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O estado de direito e a separação dos poderes em Jeremy Waldron

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Agenda 06/10/2021 às 10:26

Introdução

A Separação dos Poderes, concebida como um princípio político é um meio eficaz para avaliar os arranjos legais e constitucionais de um estado moderno. A essência do princípio jaz em uma separação qualitativa das diferentes funções do governo. Entretanto, a justificação para tal separação tem tendências incertas na literatura predominante do tema, advinda da teoria política dos séculos XVII e XVIII.

A concepção da separação dos poderes é comumente confundida e misturada na literatura convencional com outros princípios considerados pelo autor, sendo, os checks and balances e a divisão do poder, comumente previsto em sistemas constitucionais. Este trabalho foca-se na separação funcional dos poderes, visando a sua forma “pura”, explicitando como esta seria e sua relevância em um estado de direito.

É notável que existem exemplos que sugerem que mesmo quando um princípio como a separação dos poderes não possui um status legal positivado, como por exemplo, a constituição dos Estados Unidos da América, este também é um princípio relevante e presente nas esferas de governança. Dessa forma, este pode vir a ser uma parte indispensável do constitucionalismo, se tornando até mesmo base para avaliação de operações para mudanças nas estruturas constitucionais. E dessa forma, o princípio demonstra possuir tanto aspectos teóricos existentes como encontra escopo na prática legal.

Ao dizer que devemos tratar a Separação dos Poderes como um importante princípio político embora um não legal, eu não quero dizer que ele tem apenas força "moral", como se fosse apenas algo especial que um teórico sonhou e agora quer que o resto de nós veja-o aplicar. O princípio da Separação dos Poderes tem um poderoso lugar na tradição do pensamento político, amplamente aceito como canônica entre nós.[1] (WALDRON, 2013, pg. 437).

Na filosofia política, os questionamentos acerca desta temática parecem estar situados em segundo plano, tomando noções sedimentadas como a de que a separação dos poderes é necessária para evitar a tirania, como algo indiscutível. Note-se aqui que o intuito deste trabalho é de fato a reafirmar essa separação como essencial, entretanto, mais do que apenas aceitar os pressupostos teóricos já existentes, faz-se essencial buscar as justificativas para a vigência da separação dos poderes ser vital em estados modernos.

A pesquisa para o desenvolvimento deste artigo foi desenvolvida a partir de uma metodologia compreendendo a análise bibliográfica, com foco nas obras de Jeremy Waldron, especialmente Separation of Powers in Thought and Practice (2013) e The Concept and the Rule of Law (2008) . Para tanto, a construção que visa-se aqui é demonstrar como através dessa separação como princípio político essencial, pode-se atingir liberdade de argumentação que é necessária a um estado de direito, ocorrendo através da dignidade da legislação, a independência das cortes e a autoridade do Executivo, onde cada qual têm seu próprio papel para desempenhar nas práticas governamentais.

Separação dos Poderes enquanto Princípio Político

Inicialmente – para um melhor desenvolvimento do cerne da separação dos poderes enquanto princípio – há de se destacar a existência de outros quatro princípios políticos tão importantes quanto a separação dos poderes, que exercem papéis essenciais para legitimidade institucional. O primeiro a se destacar seria o princípio da divisão do poder, que aborda sobre a necessidade de não haver concentração do poder político nas mãos de uma pessoa, grupo ou instituição, esse princípio não se preocupa como será realizado essa divisão, contudo que ela aconteça. O segundo, os checks and balances[2], refere-se a concorrência ordinária de uma entidade governamental nas ações de outra, assim permitindo um complexo – mas não desproporcional – mecanismo onde cada instituição possui o poder e o dever de fiscalizar ou ainda vetar as ações do outro. O terceiro, o bicameralismo, princípio que explicita a necessidade de leis serem promulgadas e votadas em duas assembleias legislativas coordenadas e independentes entre si, esse princípio surge como a opção de que todas as leis sejam votadas por indivíduos diferentes e em momentos diferentes. E o quarto, o princípio do federalismo que distingue os poderes institucionais dos governos federais, dos que são exercidos pela administração dos governos dos estados e dos governos dos municípios. Dessa maneira, o foco aqui proposto é sobre apenas um dos complexos princípios políticos que compõem um estado moderno, mas que necessariamente se comunica com os já citados.

Faz-se válido deixar clara a distinção no sentido de que tudo o que seria preciso no princípio da divisão do poder seria a dispersão desses poderes, como dito anteriormente, não importando então a forma particular com a qual isto venha a ocorrer, desde que não haja concentração excessiva. Dessa forma, para Waldron, a separação dos poderes auxilia na divisão do poder, afinal se “nós queremos dividir o poder, o que seria melhor do que começar dividindo o poder de um juiz, daquele de um legislador e daquele de um membro do executivo?[3]” (WALDRON, 2013, p. 440) Já os checks and balances requerem que cada poder cheque os outros poderes ou “concorra” no exercício do outro, onde o que importa é a contraposição entre os poderes para se balancearem, não importando quais e como esses poderes fariam isto. Dessa forma, a taxonomia dos poderes é importante na separação dos poderes, mas não na divisão os nos checks and balances.

Nós não inventamos uma distinção entre os poderes legislativo, executivo e poderes judiais a fim de estabelecer a existência de entidades que poderiam verificar e equilibrar uma a outra. Os autores podem ter tido uma "visão de que o poder deve ser dividido e equilibrado de forma criativa para evitar o uso indevido", mas esta não era a única visão em jogo, e não a visão específica para o Princípio da Separação dos Poderes. A distinção de poderes sob o Princípio da Separação dos Poderes - se faz algum sentido – é nos dada por uma teoria de governança articulada, que distingue estas funções pelo o que são, não o que elas podem fazer para manter um outro verificadas.[4] (WALDRON, 2013, pg. 442)

Portanto, a distinção dos poderes, advinda do princípio, é pensada através desta teoria de governança articulada, na qual distingue-se estas funções pelo que elas são e devem exercer, mas não sob o que elas podem fazer para manterem umas às outras “sob controle”. Uma das problemáticas essenciais ao instituir-se um estado de direito é de desenhar a governança através de instituições que possam trazer segurança prática contra qualquer tipo de concentração excessiva de poder.

Ao reduzir o tamanho do poder que alguém ou alguma instituição possa exercer reduz-se o risco a danos as liberdades (tanto individuais como coletivas) ou ainda que outros interesses estejam suscetíveis a conotações negativas. Pode-se pensar também que o estímulo ao confronto entre os poderes que a dispersão dos mesmos traria se torne positivo e produtivo, trazendo embates e aprofundamentos de questões essenciais no meio social. Destaca-se a possibilidade que isto traz à tona demonstrando a existência de múltiplos centros de recurso aos quais cidadãos podem recorrer quando uma das instituições de poder não estiver satisfazendo as demandas do meio social. Dessa forma, o princípio da separação dos poderes busca instituir a maneira como isto vem a ocorrer em um estado de direito, através de procedimentos.

A separação dos poderes funcional pode estar associada a uma espécie de supremacia legislativa, no sentido de que é apenas a partir da legislação que os outros poderes podem julgar e executar a lei. Através disto é menos provável que a legislação venha a ser opressiva, se o próprio legislador seja um cidadão ordinário e tenha que arcar com o peso das respectivas leis promulgadas.

Da Separação dos Poderes na Literatura

Mais do que apenas a separação prática, a separação dos poderes precisa passar por um plano teórico. Assim, o mais importante seria que mesmo se houvesse concentração de poder, seria de vital importância distinguir cada um dos poderes em suas respectivas execuções. Dessa forma é possível argumentar-se no sentido de que um soberano hobbesiano poderia “exercer estes poderes como incidentes separados de sua autoridade, ainda que estes estejam unidos em um único par de mãos”[5] (WALDRON, 2013, pg. 449). Esse soberano absolutista estaria articulando os poderes que ele possui em fases distintas, ao contrário poderia existir um soberano absolutista que desconhece essa articulação e/ou não se importa com essa articulação, pois afinal o poder é todo dele.

Dessa forma, é possível problematizar esta separação dos poderes para um soberano, pois podem existir violações no sentido de que em um teor prático a distinção destes poderes e de suas suscetíveis fases e diferentes funções podem ser confusas se realizadas por uma única instituição ou pessoa. Afinal, como Hobbes expõe, o soberano não está sujeito às leis que ele mesmo criou, podendo modifica-las ou afastá-las a seu prazer libertando-o da sujeição, afinal se o soberano hobbesiano está apenas vinculado a ele mesmo, então ele não está vinculado. Ou ainda nas palavras de Locke:

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Pode ser muito grande a tentação da fragilidade humana (...) que as mesmas pessoas que tem o poder de fazer leis, tenham também em suas mãos o poder de executá-las, através do qual elas podem isentar-se da obediência às leis que fazem, e adequar a lei, tanto na sua concepção quanto na sua execução, a sua própria vantagem privada (...)[6] (LOCKE, 1988, p. 364).

Tratando sobre o respeito à separação dos poderes é quase impossível desvincular o assunto de Montesquieu, autor da clássica obra O Espírito das Leis[7]. Montesquieu acredita que á a natureza humana que confere a justificativa para dividir os poderes do estado e colocá-los sob responsabilidade de pessoas e órgãos diferentes ao afirmar que “todo homem que tem poder é levado a dele abusar, ele vai até onde encontra limites” (2000, p. 166). Pelo exposto anteriormente é possível afirmar isso tratando-se da divisão do poder, mas não da separação dos poderes. Em uma de suas obras, Jeremy Waldron compartilhando passagens de M. J. C. Vile, identifica um ponto que considera obscuro na teoria de Montesquieu:

As justificativas de Montesquieu, por exemplo, eram em sua maioria tautologias. E no espírito daquelas tautologias, o constitucionalismo moderno tem, até recentemente, concebido a Separação dos Poderes como garantida – o que significa que toma como certo que a Separação dos Poderes é necessária para evitar a tirania, mas não explica o porquê.[8] (WALDRON, 2013, p. 434).

Mais ainda, a exposição de Montesquieu era seguida por outros importantes filósofos da época, como James Madison, que preconizava a liberdade perante a tirania. Entretanto, aparenta estar apenas repetindo-se da mesma forma que Montesquieu no sentido de que a mera concentração já traria a problemática da tirania, deixando vaga a definição do porquê para além do que consideram o "caráter humano". Ele seguia a mesma teorização no sentido de que nenhuma verdade política seria certamente de maior valor intrínseco, ou "carimbada" com a autoridade dos sujeitos, do que as liberdades sedimentadas pelos mesmos. Por isso, a acumulação de todos os poderes, legislativo, executivo e judiciário, nas mesmas mãos, seja de um sujeito ou muitos, através de características hereditárias, por autonomeação ou mesmo eletivamente, ainda podem pronunciar a própria definição de tirania. Uma constituição federal, portanto, realmente deveria evitar esta acumulação de poder.

Um exemplo dessas tautologias é a seguinte passagem, que pode servir de exemplo para resumir as críticas aqui redigidas, focando no que de fato Montesquieu escreveu para defender a separação dos poderes:

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor (MONTESQUIEU, 2000, p. 168).

É nesse ponto que se faz válido ressaltar a crítica de Waldron que a separação dos poderes tem sido esquecida de maiores estudos teórico-políticos no meio acadêmico. É comum a repetição destas tautologias sem maiores investigações filosóficas a respeito do surgimento da tirania em modelos de estado onde não ocorra a separação. Citando o autor não se pode mais justificar que “a falha para separar os poderes leva a arbitrariedade porque envolve uma falta de separação dos poderes”[9] (WALDRON, 2013, p. 454). E neste sentido, onde existe uma simplificação do princípio - no qual a sociedade toma-o como “certo e dado” - é que se faz válido indagar sobre um tema aparentemente consolidado.

Articulando a Governança

O princípio da Separação dos Poderes divide os processos de governança em conceitualmente três funções principais “promulgação de uma lei, adjudicação de disputas com base em uma lei, e a administração de uma decisão da lei”[10] (WALDRON, 2013, pg. 456). Por exemplo, a simples utilização do poder coercivo pelas autoridades públicas,, de forma recorrente para garantia desse processo é uma forma ingênua do exercício do poder político. Cada uma das fases geradas pela separação que prevê o princípio é importante em si e levanta preocupações institucionais distintas.

Considerada a construção trazida até aqui, o estado de direito requer mais do que apenas a existência de leis e o cumprimento destas. É necessário que toda ação governamental, esteja sob o escopo e seja conduzida sobre as áuspices da lei; neste sentido a legislação deveria ser criada a fim de autorizar ações governamentais que serão ser realizadas.

Isto significaria o já referido processo articulado, para que os diversos aspectos do processo legislativo e ações legais autorizadas “não sejam executados apenas em uma única forma”[11] (WALDRON, 2013, pg. 457). As pessoas (físicas ou jurídicas) teriam tempo para compreenderem as normas, as internalizarem e assim organizarem as suas condutas e como tocam suas vidas e negócios, enquanto o governo e suas agências “iniciam o processo de tecer essas normas no tecido mais vasto da sua supervisão de vários aspectos da vida social e começam a desenvolver estratégias para (como poderia ser) inspeção e execução”[12]. (WALDRON, 2013, pg. 458)

Estar sob a égide de um estado de direito requer também que exista a vigência deste processo que responde a articulação institucional requerida pela separação dos poderes, devendo haver legislação anterior à adjudicação ou administração; ou o devido processo legal e então adjudicação que gera força executiva de uma decisão.

E também, ao estar em um estado moderno que implica na utilização da Separação dos Poderes, cada um dos poderes criados através dessa separação – o legislativo, o executivo e o judiciário – deve manifestar-se antes de qualquer decisão dada por um destes, impactar a vida de um sujeito de direitos. Assim, desrespeitar este processo é desrespeitar o estado de direito em si, e nem mesmo uma autoridade legítima – nem mesma pela força de suas credencias democráticas – pode interferir neste processo sem gerar esta problemática.

Tenta-se evitar um processo legislativo em que as leis promulgadas sirvam apenas aos interesses do poder executivo em realizar sua administração; ou de decisões judiciais sobrepujarem as elaborações legislativas ou discricionariedades da administração. Logo, a separação dos poderes deve enaltecer os caráteres distintos de cada um desses poderes e suas funções essenciais a um estado de direito.

O estado de direito é violado quando as instituições que devem supostamente encorpar esses salvaguardas procedimentais sofrem interferências ou são minadas. Nesse sentido o estado de direito se tornou associado com ideais políticos como a separação dos poderes e a independência do judiciário.[13] (WALDRON, 2008, p. 7).

Cada poder precisa estar preocupado em exercer única e exclusivamente suas funções. O legislativo precisa preocupar-se em criar as leis, de maneiras genéricas e com certa abstração, a fim de não adereçar uma pessoa ou mais pessoas em situações específicas. O judiciário em julgar o caso de cada sujeito e a sua respectiva relação com as leis promulgadas pelo legislativo. E o executivo, para além da administração, desenvolver estratégias amplas para a implementação das leis promulgadas. Logo, na medida do possível, é preciso separar, além dos processos articulados de governança, as pessoas que as executam[14]. Esse transitar dos sujeitos entre os poderes é uma forma de contaminação, pois os indivíduos carregam com si as funções específicas dos poderes as quais estão vinculados.

Exemplificando, o princípio da separação dos poderes seria indiferente a delegações desde que as instituições a que se delega mantivessem seu caráter puro e distinto, não contaminado por outro poder. Dessa forma, o que importa no princípio da separação dos poderes é que haja separação entre o estágio legislativo, a administração e o julgamento dessas leis. Através disto, protege-se não apenas os processos que formam as leis e consequentemente o estado de direito, mas também a mentalidade dos indivíduos que exercem estes papéis institucionais de contaminações entre estes estágios da governança articulada pelos respectivos poderes resultantes da separação.

O Estado de Direito Enquanto Procedimento

O estado de direito é um dos ideais políticos mais importantes do nosso tempo. É um conjunto de ideias constitutivas da moralidade política moderna. Primeiramente faz-se necessário reconhecer as muitas concepções presentes na filosofia do que de fato seria um estado de direito. Mais ainda, dentro desse estado quais seriam as características inerentes a ele. Entretanto, o foco do presente trabalho é não nos aspectos formais e de substância que um estado deveria conter. Assim o que quer-se destacar são os procedimentos que um estado executa que são que o traduzem tanto os elementos formais quanto substâncias à realidade social.

A compreensão do estado de direito visada aqui deve enfatizar não apenas o valor de regras determinadas, assentadas e a previsibilidade que estas tornam possível, mas também, a importância dos aspectos procedimentais e argumentativos da prática legal. Dessa forma, Waldron afirma que não há na teoria política quaisquer indicações de que os procedimentos em si, e os direitos e poderes associados com estes, seriam parte direta do que se avalia como "estado de direito", normalmente visados como consequência deste.

O aspecto procedimental do estado de direito auxilia a trazer o nosso pensar conceitual sobre o direito em nossa vida: é um entendimento sobre o sistema legal que enfatiza argumentos nos julgamentos[15] tanto quanto a existência e reconhecimento de regras como a base para um muito mais rico entendimento, compreendendo além para além de entendimento de valores do estado de direito existentes nos argumentos políticos modernos.

Neste sentido, destaca-se aqui que o estado de direito não se refere apenas a regras gerais e princípios; mas sim sobre a imparcial administração e julgamento destes através de um devido processo identificável. A violação disto ocorre quando as instituições que deveriam incorporar estas salvaguardas procedimentais são prejudicadas de realiza-las ou impedidas de fazê-las de forma livre. Deste jeito, o estado de direito torna-se associado com ideais políticos como a separação dos poderes e a independência do judiciário.

Não é positivo apenas existirem normas claras e gerais se estas não forem administradas apropriadamente; e não é positivo ter procedimentos justos se as regras, cujas aplicações estão em questão, passam por constantes mudanças, se eventualmente são ignoradas ou padecem de pluralidade de interpretações.

Portanto, o estado de direito é um ideal designado para corrigir os perigos do abuso que ocorrem em geral quando o poder político é exercido, e não perigos de abuso que ocorrem do direito em particular. Dessa forma, o estado de direito visa corrigir os abusos de poder ao insistir em um modo particular de exercício de poder político - neste caso, governança através da lei.

O contraste entre o direito e a exercício arbitrário do poder tem a ver com instituições e procedimentos: uma pessoa não deve sofrer além dos termos da decisão que um julgador atingiu de maneira ordinária observando os requisitos do devido processo legal.

Neste trabalho, quando se refere a julgadores, refere-se às instituições que aplicam normas e diretivas estabelecidas, tanto pela sociedade quanto para a sociedade, para casos individuais e nos quais pode-se decidir litígios sobre a aplicação das normas (não apenas o poder judiciário). Estas instituições devem fazer isto através de eventos formais - sendo estes as audiências - para os quais deve haver necessária estrutura procedimental rigorosa para tornar estes procedimentos meios hábeis a dizerem os direitos, de forma imparcial, justa e efetiva após a oitiva de argumentos e evidências de ambos os lados litigantes.

O autor propõe que além do déficit teórico contemporâneo do princípio da separação dos poderes, existe uma tendência entre os filósofos do direito a ver o direito simplesmente como um conjunto de proposições normativas. Além disso, na concepção de Waldron, estes filósofos ainda tendem a perseguir um desenvolvimento do entendimento conceitual do direito como sendo meramente que espécie de proposições normativas este deve conter. Entretanto, o que Waldron propõe é que o direito vem a vida através das instituições. Sendo assim, ao pensar em estado de direito enquanto procedimento é a forma de trazer o pensamento conceitual sob a lei e o direito à realidade social.

Nesse sentido Waldron alinha-se a Fuller[16], sugerindo que o conceito de direito envolve os elementos fundamentais da legalidade, contanto, argumenta que a legalidade deve direcionar também um lugar a importância procedimental e seus respectivos elementos institucionais.

A ideia essencial do procedimento é muito mais do que a meramente funcional – na aplicação de normas para os casos individuais. É parcialmente estrutural, no sentido de que uma ideia de estrutura tripla: a primeira parte, a segunda parte que a opõe e acima – em separado – um oficial imparcial com a autoridade de realizar uma determinação legal. Mas o que se destaca principalmente é o caráter procedimental, pois os julgadores oportunizam uma maneira de proceder, que oferece aos que estão diretamente ligados à disputa na aplicação de uma norma, a possibilidade de as partes submeterem e apresentarem evidências de acordo com as regras procedimentais rígidas que podem auxiliar na aplicação da norma em questão. Mesmo que o modo de apresentação dessas evidências possa variar conforme o sistema jurídico analisado, a existência dessa possibilidade é algo inerente ao estado de direito.

O direito é uma forma de governança social que trata os indivíduos com o devido respeito[17], no momento em que os indivíduos podem criar perspectivas individuais no presente a respeito da aplicação futura das normas que condicionam as suas ações e situações[18]. Aplicar a norma ao ser humano não é apenas como decidir o que deve ser feito com objetos, envolve uma atenção especial aos diferentes pontos de vista e ao respeito a personalidade do indivíduo com o qual se está lidando. Dessa forma, abrange uma ideia crucial de dignidade – ao se respeitar a dignidade daqueles que são afetados pelas normas como sendo seres capazes de construir e argumentar seu posicionamento perante o direito.

As teorizações acerca de aspectos formais do estado de direito, muitas vezes, são apenas uma forma de se chegar aos aspectos procedimentais do estado de direito, que é o que os litigantes realmente se preocupam, a norma aplicada na forma em que afeta o meio social.

Deixando clara a distinção, a teorização aqui exposta não envolve simplesmente que os devidos julgadores são obrigados a aplicar as regras determinadas, enquanto outros grupos não seriam. É que os estes trabalham sob o contexto das instituições mais procedimentalizadas; em que os direitos e deveres de todos os tipos permitem a aplicação de regras determinadas a estabelecer de forma justa e minuciosamente com ampla oportunidade de contestação caso a caso.

Nos sistemas que nos são familiares, a lei apresenta-se como algo de que “se possa fazer sentido”. As normas que são administradas em nosso ordenamento jurídico podem parecer apenas um comando ordenado após o outro para o cidadão comum. Entretanto, para os operadores de direito há a tentativa de ver o direito como um todo; tentando discernir alguma espécie de coerência ou sistema através de normas ordinárias, integrando itens específicos em uma estrutura em que se dá melhor vazão ao sentido total das normas quando integradas entre si. Dessa forma, o modelo de estado de direito requer que uma sociedade governada por este, veja mais relevância se os seus procedimentos legais não dão às partes a oportunidade de apresentar argumentos em seus casos do que o que o estado de direito enquanto substância ou formalidade representa.

Comunicando-se com a o princípio da separação dos poderes novamente, o estado de direito é violado quando as normas que são aplicadas por operadores legais não correspondem às normas que tenham sido tornadas públicos aos cidadãos ou quando agentes governamentais agem com base em seus próprios critérios, em vez de normas previamente estabelecidas. Se uma ação deste tipo se torna endêmica no meio social, então não só são as expectativas das pessoas tornam-se frustradas, mas cada vez mais os sujeitos vão vendo-se incapazes de formar expectativas em que confiar sob a legalidade do estado; e os horizontes de planejamento e as atividades econômicas viriam a encolher em conformidade. Por isso, é natural pensar que o estado de direito deve contrapesar a incerteza que surge do caráter argumentativo do próprio direito.

Mas, tão importante quanto isto, é o que fazemos do direito com as normas que já foram deliberadas e introduzidas sob a expectativa dos sujeitos. Não se deve apenas obedecê-las ou aplicar as sanções que as constituem; mas sim, prestar o devido respeito e observância a como estas normas abrem espaço para a argumentação adversativa, usando uma noção do que está em jogo na aplicação real, para licenciar um processo contínuo de argumento entre estas três partes, exercitando a interpretação elaborada sobre o que significa aplicá-las, como um sistema para os casos que vieram antes de nós, auxiliando também os que poderiam estar por vir.

Ao pensar em julgamentos, audiências e argumentos deve se deixar claro que: estes são aspectos inerentes ao direito, não opções à quem julga ou executa a lei realizar se achar conveniente. Assim, são partes integrantes de como o direito funciona; e a ele são indispensáveis como “pacote” do respeito ao direito para com o agir humano. Dizer que devemos valorizar os aspectos da governança que promovam a clareza e determinação de regras que visem as liberdades individuais, que são necessárias para o exercício livre destes procedimentos, principalmente o de possuir uma voz perante o estado havendo possibilidade de argumentar e participar tanto no meio social como no meio legal e deliberativo.

A Separação dos Poderes no Estado Brasileiro

Como exposto anteriormente o princípio da separação dos poderes trata-se de um princípio político ligado ao princípio do constitucionalismo, não sendo decorrente deste, ou necessitando de uma previsão legal em constituição para sua existência. Dessa forma a separação dos poderes para Waldron é uma escolha política da sociedade, assim como o constitucionalismo também o é.

Mesmo assim, o constituinte brasileiro optou[19] por positivar de forma expressa o princípio da separação dos poderes na Carta Magna, especialmente no artigo 2º, ao mencionar que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” e quando elege a “separação dos poderes” como cláusula pétrea em seu artigo 60.

Entanto, cabe aqui levantar o questionamento acerca da ordem institucional no estado de direito brasileiro: há uma crescente tendência do aumento das capacidades institucionais do poder judiciário em detrimento dos outros poderes através do exercício da jurisdição constitucional - e isto engloba parte da problemática do que é o judicial review[20]. O judiciário sobrepõe a sua própria valoração ao que foi feito pelo executivo e legislativo. Esta é uma competência que deveria ser exercida com grande cautela institucional, mas que vêm se tornando de prática mais comum. A constituição federal ao tratar o supremo tribunal federal como guarda da constituição, limita o debate constitucional entre os três poderes, em que pese até mesmo colocando as decisões judiciais a cima das deliberações legislativas ou discricionariedades administrativas.

Nos últimos anos do século XX e, com mais destaque, neste século XXI, houve alteração quantitativa e qualitativa do espaço ocupado pelo Supremo no cenário sociopolítico brasileiro. As grandes transformações institucionais, políticas, sociais e jurídico-culturais, que gradualmente se seguiram ao marco constitucional de 1988, tiveram, como um dos efeitos mais visíveis, a ascensão institucional do Poder Judiciário e, especialmente, do Supremo Tribunal Federal. (CAMPOS, 2014, pg. 19)

Ainda que a referida competência tenha sua importância histórica a fim de garantir o bom andamento democrático no período pós-ditadura, há de se questionar se em uma sociedade plural e de democracia consolidada como a nossa, o diálogo institucional não seria mais benéfico ao meio social. Dessa forma, o papel de cortes em casos relativos à separação dos poderes deveria estar limitado a determinar se a contestação da ação de um dos poderes está sob a ótica de seus poderes derivados da constituição, se estiver fora deste então haveria inconstitucionalidade - logo aqui se faria necessário repensar alguns de nossos artigos constitucionais. E no que tange o papel executivo em apenas realizar aquilo que legislação promulgada até então o permite fazer, tanto no sentido de administrar quanto no sentido de implementação de suas políticas discricionárias.

Assim, é necessário, além de uma postura menos ativista por parte da corte constitucional, um compromisso dos demais atores políticos de participarem na forma prescrita de procedimentos, em vez de simplesmente submeterem-se às decisões judiciais, afastando-se os prejuízos resultantes da inércia legislativa e o interesse em transferir para o judiciário o ônus de decidir sobre determinadas questões socialmente relevantes. O importante é a manifestação dos mais variados sujeitos, que devem utilizar dos procedimentos inerentes ao estado de direito para terem voz política e legal.

Considerações Finais

A separação dos poderes não é uma conclusão teleológica da sociedade, mas uma dentre várias escolhas políticas possíveis dentro dessa escolha política que fizemos denominada constitucionalismo. A possível ocorrência de uma supremacia legislativa nessa separação não ocorre devido ao conceito desse poder prever essa hierarquia, essa supremacia decorre do respeito ao processo chamado de estado de direito.

O estado de direito então é um processo que prevê primeiramente que o poder legislativo crie as leis, que essas leis possam ser amplamente difundidas e divulgadas pelas mais diversas instituições, que se respeite um período para que os indivíduos internalizem estas leis. Somente depois de transcorrido esse período o poder executivo estaria apto a tomar ações com base nestas leis e o poder judiciário poderia utilizá-las como base de suas decisões. Esse processo – difusão; internalização; supervisão; inspeção e julgamento – é de vital importância para Jeremy Waldron (2013, p. 458) que “há uma séria falha no estado de direito quando qualquer um desses vários passos é omitido”[21].

O autor não pretende com isso afirmar com isso que esses princípios – separação dos poderes e estado de direito – se confundem, ou ainda são o mesmo, sua ideia é de que para que seja possível um governo pela lei deve existir uma articulação institucional adequada que garanta a dignidade dessas leis, a separação dos poderes seria um dos requisitos para essa articulação.

Vale lembrar que o tema deste artigo não é a convivência independente e harmônica de três princípios; e sim o princípio que garante que cada um destes mantenha seu cerne íntegro e específico livre de contaminação por parte dos outros. O princípio da separação dos poderes assegura que cada um destes cernes se manifeste em tarefas específicas e são essas tarefas mais suscetíveis de interferência e contaminação por parte dos outros.

O que se visa, então, é uma distinção da integridade pura de cada um dos poderes, criando um cenário em que seja possível para os sujeitos confrontar o poder político de maneiras diferenciadas dentro de um estado de direito. Assim, a governança articulada através de fases sucessivas mantém sua própria integridade, através da distinção e manutenção dos poderes em si mesmos, garantindo a dignidade da legislação, a independência do poder judicial e a autoridade administrativa do executivo.

Referências

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______. Political Political Theory: Essays on Institutions. Cambridge: Harvard University Press, 2016.

Sobre o autor
César Augusto Cichelero

Professor e Coordenador do curso de Direito da Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul (FISUL). Doutorando em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com bolsa CAPES. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2018), com bolsa CAPES e integrando o grupo de pesquisa Metamorfose Jurídica. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2016), com bolsa PIBIC/CNPq e integrando o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas Sociais (NEPPPS). Advogado e colunista.

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