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Weber e o desencantamento do Direito:

do Estado de exceção e do "direito à exclusão"

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Agenda 22/01/2007 às 00:00

A modernidade produziu uma inflexão, que acabou por legitimar o "direito de exclusão", um direito instituído como legítimo no interior do Estado de exceção permanente.

"Nossa divisa é: sem quartel aos supersticiosos, aos fanáticos, aos ignorantes, aos loucos, aos perversos e aos tiranos...será que nos chamamos de filósofos para nada?" - (Carta de Diderot a Voltaire, em 29 de setembro de 1762)


RESUMO: Nossa hipótese primária é de que o Terrorismo de Estado, no passado e no presente, aniquilou os pressupostos e as bases do direito e da Justiça. Muito ao contrário, portanto, da ideologia de Estado que procura justificar esse mesmo Terrorismo de Estado sob a alegação de uma suposta segurança que se verificaria na égide da Razão de Estado (de acordo com a clássica doutrina de Maquiavel e de Hobbes). Subsidiariamente, a hipótese jurídica, portanto, salienta que a modernidade produziu uma inflexão, da ratio à desrazão, e isto acabou por legitimar o "direito de exclusão", um direito instituído como legítimo no interior do Estado de Exceção Permanente, no passado e no presente.


Da Razão de Estado ao Terrorismo de Estado no "mundo real/virtual"

O ponto de inflexão geral ressalta que a modernidade perdeu a razão, não de um único golpe, mas em processo lento, corrosivo, transformando assim a ratio (produto do Iluminismo) em razão instrumental: o nazismo, por exemplo, é considerado como o ápice da sociedade racionalizada.

Porém, mesmo esta inflexão está imersa em circuito ainda maior, em mutação mais grave e global, mais longínqua no tempo, justamente aquela que transformou a Razão de Estado em Estado de Exceção. A Razão de Estado está presente na formação da primeira modernidade, nos séculos XV e XVI sob a justificativa das lutas pela autoconservação. Já o Estado de Exceção tanto se vê nos séculos XVIII e XIX (definido por Marx como Estado de Sítio Político), quanto é válido o sentido adotado contemporaneamente, sobretudo no curso da Segunda Guerra, em que se verificou existir como um Estado de Exceção Permanente — é preciso recordar que o Estado de Sítio nazista, perdurou por exatos 12 anos.

Nossa tese também subsidiária é de que o Terrorismo de Estado, nos séculos XX-XXI, ressuscitou vários desses mecanismos de opressão, confusão, aniquilação (o "direito de exclusão" aplicado ao Iraque, por exemplo), expropriação de inimigos naturais ou fabricados, tão presentes no Estado de Exceção Permanente. A fim de melhor compreendera forma que se tem verificado na passagem do século XX ao XXI, chamaremos esse período mais recente de Terrorismo de Estado.

Como dissemos, esses mecanismos de manipulação e de opressão dos sentidos, dos sentimentos (como a insegurança e o terror de viver protagonizados pelo Estado de Sítio Psíquico) e das ações, ocorrem ou vigoram na plenitude do mundo real/virtual. De modo banalizado, à maior parte da população foi aplicado o "direito de exclusão", relegando-as à miséria, como nos casos da América Latina e em continentes praticamente inteiros, a exemplo da África. Aplicou-se o "direito de exclusão" sobre esses povos, porque no Estado de Exceção Econômica, milhões (logo serão bilhões) estão excluídos do valor de troca — e, portanto, são pessoas elas mesmas sem valor de uso.

Por fim, para efeito didático, o texto está dividido em quatro partes: 1ª) da luta de autoconservação à luta por reconhecimento; 2ª) Terrorismo ou desencantamento do mundo e da vida; 3ª) a atuação do Terrorismo de Estado no mundo real/virtual; 4ª) tarefas para realizar ou "saídas possíveis".


1ª PARTE

Da autoconservação ao reconhecimento

A primeira modernidade, séculos XV e XVI, em consonância com a formação das bases do Estado Moderno, centralizado, organizado, pronto para a expansão e conquista, teve um núcleo comum, uma base ideológica ou justificativa muito eficiente, e é isto que se chama de Razão de Estado.

Neste mesmo período, em Maquiavel e em Hobbes, o que vemos é a aposta em uma luta pela autoconservação, em que se trava uma guerra encarniçada pela sobrevivência pessoal, do grupo ou do próprio Estado (das Potências). Temos aí uma luta pela conquista e manutenção do poder, aliás, a forma mais rápida e segura de se garantir a sobrevivência (física e política) individual ou a soberania da Potência.

A filosofia social moderna pisa a arena num momento da história das idéias em que a vida social é definida em seu conceito fundamental como uma relação de luta por autoconservação; os escritos políticos de Maquiavel preparam a concepção segundo a qual os sujeitos individuais se contrapõem numa concorrência permanente de interesses, não diferentemente de coletividades políticas; na obra de Thomas Hobbes, ela se torna enfim a base de uma teoria do contrato que fundamenta a soberania do Estado. Ela só pudera chegar a esse novo modelo conceitual de uma "luta por autoconservação" depois que os componentes centrais da doutrina política da Antiguidade, em vigor até a Idade Média, perderam sua imensa força de convicção (Honneth, 2003, p. 31).

Maquiavel foi o precursor desta guinada entre a ética ou moral da política a uma visão substancialmente realista da vida política. Foi este realismo político que o levou a pensar a virtú como aquela capacidade humana (especialmente do Príncipe) de articular e de manter o poder em favor da sobrevivência do grupo — a própria Razão de Estado [1].

...Nicolau Maquiavel se desliga de todas as premissas antropológicas da tradição filosófica ao introduzir o conceito de homem como um ser egocêntrico, atento somente ao proveito próprio. Nas diversas reflexões que Maquiavel realiza sob o ponto de vista de como uma coletividade política pode manter e ampliar inteligentemente seu poder, o fundamento da ontologia social apresenta a suposição de um estado permanente de concorrência hostil entre os sujeitos: visto que os homens, impelidos pela ambição incessante de obter estratégias sempre renovadas de ação orientada ao êxito [2], sabem mutuamente do egocentrismo de suas constelações de interesses, eles se defrontam ininterruptamente numa atitude de desconfiança e receio (Honneth, 2003, pp. 32-33).

Mas há diferenças mais ou menos sutis entre ambos, pois Hobbes tivera a vantagem do tempo (centralização de Estados, a exemplo de Portugal, e das descobertas ultramarinas) e de novos conhecimentos científicos a seu favor, a exemplo da física e da concepção do chamado mecanismo: desdobramento do racionalismo em favor de sistemas organizados, mais tarde incorporados na fabricação da grande indústria. Além disso, chamaríamos a atenção para o fato de que o Estado Moderno estava em plena formação, e sem contar o advento ou incremento das bases estruturais do capitalismo [3].

Mas não são somente as experiências históricas e políticas da constituição de um aparelho estatal moderno e de uma expansão maior da circulação de mercadorias que dão a Hobbes vantagens sobre Maquiavel; em seus trabalhos teóricos, ele já pode ser apoiar também no modelo metodológico das ciências naturais, que nesse meio tempo conquistou validez universal graças à pesquisa prática bem-sucedida de Galileu e à teoria do conhecimento filosófica de Descartes [...] Para Hobbes a essência humana, que ele pensa à maneira mecanicista como uma espécie de autômato movendo-se por si próprio, destaca-se primeirament0e pela capacidade especial de empenhar-se com providência para o seu bem-estar futuro (Honneth, 2003, p. 34).

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Neste sentido, a teoria do contratualismo traria ou seria a justificativa (a explicação, o convencimento lógico e moral) necessária à Razão do Estado (desculpa, razão ou demonstração lógica do porquê do Estado existir), assim como o homem de virtú (Príncipe) é o sujeito que melhor conduz e comanda (condottiere) a máquina de poder público. Em Weber: Estado = amálgama sócio-político que tem o direito (na verdade, monopólio) de usar da coerção e da violência; contexto em que a lei positiva é a própria legitimidade legal.

Em sentido complementar, pelo aferimento do contrato social, o homem abandonaria o estágio primitivo de sua organização social e aí passaria realmente a experimentar o sabor/dissabor político. Saindo do estado de natureza (guerra de todos contra todos [4]), o homem teria pela primeira vez a chance real de monitorar e de aplicar sentidos próprios à vida social (menos dependente das adversidades naturais). Mas, o que é a teoria do estado de natureza?

...ela deve expor o estado geral entre os homens que teoricamente resultaria se todo órgão de controle político fosse subtraído a posteriori e ficticiamente da vida social; já que a natureza humana particular deve estar marcada por uma atitude de intensificação preventiva de poder em face do próximo, as relações sociais que sobressairiam após uma tal subtração possuiriam o caráter de uma guerra de todos contra todos [...] as conseqüências negativas manifestas da situação duradoura de uma luta entre os homens, o temor permanente e a desconfiança recíproca, devem mostrar que só a submissão, regulada por contrato, de todos os sujeitos a um poder soberano pode ser o resultado de uma ponderação de interesses, racional com respeito a fins [5], por parte de cada um (Honneth, 2003, p. 35).

Assim, a teoria do estado de natureza tem um efeito reverso, ou seja, quer menos explicar a origem social do homem, e mais justificar a existência de um poder público centralizado e organizado — quer amedrontar com a idéia de como seria terrível e perversa a luta pela autoconservação, exatamente se não houvesse a presença vigilante do Estado guarda-noturno. Acima de tudo, o Leviatã deve prover os homens de segurança e dar garantias de vida.

Da guerra de todos contra todos, da luta pela autoconservação, enfim, chegamos à luta por reconhecimento, em que não basta estar vivo, sobrevivendo, sendo necessário negar a negação imposta pelo direito de exclusão, presente no estado de guerra generalizado.

Luta por reconhecimento

Ao contrário do pressuposto do "direito de exclusão" (tão presente na luta pela autoconservação), deve haver a premissa da lógica social, pois como queria Habermas: "Não há direito autônomo sem democracia realizada" (Neves, 2001, p. 112).

Habermas, então, pensará o direito como mediação entre o sistema (o instituído, as convenções sacramentadas na fórmula do Direito Posto e o reino do poder que se sustenta montado no Estado de Direito) versus o mundo da vida (na ordem da vida social, dos dramas e dos conflitos sociais, culturais, morais — onde a pressão por Justiça pode conduzir ao Estado Jurídico):

Aponta para o fato de o direito, apesar de servir como instrumento de poder, precisar de justificação moral. Naquilo que se refere ao plano moral, como no caso dos direitos fundamentais, o direito é considerado indisponível. E mesmo a intervenção instrumental no direito exige o respeito a procedimentos baseados em princípios universalistas [...] Em primeiro lugar, define a dimensão sistêmica como momento de instrumentalização política do direito, isto é, no sentido totalmente contrário à idéia de autonomia. Além disso, aponta para a fundamentação moral do direito, o que significaria a negação de sua autonomia no modelo sistêmico [...] A normatividade refere-se à validade e, portanto, exige fundamentação moral ou, mais abrangente, justificação discursiva do direito (Neves, 2001, pp. 115-116).

No mundo da vida, em que se exige justificação moral, busca-se a esperança de que há ou pode haver Justiça no Estado Jurídico, como mundo ideal dos princípios gerais do direito; ao passo que o sistema, como instrumento de poder, se contenta com os apostolados do Estado de Direito, como subsunção ou representação formal.

A passagem ou os porquês de se passar da luta pela autoconservação (sobrevivência) à luta por reconhecimento (de sujeitos, direitos, garantias e liberdades) é tão difícil e ao mesmo tempo necessária, prioritária. Tão básico quanto sobreviver é deixar este estágio inicial (inercial) da vida social — vimos que é preciso ir do reino da necessidade ao reino da inclusão e do reconhecimento. Curiosamente, tanto no Ocidente, quanto no Oriente, ao norte e ao sul, no mundo civilizado e nas áreas mais afastadas, o que se vê é a mesma luta incessante: a luta para que o sujeito e o Outro, sejam reconhecidos.

A maior dificuldade está em ver que o Outro não existe apenas para satisfazer a todas as nossas necessidades e/ou vontades, mas sim que deve haver uma satisfação intersubjetiva, uma vez que as pretensões de validade de todos os envolvidos são igualmente fundamentadas e, portanto, legítimas. Seguindo-se este raciocínio: "Os sujeitos não são concebidos de um ponto de vista egoísta e pretendendo apenas manter os seus espaços de liberdade. Além de sua postura como sujeitos privados, impõem-se os direitos de participação em uma práxis orientada para o entendimento intersubjetivo" (Neves, 2001, p. 117).

Neste sentido, a luta por reconhecimento de direitos, de diferenças, de crenças, de valores, de princípios, de necessidades, de identidades, acaba perdida — não apenas diminuída — diante da luta pela sobrevivência. Essa fase primária atua quase como um obstáculo à afirmação e ao desenvolvimento subseqüente da humanidade, pois, se Maquiavel estivesse absolutamente certo, os grupos políticos ou os homens de poder (como chefes da máfia ou de gangues) jamais perderiam seus postos.

Se a política estivesse restrita tão somente à autoconservação [6], logicamente, teria sido ela forjada apenas pelos detentores de poder e, assim, jamais restaria espaço ou capacidade para novos grupos ou ideologias oporem suas vertentes ou afirmarem suas outras convicções. Se se tratasse unicamente de um poder consumado, nem teria surgido a idéia, a ideologia ou a questão da autonomia, pois tudo estaria consumado, restrito, limitado pelo julgamento do sumo mandatário.

Portanto, pela lógica básica, se há oposição é porque há brechas na afirmação, na tal consumação, isto é, há furos no comando e no controle que se julgavam absolutos, e isto permite ver que o poder não é tão hegemônico quanto se supunha. Inexoravelmente, mostrou-nos a história, há fraturas no poder que se supunha absolutamente inexorável, inviolável, por onde surgem novos impulsos, de ideais revigorantes e com novos atores e sujeitos. Na verdade, se tudo se limitasse à luta por autoconservação, sequer teríamos evoluído das pinturas rupestres.

Assim, sem a luta por reconhecimento não pode haver reconhecimento de movimentos (feminismo, dos "negros", do meio ambiente); de etnias (palestinos, curdos, índios); da luta de classes (proletariado); de ideologias (anarquismo, socialismo); de direitos (sociais, trabalhistas, ambientais); por novas políticas públicas (desobediência civil); de interesses sociais (movimentos sociais); de interesses sociais e populares (movimentos populares), de novas contradições e de demandas menos tradicionais (no ciberespaço, no mundo real/virtual).

Sem forçar à liberdade, por meio da luta por reconhecimento, não há aceitação de outras necessidades (idosos, deficientes físicos); de novas necessidades (inclusão digital); de um modo de vida (no interior, no meio rural dos caipiras); de outra forma de ver o mundo (hippies) e de muitos outros interesses sociais (ribeirinhos, caboclos, camponeses, assalariados, peões, bóias-frias, mascates, trabalhadores domésticos, artesãos, pescadores); de novos paradigmas (derivados da criação de artistas, cientistas, inventores); de movimentos combatentes, mas adormecidos (estudantes); de categorias (professores); de novos constrangimentos e estranhamentos (no mundo do trabalho).

De todo modo, sem a luta por reconhecimento (forçando a entrada) não há a aceitação do novo ou do diferente, por mais honestas e legítimas que sejam as suas necessidades e até comoventes ou dramáticas que sejam suas reivindicações. Acatar a idéia do direito não anula a necessária crítica — aliás, crítica que deve ser radical, profunda, verdadeiramente honesta. Desse modo, acreditar-se na prevalência dos direitos humanos não exime da crítica de que a vigência dos mesmos, está longe de ser uma realidade.

De outro modo, é preciso balizar os meios e os fins, entre a exigência moral de tais direitos (existentes ou não) e a realidade que os nega frontalmente. Seja para aqueles que vivem da política, seja para aqueles que se debruçam para uma vida na política(Weber, 1993), é necessário ter lastros entre o que se quer e o como se pode chegar lá. Porém, para quem acredita ter a Razão de Estado como sumo valor, como balizamento último da vida social, há um fim sumamente relevante que deve prevalecer, dado que é um fim de interesse coletivo, múltiplo — aí os fins, justificam os meios. (O que só reforça a tese de que é preciso pensar em antivalores).

Por isso, parece tão simples a alegação de que se as solicitações são verdadeiras, legítimas e justas, o emprego dos meios para alcançá-las pode ser lícito, ético ou não! Diante de fins tão nobres, os meios podem ser marejados e manejados.

Portanto, fora do âmbito democrático, de reconhecimento e de tolerância, o Estado pode alegar a mesma situação (a legitimidade de seus fins) e assim empregar todos os meios necessários à sua satisfação. Não é difícil ver que daí derivam tanto o Estado de Exceção, quanto o Terrorismo de Estado. Desse modo, o príncipe (enquanto homem de poder) passa a ser aquele que emprega todos os meios possíveis. Por isso, a virtú se limita à trapaça, à chantagem, à intimidação e ao uso crescente da força física. Aliás, surgem e se fortalecem porque a autoridade se coloca acima da alteridade e porque passa a desconhecer a necessidade premente do reconhecimento das intersubjetividades como substrato da solidariedade.

Sob este aspecto, seria interessante pensar o direito a partir de uma função de dobradiça (Habermas), em que este deve servir à sustentação dos sistemas vitais (por exemplo, o direito/coerção aplicado ao combate à própria violência e barbárie do crime organizado), mas também como ideário e como fonte de inspiração social pelo reconhecimento, exatamente, de novos discursos sociais e de novos direitos. Um direito que sirva ao sistema tanto quanto satisfaça as necessidades e demandas sociais está apto à árdua tarefa do reconhecimento.

Em resumo, a proposta de Habermas: "Nesse sentido, critica o modelo de legitimidade a partir da legalidade, tal como formulado por Weber e aponta para o princípio da fundamentação. Em relação a Parsons, oferece uma releitura da concepção de societal community e, sobretudo, do conceito de inclusão, referindo-se à redução sistêmica dos mesmos" (Neves, 2001, p. 118). Portanto, nada mais estranho ou escuso [7] do que pensar o direito como conjunto de normas e de regras positivas que servem ao controle e ao harmônico convívio social.

Sob este pressuposto é que podemos/devemos captar um sentido amplo, mas profundo, para a idéia da luta por reconhecimento de direitos, como se fora a base social explicativa para a própria teoria do direito, pois, sem esta guinada para o mundo da vida, só há opressão e insensibilidade social — aliás, agindo assim, pode-se dizer que o direito acabou constrangido à mera coerção [8]. É como se a esta idéia de ver por dentro do direito se inscrevesse a possibilidade de se falar em teoria do direito acoplada à realidade social que a gerou; e não apenas como serviço petrificado do sistema, não só como suporte de um poder estagnado nos aparelhos repressores do Estado.

Eis, portanto, a idéia de teoria que não abandona sua origem social e a práxis futura: "A noção de teoria está ligada a esse primado do ver: de teos – Deus, cuidado – e orein – olhar; teoria significa ‘prestar atenção àquilo que se vê" (Matos, 2006, p. 182). Este olhar e ver por dentro do direito, então, não será um olhar em linha reta, um olhar fixo (ainda que atento), mas que seja um olhar enviesado, em diagonal, procurando as bifurcações, os extravios e os estrabismos. Quando se fizer necessário, ver por entre linhas, "por meio de...", buscando-se as intersecções, indagando sobre o incômodo.

No texto, vimos algumas intersecções, entre as lutas pela autoconservação e por reconhecimento [9]. A seguir, veremos a batalha ou o parto que gerou tanto o direito de exclusão, a partir do Estado de Exceção, quanto o próprio Iluminismo e a instauração do direito ao saber, ao esclarecimento, à autonomia com consciência para agir.

Da Paidéia ao Iluminismo

O Iluminismo foi um movimento filosófico e social nascido na segunda metade do século XVIII; esteve marcado pela crença profunda na capacidade da ciência apontar soluções para os problemas da sociedade e da natureza; para Kant, o Iluminismo é a saída do estado de não-emancipação (Sapere aude – "ouse saber"). Mas, também acreditava-se na edificação de uma sociedade mais livre, com igualdade de oportunidades. Os iluministas eram contumazes escritores de cartas e sua Enciclopédia foi, certamente, a primeira Internet, o primeiro Google e a primeira Wikipédia.

A razão do Século das Luzes teve em Voltaire seu grande representante e inspirador, e alimentava a esperança de que o conhecimento traria esclarecimento para a libertação: autonomia. Os humanistas do Renascimento tinham como bordão que "aquele que aprendeu a ler, jamais estará sozinho". Portanto, alimentavam uma proposta de ética e de solidariedade.

O Século das Luzes foi uma época em que se sabia perfeitamente que o "saber é poder", mas também se queria que fosse um saber a serviço do "poder social" e não unicamente como alimento do Estado. Trata-se de uma época em que se queria a razão a serviço do homem (como pressuposto da autonomia) e não do Estado (meramente instrumental).

No Setecentos europeu, época conhecida como a das Luzes, a razão esclarecida vinculou-se à elaboração da Enciclopédia, ao cultivo do pensamento autônomo através do livro. Livro e biblioteca dizem respeito à criação de um espaço comum para a apreensão e preservação da memória escrita, das aventuras do pensamento e de suas experiências. Seu arquétipo: a Biblioteca de Alexandria (séc. III a.C.) cuja finalidade era menos a difusão filantrópica e educativa do saber na sociedade e mais reunir, como um tesouro, todos os escritos do mundo conhecido, no coração mesmo do palácio do rei, palácio (e biblioteca) ocupando um bairro inteiro. Rolos de papirus ocupavam as "estantes", acessíveis a uma elite de doutos e letrados que lêem, conversam, trabalham e, eventualmente, ensinam nas galerias e salas adjacentes (Matos, 2006, p.07).

Esta é a razão que perdemos ou que, talvez, sequer tenha vingado. Por ironia, o Iluminismo viria a descobrir que a guerra é obra direta da Razão de Estado. Em suma, a outra face do Iluminismo seria a intolerância. De modo claro, a intolerância realçada à condição instrumental (como recurso de força e de poder), distanciava-se em razão e espírito do tempo em que o certo estava no "espetáculo de se ver a verdade", a si mesmo, à intersubjetividade.

A perspectiva do "cálculo de poder" (do mundo desencantado) e que tão bem serve à Razão de Estado, portanto, estava bem ali adiante. Todavia, ainda era possível pensar maneiras de "dominar o conhecimento", porque esta pressuposição desembocaria na autonomia (para a liberdade, é preciso estar predisposto). De todo modo, para os iluministas do século XVIII, "o que pode ser explicado é maleável e pode ser dominado".

De lá para cá, a Paidéia nos traria um sentido moderno de "educação para a República" e, portanto, algo bem distinto de uma "educação moral e cívica" patrocinada pelo Estado (ao estilo de "tradição, família, propriedade"). A educação é necessária à formação do conceito de República e à intersubjetividade que isto possa congregar.

A Paidéia adquiria assim um fator agregador, de produção de laços sociais e de formação de uma solidariedade realmente mais intensa. Isto se passava em Alexandria, mas poderia ser ajustado, atualizado, para os dias atuais — inclusive ou especialmente com o aporte fornecido pela rede telemática de comunicações. A Paidéia era esta busca de sentidos na vida cultural:

A ausência de uma memória local encontrava na Biblioteca uma reparação simbólica, atraiu todos os eruditos e pensadores do mundo antigo, dando a conhecer melhor sua função principal: a paidéia, a cultura como elemento federativo e constituidor da identidade helênica, substituindo antigas figuras da solidariedade, antes ligadas ao civismo, à família e ao território. O século das Luzes compartilhou essa utopia — a do livro, da leitura e da escrita, paidéia capaz de tornar os homens melhores (Matos, 2006, p. 24)

Daí o sentido de que os clássicos da humanidade são os gênios que tornaram a vida social melhor:

Neste sentido, Burckhardt escreveu sobre os "grandes homens" e os bens culturais: grandes são Platão, Píndaro, Sófocles, Sólon, Galileu, Michelangelo, Rafael, mas não os grandes navegadores, porque a América teria sido descoberta mesmo se Colombo tivesse morrido recém-nascido. Mas a pintura "A Transfiguração", de Rafael [10], não teria sido realizada se ele não a tivesse feito. Grandes são aqueles sem os quais o mundo seria incompleto. Humanismo, pois: na sociedade e as boas leituras que conduzem à afabilidade, à amizade, à socialidade (Matos, 2006, p. 28).

Em suma, este é o poder dos clássicos, do humanismo, da educação para a República, da Paidéia (como educação desinteressada – pelo amor ao conhecimento -, não instrumentalizada pela economia ou pelo poder). Neste sentido, no Brasil, o Estado de Direito é revolucionário, uma vez que a idéia de igualdade de direitos fundamentais é algo a ser inventada, bem como o poder popular, inerente ao Estado de Direito Republicano, é ainda um fato político inócuo [11]. Fatos republicanos que, notoriamente, estão em baixa no mercado e na política e bem distantes do interesse popular, no mundo real/virtual. Fatos e valores que foram subjugados pelo chamado desencantamento do mundo.

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Weber e o desencantamento do Direito:: do Estado de exceção e do "direito à exclusão". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1300, 22 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9414. Acesso em: 19 nov. 2024.

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