2ª PARTE
Terrorismo ou desencantamento do mundo e da vida
De forma irônica, também devemos pensar que este mesmo molde da Razão de Estado na chamada primeira modernidade, nos dois séculos seguintes (XVI e XVII) viria a instituir o Estado de Exceção e o Iluminismo, no pós-Revolução Francesa. Portanto, o que se chama de segunda modernidade, foi a contradição em si mesma, pois elaborou concomitantemente a razão que liberta e a razão que oprime. Por isso, é preciso não só buscar o logos da modernidade, revelar as construções e as convicções, como também o descompasso, o descompromisso com o todo, as contradições, as insuficiências, as nebulosas.
De certo modo, o que o texto aponta é uma leitura possível do desencantamento do mundo, no sentido de que se perdeu a aura de sagrado que recobria nossa visão a respeito do próprio tema do Iluminismo (e que o texto só quer chamar a atenção para sua importância). Esta idéia de desencantamento do mundo, por seu turno, já estava presente em Walter Benjamin:
Benjamin procura mostrar, seguindo a teoria do desencantamento do mundo, a rede conceitual que viria se tornar hegemônica na cultura do Ocidente: a desvalorização do corpo humano, testemunho de nossa natureza decaída e culpada desde o pecado original, corpo sacrificado à ética da salvação pelo trabalho e pelo desenvolvimento da ciência [...] Em contrapartida, na modernidade desencantada produz-se a desdivinização do corpo humano e a dessacralização da natureza – que na Idade Média eram obras de Deus – e tanto uma como outra se tornam seculares a partir da Reforma [...] Desencantamento significa perda da aura, aura que pertence à ordem do sagrado, mas num sentido preciso: o sagrado se ausenta, mas a aura permanece no feminino, como um Safo [12] (Matos, 2006, pp. 182-183).
Essa desdivinização negativa do corpo permitiu, entre tantas barbaridades, formar-se a idéia da Solução Final, com a total banalização do mal (Arendt, 1999), o extermínio autorizado e sacramento pelo Estado de Direito Nazi-fascista. Porém, de outro modo, também permitiu a abertura de novas descobertas em política, no próprio direito (direitos humanitários, no pós-2ª Guerra), um outro erotismo, uma ciência muito mais invasiva [13], portanto, preventiva, eficiente.
Para Weber, no entanto, o desencantamento é um processo longo, multifacetado que abarca tanto a vida privada quanto a pública; há um desencantamento tanto na esfera religiosa, quanto no erotismo, na economia, na política, na intelectualização, na técnica.
Desencantamento da vida
Já o ponto de inflexão da modernidade está em que o desencantamento do mundo gerou uma ideologia da emancipação (Iluminismo), mas teceu uma estrutura de desrazão ainda mais forte:
E ainda, a ciência objetivista se faz e se protege na ideologia da racionalidade tecnológica, onde todas as escolhas especulativas que afetam o conjunto dos viventes do universo e a natureza se fazem passar por "decisões técnicas", abolindo o que o mundo moderno propunha como novidade: a liberdade do homem e sua autonomia de reflexão [...] Sem falar no desencantamento psíquico, na "frieza burguesa" e no mundo da indiferença – cuja "infra-estrutura" é a queda de todos os valores da tradição em valor de troca (Matos, 2006, p. 86).
Por isso, falamos genericamente de desencantamento da vida, mas há um desencantamento da natureza, com a destruição das fontes da vida natural, quando perdemos a consciência do ethos e passamos a depredar tudo, a consumir incessantemente os recursos da vida:
A natureza não era muda, mas tornou-se, não é mais o ethos antigo, tampouco é ela ameaçadora, hostil e fatal ao homem, apesar de nunca inteiramente capaz de controlá-la [...] Na Ilíada, Homero nos fala do corcel indomado que desesperadamente luta contra as correntes que o tornam cativo e, uma vez liberado, corre a galope até o momento em que pára, no lugar em que se "sente bem", o lugar que lhe confere "identidade" – seu ethos. Assim, ethos é morada. Em seguida, veio a significar gruta, antro, caverna – morada do homem (Matos, 2006, p. 87).
O que se perdeu e que agora nos ameaça gravemente de morte são os suportes da natureza, é esse modo de vida, essa antropologia global. Daí também se falar em desencantamento da vida: "O mundo é um vivente único, composto de uma mesma alma e substância. Assim também as palavras zoon e bios – a primeira dizendo respeito a physis, ao animal e ao homem, a segunda constituindo um modo de vida" (Matos, 2006, p. 87).
Desde a Grécia clássica já se sabe que há um desencantamento técnico e físico que afeta diretamente a natureza, enquanto suporte original, seminal, unificador da vida: "Se a physis grega é perfeita, se traz em si mesma sua razão de vir a ser e perecer, qualquer intervenção em seu curso era, para o grego, violenta. Assim, por natureza, toda técnica é violência feita à natureza" (Matos, 2006, p. 88). Portanto, a techné grega nada tem a ver com a técnica moderna, pois a primeira era um estudo que combinava arte e cuidado e, a segunda, sempre esteve mais associada ao próprio domínio da natureza (e quiçá dos homens).
Daí a necessidade de hoje revermos o Mito de Prometeu com muito mais atenção e cuidado, como um alerta, talvez até mesmo como presságio de que é preciso por limites não no conhecimento, mas sim no uso/desuso que se faz do conhecimento acumulado. A Caixa de Pandora já está aberta, mas ainda assim, é preciso redobrar cuidados para não mais sacramentarmos justificativas para a desrazão que, por exemplo, há no "direito de exclusão" criado pelo Estado de Exceção:
É esse olhar que aparece tanto no Prometeu acorrentado de Ésquilo como em Antígona: o do poder da racionalidade e os riscos de seu deslimite e desmedida no desejo de conhecer para fins de domínio técnico. Eis por que os gregos desenvolveram uma dietética, a arte da saúde e do equilíbrio do corpo e da alma e das diferentes maneiras de refletir sobre a prudência e a moderação (Matos, 2006, p. 89).
Por isso é que também se pode falar em desencantamento da vida. Na interpretação dada por Adorno, magia e razão se encontram no fluxo do desencantamento (Matos, 2006, p. 90). Porém, foi Descartes quem pôs uma espécie de pá de cal em qualquer encantamento sobrevivente ao pensar um mundo racional, afirmando-se no mecanicismo, na extensão e na geometria. Sua dúvida metódica era essencial ao capitalismo e ao Estado Cientificista, pois como diria Marx séculos depois, as verdades e as tradições precisavam ser removidas, a fim de que se abrisse espaço para o Fausto da modernidade. Aqui seria oportuno destacar os textos políticos do jovem Marx, sobre esta questão do Estado e, depois, sobre a chamada grande indústria.
Marx faz uma crítica ao Estado Alemão que pode nos fornecer duas possíveis pistas: 1) a crítica pode se referir a todo o Estado Moderno; 2) esse passado ressentido da cultura política alemã pode explicar o porquê do Estado de Exceção ter aí encontrado seu apogeu, sobretudo no nazismo surgido cem anos depois:
Mesmo a respeito das nações modernas, a luta contra o teor limitado do status quo alemão não carece de interesse; para o alemão, o status quo constitui a evidente consumação do ancien régime e o ancien régime é a imperfeição oculta do Estado Moderno. A luta contra o presente político dos alemães é a luta contra o passado das nações modernas, que ainda se vêem continuamente importunadas pelas reminiscências do seu passado [...] O ancien régime teve uma história trágica, uma vez que era o poder estabelecido no mundo, ao passo que a liberdade era uma fantasia pessoal; numa palavra, enquanto acreditou e tinha de acreditar na própria legitimidade (Marx, 1989, pp. 81-82).
A questão revelada e em destaque pode ser a de que o Estado Moderno foi conduzido por forças conservadoras e até reacionárias (ancien régime). Talvez por isso a modernidade nunca tenha sido assim tão moderna, devendo constantemente acertar contas com seu processo de formação original, com seu passado mais remoto de conservadorismo. Disso também decorre a perspectiva da Razão de Estado, no fulgor do Estado Moderno, ter-se revelado a própria guardiã do status quo. Por fim, esses fatos se fariam muito bem representar pela ideologia de que há razões em que é igualmente válida toda e qualquer exceção à regra. Sob esse sentido, o Estado Moderno seria uma versão transformada (na verdade uma conversão falida) do Estado Cientificista em Exceção de Exceção.
Do Estado Cientificista ao Exceção de Exceção
Quando se pensa no saber que é poder (Bacon), logo vem à mente a equação já tornada popular: "Um poder de dominar e de fazer mentes e corações". O mote político desse pensamento "científico", como viemos dizendo, é exatamente o Estado Cientificista (Pisier, 2004). Uma ação estatal que desvia premeditadamente os investimentos e as atenções das políticas públicas populares para incrementar o desenvolvimento capitalista. Investe em ciência e tecnologia para alimentar o capital e porque precisa entender a si mesmo: os déspotas esclarecidos tinham esta função, entender o poder para melhor aplicá-lo. Mas, trata-se apenas de um pseudo-conhecimento porque não admite uma crítica mais contundente.
Ao produzir um conhecimento com resultado programado, o Estado Cientificista estimula o "princípio da racionalidade-utilitária": "ser feliz para promover o progresso". Também há a condensação de dois outros princípios: bondade universal (instrumental); prudência racional (abalizar custo/benefício). O que reforçou sua ligação à promoção e ao desenvolvimento da grande indústria, praticamente desde o século XVII.
Nos séculos XIX e XX fundem-se mais organicamente sociedade e ciência, com o racionalismo propondo o completo domínio da natureza, uma vez que o homem é um ser superior (supra-natural): "pensa e logo existe"; "pensa, logo domina". Por isso, há pleonasmo na crítica de que "saber é poder", na medida em que se trata de um saber para dominar, desencantando valores e revelando segredos recônditos, expondo suscetibilidades e fraquezas que possam ser exploradas. Também por isso, técnica e razão se convenceram da necessidade de um encontro com a ciência moderna — a tecnocracia:
Em suma, os tecnodirigentes estão de acordo no essencial. A política politiqueira e a administração executiva estão mortas. Viva o político e a gestão! As opções partidárias cedem lugar à resolução dos problemas. São afastados revolucionários e conservadores, deixando caminho livre para os animadores da mudança social. O Estado-cientificista será dirigido por negócios e técnicos (Pisier, 2004, p. 493).
Com isto, também estarão querendo decretar morta a ideologia. Portanto, a tecnocracia, por sua vez, vale-se de ciências complementares, auxiliares, de estudos e de técnicas suplementares, tais como: empirismo (experimentalismo); "política racional"; "ciência social aplicada" (por exemplo: direito, sociologia funcionalista, psicologia behaviorista). Neste curso, a síntese ideológica se verifica em um pensamento simples: "É preciso conhecer bem a máquina, para azeitar o seu funcionamento". Este "azeite social" fará do positivismo de Comte e de Durkheim, o meio de seu desembarque na racionalidade industrial. Nesta fase, a chamada educação permanente seria permanentemente técnica.
A crença estaria depositada na equação de que industrialismo e racionalismo seriam capazes ou suficientes para inibir as anomias sociais — veja-se que se fala de anomia e não de antinomia. No entanto, é desse modo que Durkheim irá se integrar ao Estado Moderno, especialmente porque a racionalidade se aplica tanto à cotidianidade quanto à política institucional.
Seguindo-se a compreensão deste fenômeno por intermédio de Weber, temos que no capitalismo industrial o ascetismo é elevado à potencia múltipla de si mesmo — por causa de sua crescente e irrefreável expansão. O homem racional é o eleito por Deus para compreender e dominar a natureza e os demais homens inferiores. Por isso Weber foi um crítico das teorias do ressentimento, porque foi necessário o surgimento de uma outra ética.
Esta outra ética em Weber quer crer que o Estado decorre do social ou dos conflitos sociais (da ética protestante aos conflitos do Estado Capitalista). Porém, trata-se de um Estado que se organiza como referência da verdade e daí como emergência da potência. Ainda com Weber, temos que a dominação racional, sob o ponto de vista do Estado Cientificista, está calcada no saber puramente técnico. A conclusão política é de que este procedimento levaria mais ao melhoramento técnico (calculado) do controle social (burocrático), do que propriamente ao aprofundamento da democracia (utopia).
Weber conclui sua aposta na democracia plebiscitária: mais racional, menos popular (demagógica, carismática). Mas chega a esta conclusão com certo receio, até mesmo porque o individualismo metodológico, estaria em jogo. De certo modo, o desencantamento do mundo seria uma crítica inicial à máquina vazia e seca em que se tornou a sociedade moderna: racionalizada, planificada.
Uma outra deformidade que decorre da planilha política do Estado Cientificista é o desvio jurídico que se imputou a Kelsen, para quem "se é o Estado quem legitima o direito, é porque é o Estado quem legitima a soberania. Então, aí está aberto o caminho para o Estado de Exceção".
Aluno de Max Weber, Karl Schmitt se tornara um crítico da democracia. Crítico do Iluminismo, Schmitt dirá que o Estado deve ser uma máquina decisional, e este será outro aporte dado ao robustecimento do Estado de Exceção. Kelsen justificou o Estado Cientificista, mas, ao contrário de Schmitt, não conhecia a exceção ao direito, só as regras que interessassem realmente ao direito, ao normal — para quem regra é regra, e não exceção. Schmitt, por sua vez, quer nos convencer de que a exceção está na regra e que, portanto, não é patologia político-jurídica.
Partindo-se de Schmitt, então, pode-se pensar que há uma versão positiva ou positivista acerca do Estado de Exceção. É uma versão especialmente positivista no sentido de que procura retirar o conteúdo político (por exemplo, o Estado de Sítio Político [14]) da definição de norma jurídica positivada (ou não). Com isto, quer-se uma espécie de teoria pura do estado de exceção [15]. No caso de nosso texto, no entanto, diríamos que há uma teoria pura do direito à exclusão. Neste sentido, há uma controvérsia de origem na teoria da exceção, pois que se percebe uma contradição manifestamente objetiva: o direito se julga imune ao realismo político (do qual, ironicamente, tanto Weber quanto Schmitt eram manifestamente adeptos).
Há uma controvérsia porque no Estado de Sítio Político é a política que impõe claramente a exceção à liberdade, à democracia, à própria segurança jurídica de todo cidadão. Para desfazer-se dessa dificuldade, Carl Schmitt vai apenas declarar que o Estado de Sítio não é parte da exceção – como se a declaração desfizesse a realidade.
Aplicando-se as regras do Estado de Exceção [16] é como se houvesse, ou melhor, como se se quisesse (e ainda que não houvesse) a subsunção da política. Neste manuseio da sublimação (já anunciada), o que se pretende é a política ter sido sitiada. Porém, não se pode esquecer de que nunca haverá "vazio de poder" (especialmente para se decretar a exceção à regra), uma vez que o Estado de Exceção logo encontra um nomos, um direito pressuposto que corrobora a ação do poder: àquela altura, a ponto de obrigar a imposição do Estado de Sítio, um poder já esvaído de significado e, por isso, repelido e confrontado.
Desse modo, a exceção é uma regra de poder. Há uma clara inflexão (ou manipulação do preceito da subsunção) operada no seio da razão iluminista e sua conversão em razão instrumentalizada pelo poder. Nesta inflexão da razão, absorvendo-se a razão de modo inverso no âmbito do Estado-Nação (laicização, secularização) ocorreu uma curiosa divinização do poder. Para Schmitt, a exceção está para a jurisprudência, assim como o milagre está para a teologia.
Nesta linha, poderíamos acrescentar que a crença na santíssima trindade se converteu na teoria da divisão dos três poderes e depois em outra tripartição jurídica: "coisa julgada"; "ato jurídico perfeito"; direito adquirido" [17]. Seguindo-se esta divisão, após o tratado de Westfália, em que se definiu a organização do Estado Moderno, pode-se ver a santíssima trindade mais uma vez: povo, território, soberania. Ou, novamente, quando Carl Schmitt tratou da unidade política: Estado, movimento, povo. Articulação que ainda o levaria a pensar em três tipos de pensamento jurídico: normativista puro, decisionista, institucional. Mais curioso, no entanto, é associar essas divisões à ideologia da representação tripartite do fascismo.
É curioso notar Weber (da dominação racional-burocrática) na definição e na escolha da ideologia institucional do direito: "Enquanto que o puro normativista pensa em regras impessoais e o decisionista realiza, em uma decisão pessoal, o bom direito da situação política corretamente avaliada, o pensamento jurídico institucional desenvolve-se em instituições e configurações suprapessoais" (Schmitt, 2006, p. 04 – grifos nossos).
Também é desta configuração que advirá o conceito de soberania: Soberano é quem decide sobre o estado de exceção, dirá solenemente Carl Schmitt (2006, p. 07). Mas, o que deve fazer o soberano em caso de extrema necessidade? A resposta à pergunta é igualmente uma resposta dada por Bodin e retomada por Schmitt:
Até que ponto o soberano se submete à leis e se obriga diante das corporações? [...] Bodin responde no sentido de que promessas são vinculantes, porque a força obrigacional de uma promessa repousa no Direito Natural; porém, no caso de necessidade, cessa a vinculação segundo os princípios naturais gerais. Em geral, ele diz que, frente às corporações ou ao povo, o governante está obrigado somente enquanto o cumprimento de sua promessa for de interesse do povo, mas ela não se vincula si la necessite est urgente (Schmitt, 2006, p. 09).
Com isto, diz Schmitt, Bodin inseriu a decisão no conceito de soberania. Por isso, a resposta à indagação de quem é o soberano na condição de exceção, já traz em si a resposta à questão de quem é a suma competência nestes casos: o soberano absoluto. Porém, a questão da exceção se ressente toda vez que se quer saber quem é o detentor do poder absoluto:
Em uma locução mais usual, perguntava-se quem teria a presunção, para si, do poder ilimitado. Por isso, a discussão sobre o estado de exceção, o extremus necessitas casus [...] Em razão disso, também se pergunta quem decide sobre as competências constitucionais não regulamentadas, ou seja, quem é competente quando a ordem jurídica não oferece resposta à questão da competência (Schmitt, 2006, p. 11).
Vico também afirmou a superioridade da exceção. Neste sentido, para Vico, superior aos limites impostos pela norma jurídica, a exceção se torna princípio, baliza, o fim em si mesmo que requer imediata e plena aplicação.
Na verdade, saber que os casos de extrema necessidade (exceção) estão ou não previstos em lei, é uma questão menor, porque a decretação do Estado de Exceção suspende toda a fruição do ordenamento jurídico. Então, mesmo a previsão legal será suspensa e, se não houver previsão legal, assim mesmo a exceção será decretada.
No Estado de Exceção suspende-se o ordenamento jurídico para que toda a força desmedida (não-controlada externamente, como na teoria da divisão dos poderes) possa ser exercida. Assim, quando se prevê no Estado de Direito a figura do Estado de Sítio, pode-se dizer que a exceção está prevista (dentro) do ordenamento jurídico. Entretanto, no instante exato em que se aciona esta cláusula de sobrevida do poder, imediatamente todo o direito posto estará suspenso, exatamente para que o poder possa fluir livremente, sem obstáculos ou limitações.
No final da ação, após a decretação da intervenção forçosa do poder, dir-se-á que a exceção está fora do alcance do Estado de Direito, uma vez que todo o ordenamento encontrar-se-á suspenso: "O paradoxo da soberania se enuncia: ‘o soberano está ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico’ [...] A especificação ‘ao mesmo tempo’ não é trivial: o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei" (Agamben, 2002, p. 23).
Em resumo: exceção é um conceito limítrofe, "conceito de esfera extrema", por isso sua definição não se configura na normalidade, mas sim no limite, no caso limítrofe. Seguindo-se Agamben (2002), e aplicando-se a tautologia (ele chama de paradoxo da soberania), pode-se dizer que a lei está fora dela mesma, afinal a autoridade não precisa do direito para criar o direito (basta-lhe o poder).
O controle pluripotenciário [18] ou institucional (divisão e controle dos três poderes), no fundo, também não responde satisfatoriamente à necessidade específica que gera exceções e que traz imbricações para a soberania. Diante da anormalidade, é preciso a ação eficaz do poder soberano — daí a dificuldade de se limitar a competência:
Se houver êxito na descrição das competências conferidas para o estado de exceção – seja por meio do controle recíproco, seja pela delimitação temporal, seja, enfim, como na regulamentação jurídico-estatal do estado de sítio por meio da enumeração das competências extraordinárias -, a questão da soberania será reprimida em um passo importante, mas, obviamente, não resolvida (Schmitt, 2006, p. 12).
O poder é mantido em detrimento do direito porque o Estado de Exceção é um "Leviatã fora da ordem", em grave luta por autoconservação — a essência da soberania. Por isso, não-contraditoriamente, a competência excepcional busca a lógica da normalidade para definir que a exceção pretende evitar o caos jurídico: o que não elimina a ironia [19]. De todo modo, em conseqüência, defende-se o status quo, o establishment.
Isto transformou a teoria do direito à exclusão em uma teoria sistêmica do status quo; apesar da redundância, não por acaso, status (firme) derivou a figura do próprio Estado, ou seja, a teoria da exceção procura a paz na Razão de Estado. Seguindo esta linha, para Carl Schmitt, a dominação estatal está baseada no monopólio decisional acerca do próprio uso do poder/coerção.
Apesar da teoria da exceção se valer da lógica formal (mas provocando-nos com o raciocínio indutivo), a razão em que se baseia o Estado de Exceção, não é a Razão da autonomia. De acordo com o raciocínio da exceção, basta ter suficiente razão/coerção. Portanto, dado que há o poder que se quer estabelecido, a exceção não está fora, mas dentro da regra e de sua lógica — "para se excluir, a regra se incluiu":
A exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral [...] A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta [...] Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex capere) e não simplesmente excluída [...] Deleuze pôde assim escrever que "a soberania não reina a não ser sobre aquilo que é capaz de interiorizar [20]" (Agamben, 2002, p. 25).
O Estado de Exceção é um limiar — o limiar entre caos [21] e normalidade, dentro e fora, certo e errado, interno/externo. É uma nebulosa que serve ao status. Neste caso, o poder soberano é este poder capaz de capturar o que está fora e, ao mesmo tempo, excluir o que está dentro, fazendo uso desta nebulosa. Por isso, a nebulosa coloca-se entre caos e ordem.
Pode-se dizer que "incluiu-se a exclusão": "A tendência jurídico-estatal de regular o estado de exceção de forma mais aprofundada possível significa somente a tentativa de descrever, precisamente, o caso no qual o direito suspende a si mesmo" (Schmitt, 2006, p. 14). Mas, para fechar sua defesa do preceito, Carl Schmitt utiliza-se de um aparente paradoxo e assim busca manter acesa sua retórica, buscando evitar a desmistificação da falácia da exceção: "Um teólogo protestante, no século XIX, provou de que intensidade vital a reflexão teológica pode ser capaz: ‘A exceção explica o geral e a si mesma [...] Com o tempo, fica-se farto do eterno discurso sobre o geral; há exceções. Não se podendo explicá-las, também não se pode explicar o geral" (Schmitt, 2006, p. 14).
É o caso de pensarmos a relação autofágica entre criatura-criador (e num caso em que se é criador de si mesmo), pois, para se afirmar a exceção, é preciso abater-se a regra — regra esta que, ironicamente, prescrevia a exceção. "O direito não precisa do direito" porque vige o poder e este pode incluir a exclusão. Não se trata tanto de que o poder tenha valor, mas de que o poder seja o valor. Isto determinou a crise do velho "Nómos da Terra":
Na exceção soberana trata-se, na verdade, não tanto de controlar ou neutralizar o excesso, quanto, antes de tudo, de criar e definir o próprio espaço no qual a ordem jurídico-política pode ter valor [...] O "ordenamento do espaço", no qual consiste para Schmitt o Nómos soberano, não é, portanto, apenas "tomada da terra" (Landnahme), fixação de uma ordem jurídica (Ordnung) e territorial (Ortung), mas, sobretudo, "tomada do fora", exceção (Ausnahme) (Agamben, 2002, pp. 26-27).
A exceção é uma "inclusão-exclusão", revertendo-se, transformando-se estranheza e intimidade, de forma estranha: ao se excluir — mutilando-se um sentido geral (mas preciso), a lei, é que se cria a identidade. Do ponto de vista da intersubjetividade, é um caso estranho de identificação com um fator menor de si mesmo; quando se está feliz com o "não-reconhecimento". É um caso de identificação com o "não-pertencimento" (desenraizando-se), distinguindo-se entre inclusão e pertencimento — até mesmo porque a exceção nada mais é do que uma "inclusão/exclusão". Na Exceção, pode-se estar incluído sem, contudo, pertencer verdadeiramente.
A exceção é a última ratio, a última forma de inclusão e de "reconhecimento" da soberania. É o limbo da certeza, da clareza, da própria razão. É o que ocorre quando, em nome da Razão de Estado, a razão se torna ininteligível. Este não não-ser é que seria a origem da exceção e, por sua vez, a exceção é uma fonte e uma forma originária do direito, mas, neste caso, só se aceitarmos que a violência contida na luta por autoconservação (ou estado de natureza) é um "fato jurídico primordial".
Neste sentido, a exceção deriva dessa culpa ou vício de origem, da deformação que procura por uma fôrma que lhe dê forma — uma procura sem fim, porque a exceção é um abandono de si mesmo. A exceção procura a formação de si (mas pela via da exclusão). A exceção é o big bang do ser político-estatal, formando-se a partir do nada que existia anteriormente. É aí que se encontra o direito pressuposto:
Retomando uma sugestão de Jean-Luc Nancy, chamemos bando (do antigo termo germânico que designa tanto a exclusão da comunidade quanto o comando e a insígnia do soberano) a esta potência (no sentido próprio da dýnamis aristotélica, que é sempre também dýnamis mè energeîn, potência de não passar ao ato) da lei de manter-se na própria privação, de aplicar-se desaplicando-se. A relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito, externo e interno, se confundem (Agamben, 2002, pp. 35-36).
Mas, quando se pensa que um sujeito foi o "escolhido" (Príncipe), e não necessariamente a coletividade, para fazer do "não-da-vida" — do estado de natureza que ainda está se organizando, dessa potência que ainda é só fosso de existência — o estopim da organização social e do direito, então, o que se vê é o ditador ocupando o lugar da coletividade na celebração do Leviatã.
Podemos ver, com isso, inicialmente, que o Estado de Exceção é parte de uma luta por autoconservação do poder soberano (independentemente se legítimo ou não) e, por isso, coerentemente com este único objetivo, mantém total desprezo à luta intersubjetiva por reconhecimento de outras demandas, direitos e sujeitos. É uma total recusa ou intolerância à divergência, à controvérsia, intalando-se em um palco político em que vigora a regra simples entre "amigo-inimigo".
Entretanto, diante de nosso primeiro desencantamento (na ordem das duas lutas), vemos que tanto é necessário ultrapassar aquela fase da luta pela autoconservação, quanto é obrigatório ver nos canais de reconhecimento (tal qual o direito), caminhos para além dos limites propostos pelo sistema — uma vez que a pressão social alarga a própria concepção de reconhecimento, bem como o que, quanto, quem, quando, onde deve-se reconhecer o justo e o legítimo.
Assim, daqui por diante, faremos uma passagem de reconstrução, entre o passado que não pode ser esquecido e o contemporâneo. O foco constará da passagem do passado "consagrador" das políticas e do "direito de exclusão" (auto-atribuído pelo Estado de Exceção), ao presente manifestamente arbitrário (como veremos na terceira parte) e que melhor entenderemos se abordarmos sob as condições do Terrorismo de Estado. Neste sentido, a luta por autoconservação ressurgirá com força total na ação do Terrorismo de Estado, principalmente no século XXI.
No caso do texto, entretanto, em virtude desse desencantamento, também estará em destaque um processo contraditório nos pólos criados a partir da modernidade que formulou tanto o Iluminismo, quanto o "direito de exclusão", ao elaborar o Estado de Exceção: o chamado Estado de Sítio Político é a sua forma mais conhecida (Marx, 1986). Portanto, isto que chamamos de "direito de exclusão" não é fato novo, mas pode ser alvo de uma sociologia do Estado de Exceção [22].