite que as instalações promovam todos meios à gestante para interrupção da gravidez em decorrência de estupro, sem ocasionar empecilho burocrático como apresentar boletim de ocorrência ou realizar exame de corpo de delito, pela norma prevista no inciso I do artigo 3° caput. Deixando evidenciado que, conforme índice do Ministério da Saúde, o problema de haver neste censo mais de 20 mil crianças menores de 14 anos vítimas de violência e abortamento, ser um problema muito maior do que apenas cessar as gestações indesejadas.

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Segundo Anjos, et. al. (2013): Uma das problemáticas referentes ao aborto, que emerge como questão de saúde pública, é a sua forma de realização, que ocorre, na maioria das vezes, de maneira clandestina e insegura, provocando várias implicações biopsicossociais à mulher. Além disso, abortar em condições desfavoráveis à saúde é uma violação dos direitos humanos, principalmente para as mulheres com baixa renda. A criminalização do aborto dirige as mulheres à realização clandestina da prática, o que gera implicações de diversas formas, tanto psicológicas, como físicas.”

Consoante Torres (2015), conferências mundiais, pactos, convenções, planos e tratados aprovados e ratificados pelo Brasil, assim como a Assembleia Geral da ONU: [...] já reconheceu que as mulheres têm o direito de determinar livremente o número de seus filhos e os intervalos entre seus nascimentos, de decidir sobre o próprio corpo e quanto à maternidade opcional, à plena assistência à saúde sexual e reprodutiva e a uma vida livre da morte materna evitável, à liberdade de autodeterminação, ao controle sobre a sua sexualidade e à livre decisão sobre o exercício da maternidade, sem coerção, discriminação ou violência, e à informação e acesso aos serviços para exercer seus direitos e responsabilidades reprodutivas, enquanto os Estados têm o dever, bem como a obrigação ética e jurídica, de assegurar o exercício de todos esses direitos.

“[...]o direito à saúde encontra-se expressamente estabelecido no rol dos direitos indisponíveis que compõe o mínimo existencial da pessoa humana, coexistindo com os demais direitos elencados no artigo 6º, da Carta Republicana de1988, bem como o dever do ESTADO de assegurar a saúde do cidadão, estabelecido no artigo 196 do mesmo diploma legal, aplicável a União, Estados, Distrito Federal e Municípios”. (BRASIL, 2016).

Evidente a consagração do direito à saúde no que tange o rol dos direitos sociais, quais compõem o mínimo existencial para que haja a preservação da dignidade da pessoa humana, atrelando tais direitos ao artigo 6º e 196 da Constituição Federal, definindo o direito à saúde como um direito fundamental social, e sendo dever do ESTADO de promover sua efetivação e prevenção. Esses direitos sociais estão englobados no conceito do mínimo existencial social sendo necessária uma prestação positiva do Estado, de forma que que seja fornecido o mínimo possível para o cumprimento do direito à saúde com base na dignidade da pessoa humana.

Ademais, o Sistema Único de Saúde, foi analisado como um órgão que têm como premissa o estabelecimento da efetivação da saúde em molde universal, gratuito e igualitário, todavia, foi possível concluir com o exposto que, em decorrência de uma má gestão, o SUS está em um âmbito de sucateado, impedindo-o de prestar uma tutela da saúde. Ficando comprometido a dignidade da pessoa humana. Ficando desta forma exposto que, é necessária uma prestação positiva do Estado para que se alcance o melhor Estado de saúde possível.

Infelizmente, a criminalização, a clandestinidade e a morte de milhares de mulheres parece não serem motivos suficientes para que o debate sobre a legalização do aborto seja travado de maneira séria e honesta, sem nenhum tipo de fundamentação religiosa, tendo em vista a laicidade do Estado Brasileiro. Nega-se o direito ao aborto legal, seguro e gratuito, e por consequência, nega-se também a vida das mulheres, a autonomia e ao exercício da livre sexualidade. A opção é pela vida das mulheres. Educação sexual para prevenir, contraceptivo para não engravidar e aborto legal e seguro para não morrer. (GALDINO e ROCHA, 2015, p. 429).


CONCLUSÃO

Quanto à criminalização do aborto, a falta de autonomia sob o direito ao próprio corpo feminino demonstra que o direito de igualdade garantido constitucionalmente, logo um direito humano, é divergente para homens e mulheres, pois “a criminalização do aborto gera uma grave assimetria, impondo às mulheres limitações no manejo do próprio corpo com as quais os homens não sofrem” (Miguel, 2012).

O problema que concerne sua liberação consiste em debates na sociedade brasileira primariamente quanto à exclusão de direitos expectativos já concedidos ao nascituro. Uma hipocrisia social que criminaliza a prática e não assiste devidamente os pilares basais para que os fatores que a promovem cessem.

O aborto sendo um problema de saúde pública denota-se uma limitação de direito de igualdade e autonomia sobre o próprio corpo da mulher.

Diante do exposto, se de um lado, a constituição e o código civil abraçam os direitos pré vida, por outro, a manifestação das práticas civis demonstram, fatidicamente, uma sociedade com alto índice de violência e pobreza que culminam nos procedimentos clandestinos acarretando sequelas e mortes, visto que a criminalização atinge estratos sociais mais pobres de mulheres e crianças que se submetem a clínicas clandestinas, em que não há cuidado ou acompanhamento profissional, levando suas vidas à risco. “Assim, falar em aborto é falar principalmente na violação dos direitos dessas mulheres, violação ao seu direito reprodutivo, sexual e à sua autonomia”. (Galdino d Rocha, 2015, p. 422)., é para que haja redução da mortalidade feminina, cesse a violação dos direitos humanos, seja concedido tratamento de igualdade e respeito, e quando da decisão, haver um atendimento adequado fornecido pelo Estado, de forma que as políticas públicas forneçam fielmente o mínimo existencial sem acometer a reserva do possível.

A liberação do aborto fere os direitos do feto, pelo seu direito à vida (CF. c/c CC.) e a expectativa de nascer e se investir de sua personalidade; fere os direitos da mulher que já sendo um indivíduo investido de personalidade, foi omitida nas previsões do Código Penal, e para que haja tal mudança tanto o Código como a Constituição hão de reformular-se, pois quanto à criminalização, a prática já é tipificada como crime.


REFERÊNCIAS

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/08/20/sus-fez-809-mil-procedimentos-apos-abortos-malsucedidos-e-1024-interrupcoes-de-gravidez-previstas-em-lei-no-1º-semestre-de-2020.ghtml

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/07/sus-gasta-r-500-milhoes-com-complicacoes-por-aborto-em-uma-decada.shtml

https://www.conjur.com.br/2021-mai-15/opiniao-quando-suprema-corte-eua-legalizou-aborto

https://www.univates.br/bdu/bitstream/10737/2580/1/2019PaulineVonMuhlen.pdf

https://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalStfInternacional/portalStfCooperacao_pt_br/anexo/Manuel.pdf

https://pt.wikipedia.org/wiki/Legisla%C3%A7%C3%A3o_sobre_o_aborto#:~:text=%C3%A9%20uma%20exce%C3%A7%C3%A3º.-,Estados%20Unidos%20da%20Am%C3%A9rica,no%20caso%20Roe%20vs%20Wade.

https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace;/bitstream/handle/10438/27023/43619-92339-1-PB.pdf

DÜRIG, Günter. Der Grundsatz der Menschenwürde. Entwurf eines praktikablen Wertsystems der Grundrechteaus Art.1 abs. I in Verbindung MIT Art. 19 abs II des Grundgesetzes, In: Archiv des Öffentlichen Rechts (AÖR) nº 81 (1956). p. 125. apud SARLET, Ingo Wolfgang. loc. Cit

ENGLERT. Les comités de bioéthique. In: Bioéthique: jusqu’où peut-on aller?. [ s.l.]: Éditions de l’Universitéde Bruxelles, 1996. p. 51

Sobre a autora
Iasmim Aoki

Poetisa. Escritora, Pesquisadora Incansável. "Me permito transportar-me além do científico para explicar a motivação Partindo da premissa que de nada sei desta existência Onde sou mais um instrumento divino a quem cabe uma missão, Busco relembrar e reviver pela fome do saber Tudo o que julgo saber me permito desmistificar Que seja para reaprender a ser humana Pois sei da minha imutável mutabilidade cósmica universal" autora: Iasmim Aoki

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