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Weber e o desencantamento do Direito:

do Estado de exceção e do "direito à exclusão"

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Agenda 22/01/2007 às 00:00

3ª PARTE

O direito de exclusão

A decisão ocupou um lugar central na aferição dos cálculos de poder e, assim foi que, os campos de concentração se ergueram como o paradigma político e estético da modernidade e sem causar assombro. O "estado de exceção" é um Estado Político:

Quando nosso tempo procurou dar uma localização visível permanente a este ilocalizável, o resultado foi o campo de concentração. Não é o cárcere, mas o campo, na realidade, o espaço que corresponde a esta estrutura originária do nómos. Isto mostra-se, ademais, no fato de que enquanto o direito carcerário não está fora do ordenamento normal, mas constitui apenas um âmbito particular do direito penal, a constelação jurídica que orienta o campo é, como veremos, a lei marcial ou o estado de sítio (Agamben, 2002, p. 27).

Portanto, é o campo de concentração e não o cárcere (é o direito político e não o penal) o que confirma a excepcionalidade, refinando-se a prevalência do Estado de Sítio Político. Naquele passado mais remoto, a doutrina da Razão de Estado se sobrepunha à própria segurança da sociedade, em que o personalismo autocrático criava o direito (e as noções de certo e errado) à sua própria imagem e semelhança.

Substancialmente, o campo de concentração é o paradigma da modernidade porque a exceção tem por substância regular a exclusão — no caso específico, o extermínio. Já o cárcere ocupa-se apenas dentro de um campo de controle.

Nesta herança política de pior lembrança, o regime nazi-fascista criou uma maneira muito particular de se interpretar e de se aplicar os ferrões do Estado de Direito, agora sob uma lógica do poder, em que o bom direito, é o direito que convém. De modo objetivo, diria Hitler, no apogeu de seu poder, como uma de suas máximas, o direito sou eu:

Em Jerusalém, confrontado com provas documentais de sua extraordinária lealdade a Hitler e à ordem do Führer, Eichmann tentou muitas vezes explicar que durante o Terceiro Reich "as palavras do Führer tinham força de lei" (Führerworte haben gesetzkraft), o que significava, entre outras coisas, que uma ordem vinda diretamente de Hitler não precisava ser escrita [...] Sem dúvida era um estado de coisas fantástico, e bibliotecas inteiras de comentários jurídicos "abalizados" foram escritas demonstrando que as palavras do Führer, seus pronunciamentos orais, eram a lei do mundo. Dentro desse panorama "legal", toda ordem contrária em letra ou espírito à palavra falada por Hitler era, por definição, ilegal [...] Uma ordem diferia da palavra do Führer porque a validade desta última não era limitada no tempo e no espaço — a característica mais notável da primeira. Essa é também a verdadeira razão pela qual a ordem do Führer para a Solução Final foi seguida por uma tempestade de regulamentos e diretivas, todos elaborados por advogados peritos e conselheiros legais, não por meros administradores; essa ordem, ao contrário de ordens comuns, foi tratada como uma lei. Nem é preciso acrescentar que a parafernália legal resultante, longe de ser um mero sintoma do pedantismo ou empenho alemão, serviu muito eficientemente para dar a toda a coisa a sua aparência de legalidade (Arendt, 1999, pp. 165-167).

É óbvio que a Alemanha da época não vivia como se fora uma cultura da oralidade, mas sim porque à vontade do Führer, à sua palavra, não cabia contestação. A lei ditada e depois falada — repetida até se decorar e internalizar acriticamente — revelava a vontade mais íntima do ditador, e por isso sequer precisava de um suporte: a escrita.

A "legitimidade legal" [23] é o equivalente à vontade do poder e legalidade é essa vontade expressa. Desse modo, o Estado de Exceção, do nazismo para cá, sistematizou e naturalizou o mal e, por isso, deixou de ser uma tentação: "No Terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o conhecem — a qualidade da tentação" (Arendt, 1999, p.167). Mas, diferentemente do que propusera Kafka (1997), não se tratava de um Estado de Direito Inexistente (ou formado por sujeitos ocultos), mas sim do presente e atuante Estado de Direito Nazista-Capitalista.

Na verdade, tanto lá, quanto cá, veremos que a Razão de Estado se transmutou, atualizou-se sob a forma do Terrorismo de Estado, no mundo real/virtual. Neste sentido, como a própria utilização do Estado de Direito é surreal, baseada na deturpação ou no ilusionismo, chamaremos este efeito ou fenômeno de transfiguração do mundo real/virtual — porque as medidas político-jurídicas tanto se aplicam ao mundo concreto, quanto ao ciberespaço.

Aliás, veremos que esta é mais uma de suas deformações, ou seja, tratar o mundo virtual — sem consideração por nenhuma característica ou princípio do ciberespaço: experiências potenciais — como mera extensão do mundo real, em que predominam as experiências concretas, presenciais. De outro modo, ao sabor do cotidiano, ainda há um deslumbramento com o virtual, pois, cotidianamente, também não se vê o virtual como parte do real.

Em nosso tema, no entanto, o ilusionismo do Terrorismo de Estado ora esmaga o real, ora o deforma sob o sentimento de uma loucura que impele frontalmente contra a realidade, o bom senso, o razoável — impõem-se uma parede cognitiva diante de tudo que possa não-estar de acordo com a satisfação mínima das necessidades da maioria (e isso, por sua vez, gera infinitos preconceitos). Por isso, desiludidos do real, no Estado de Exceção (do passado e do presente), os cidadãos perdem a ilusão do bem, do belo e do justo. É como se não fosse mais possível a visão de um mundo ético:

Sendo assim, o real é algo inteiramente diverso do verdadeiro, pois o real é estranho à linguagem e à dimensão simbólica, é o que resiste à simbolização. O encontro com o real gera angústia e trauma, pois palavras e categorias se calam. O real é algo estranho ao significado. Sentimento de angústia, ameaça e perigo diante do "real" mudo não permitem o conhecimento do objeto que os provoca. As imagens sem o "contexto" inviabilizam a compreensão do trauma, compreensão que poderia realizar o "trabalho do luto", luto que seria a possibilidade de um mundo ético (Arendt, 2006, p. 31).

Neste imbróglio do Estado de Exceção, o real não é verdadeiro, porque é pura fantasmagoria [24], numa cena em que há muito caiu a máscara do mal. Aqui o sistema de poder se apoderou de todos os recursos, metas, impulsos, estímulos reais; é um estado de coisas em que o sistema de poder está longe de se parecer com um sistema vital para a maioria das pessoas.

Mas, além disso, quais os tipos de conseqüências que podemos tirar do impacto do Terrorismo de Estado para a idéia de direito e para o ideal de Justiça?

No passado da Razão de Estado supunha-se um discurso de segurança da coletividade em troca da própria liberdade do cidadão. Será que isso sofreu alguma atualização?

O que seria capaz de transformar um cidadão em luta pela liberdade (como diria La Boétie), em um mero servo do Estado guarda-noturno? O passado nazi ainda seria capaz de nos assombrar, exigindo vidas pela segurança de si mesmo?

O panopticon é um pequeno teatro onde cada detento aprende a desempenhar seu papel de prisioneiro para um público hipotético [...] Há pouco tramitou no Congresso americano lei na qual as empresas deverão indicar "espiões" contra o terrorismo virtual: um em cada dez "cidadãos" deverá ser vigia. No apogeu da sociedade ocidental que se considera lógica, na qual a ciência prometeu segurança e bem-estar, o atual estágio da acumulação capitalista cria a "civilização do pânico". Ela vincula-se à passividade e à angústia existencial da perda do controle da natureza e do mundo e ao medo da destruição, relacionando-se ao "delírio" e não ao campo ético — campo este da escolha, da consciência e da liberdade [...] Renunciar às liberdades democráticas em nome do combate ao terrorismo é fruto da "cultura do pânico" e da cultura "panóptica" e de resultados — política "imediatista" e "pragmática", uma vez que o mais aterrorizador no terrorismo é justamente sua imprevisibilidade (Matos, 2006, p. 21).

Não é custoso ver que o Terrorismo de Estado transforma o direito da vida em direito do sistema (em "terror da vida"), sendo mais grave, portanto, do que aquela visão reducionista que vê o direito como arroto do Estado.E olhe que esta expressão de mal-estar não se deve a Hitler e à idéia de que a palavra é lei!

No caso do terrorismo moderno, soberania é do governante e não do Estado e segurança é do Estado e não do cidadão. Portanto, para o vigor do Estado de Exceção, o direito sem fundamentação moral, não é imoral, é essencial. No Estado de Exceção predomina a lógica processual (seguindo-se à palavra de Hitler havia uma tempestade de regulamentos e de diretivas). [25]

O Terrorismo de Estado cria uma forma de ilusionismo, a ilusão de que o Estado de Direito está a serviço do homem e não do Estado — o mesmo tipo (alterando-se a espécime) de ilusão muito comum nos bancos escolares das faculdades de direito, em que se confunde (por ignorância ou propositadamente) lei, direito e Justiça.

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O Terrorismo de Estado, com este seu ilusionismo, força o cidadão a não perceber que o direito deveria servir ao mundo da vida, ao invés de se reportar somente ao sistema. Enfim, o Terrorismo de Estado, acionando o seu típico torniquete de pensamento único, simplifica o "duplo direito" proposto por Habermas em simples direito operativo, pragmático, instrumental, atrofiado e serviçal do poder político e do sistema econômico.

Com o fim da Segunda Guerra e aniquilado o nazismo e encerradas tanto a Solução Final, quanto as mais abjetas manipulações da lógica, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos teve de declarar que o óbvio também faz parte do Estado de Direito, em seu artigo VI:

"Todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei".

Por fim, vejamos alguns outros exemplos de casos concretos em que se aplicou este torniquete do Terrorismo de Estado, sobretudo no fatídico pós 11 de setembro, nos EUA.

Outros exemplos aterradores da "exclusão da lógica"

Desde a proclamação do USA Patriot act, o mundo real/virtual passou a ter outra visão/versão da liberdade. Afinal, como pode ser a liberdade tão vigiada/controlada desse modo? Liberdade controlada?

Ocorre que os atentados aos direitos civis e constitucionais, de americanos e de muitos outros povos que interfiram em seus assuntos ou termos, ressuscita algo de muito antigo — o atentado à lógica que se vê no Estado de Exceção. Nos EUA, depois do 11 de setembro a coisa se agravou (USA Patriot Act e Homeland Security Act — Lei de Segurança Interna), mas a história vem desde 1993.

O desrespeito pelos direitos constitucionais não começou com Bush. Em conseqüência do primeiro atentado contra o World Trade Center, em 1993, e daquele que destruiu uma agência federal em Oklahoma, em 1995, o Congresso aprovou o Anti-Terrorism Act, "um dos piores atentados contra a Constituição há várias décadas". Essa lei ressuscitou o delito de associação e criou um tribunal especial com acesso a informações confidenciais (Secret Defense) para deportar estrangeiros suspeitos de terrorismo. E, principalmente, suprimiu a lei – aprovada poucos anos antes – que proibia ao FBI investigar atividades que envolvessem a primeira emenda (first amendment), que são a liberdade de expressão, de associação política, religiosa e de imprensa. Atualmente, o Departamento de Justiça conta com outras leis deste mesmo tipo na gaveta. Trata-se de aperfeiçoar o Domestic Security Enhancement Act que, na opinião de Jack Balkin, professor de Direito na Universidade de Yale, dá ao Estado "o direito de cassar a nacionalidade de qualquer pessoa suspeita de ter vínculos com uma organização que conste da ‘lista negra’ do Departamento de Justiça, mesmo que essa pessoa não tenha conhecimento do fato". Resumindo, como disse Noam Chomsky, "dê alguns dólares a uma organização de caridade islâmica que Ashcroft [secretário da Justiça] tenha classificado como terrorista e você poderá se encontrar a bordo do primeiro avião a deixar o país. Sem direito a recurso" [26].

Neste ritmo, podemos esperar novas ameaças contra as liberdades públicas na vida real e no ciberespaço, em razão da truculência estatal e das ações imperialistas que se escondem sob a sombra do Estado americano. É o que sugere o relatório "Tendências no Terrorismo Global: Implicações para os Estados Unidos".

Concluída em abril, a avaliação afirma que o movimento radical islâmico se expandiu a partir de um núcleo de agentes da Al-Qaeda e grupos associados. Com o tempo, segundo o relatório, ele passou a incluir uma nova classe de células "autogeradas" inspiradas pela Al-Qaeda, mas sem qualquer ligação direta com Osama bin Laden e seus principais comandados. O documento também aborda de que forma a Internet tem ajudado a disseminar a ideologia jihadista e como o ciberespaço se converteu num abrigo para os terroristas que não têm mais refúgios geográficos em países como o Afeganistão (sic) (Mazzetti, 25/09/2006).

Avaliação semelhante teria sido fornecida por outra agência contratada pela ONU, uma vez que se trata da mesma realidade. Mas, este relatório da ONU, como uma segunda análise, nos indica certa isenção:

Elaborado por especialistas em terrorismo a pedido do Conselho de Segurança da ONU, o relatório diz que a Al-Qaeda não só ocupou um papel central na luta do Iraque, como serviu de inspiração para a insurreição do Taleban no Afeganistão [...] O conflito no Iraque foi utilizado pelos "combatentes da guerra santa para aprofundar sentimentos antiamericanos no mundo árabe e ganhar adeptos ao seu movimento" (Nova York, 29/09/2006).

Esta é apenas a dica mais recente de que o ciberespaço e a vida real deverão sofrer novas ameaças governamentais americanas (e de outras partes do mundo), sob a alegação de que "o ciberespaço se converteu num abrigo para os terroristas"; "os terroristas estão escondidos no ciberespaço". Ainda que muitos se perguntem como foi que se esconderam no ciberespaço, fugindo do Afeganistão (sic), é interessante pensar que para o Estado, o virtual é a fuga do real. Ademais, esta realidade surreal torna real a piada que diz que inteligência militar é uma contradição em termos.

Agora, sem que haja graça alguma, podemos ver que ação do Terrorismo de Estado se dá em movimento expansivo, contínuo, invasivo, colonizador. Este sentido surrupiador revela que ação terrorista do Estado também quer se estender a todos os vizinhos — iniciando-se a ação pelo Irã:

"Nós precisamos bombardear o Irã", escreveu o pesquisador neocon Joshua Muravchik ontem, no Los Angeles Times. "A diplomacia não está adiantando nada para conter a ameaça nuclear iraniana — o uso da força é a única solução" [...] Por causa do atoleiro no Iraque, os neoconservadores perderam força, mas muitos ainda têm acesso ao presidente americano George W. Bush (Mello, 21/11/2006).

Na verdade, para a lógica do Terrorismo de Estado, no século XXI, se ainda não se tem inimigos, o negócio é criá-los, pois a guerra movimenta bilhões de dólares e fornece o sangue necessário à economia. Não há excessos, nem pruridos, nem consciência adulterada porque a vida e os valores morais que deveriam protegê-la, são sempre negociáveis. Todos estão ao alcance da guerra ou das suas implicações, cedo ou tarde, pois todos estão ao alcance do mercado. No Oriente e no Ocidente, o valor de troca produziu um intenso e imenso desencantamento da vida:

Falemos em atirar nos próprios pés [...] Alguns direitistas vêem o Vietnã como uma ameaça. Um congressista republicano disse que os EUA não deveriam negociar com seus "inimigos mortais". Republicanos de Estados produtores de têxteis não querem a entrada dos tecidos baratos do Vietnã. Uma maioria entre os democratas da Câmara acha que os padrões de trabalho do Vietnã são inadequados [...] Lamentavelmente para os americanos e para milhões de pobres em todo o mundo, os EUA poderão estar à beira de uma nova Guerra Fria – tendo como inimigo, desta vez, não o comunismo global, mas o capitalismo global (Reich, 22/11/2006).

Esta é a maneira, digamos, pós-moderna ou sulrealista de enfrentar os dilemas políticos gerados ou que se vêem manifestos em razão de ações nocivas à política. Certamente que também se tratam de ações governamentais que vieram solapando as liberdades e o espaço público, como local de fruição dos interesses e dos debates ideológicos. Não é à toa que o referido relatório traz a conclusão de que a invasão do Iraque acirrou a resposta terrorista — é óbvio, pois aqui se vê a lei da ação/reação.

A diferença é que não se trata mais de um debate político, mas sim de simples terrorismo, seja de células autogeridas ou na forma do clássico Terrorismo de Estado — e isto é um desencantamento que só pode gerar desencanto e desengano da vida.

Outra modalidade, talvez ultramoderna, de pensar as ações do Terrorismo de Estado talvez esteja em regular até os sonhos dos indivíduos (controle onírico). Parece exagero, mas há projetos norte-americanos para o controle do espaço sideral (tal como fazem com o espaço virtual), como se literalmente o mundo fosse deles. A chamada "Guerra nas Estrelas", iniciada no governo de ultra-direita de Ronald Reagan, não teve fim; ao contrário, teve em Bush um novo alento:

O presidente americano, George W. Bush, sancionou ontem uma nova política espacial para os EUA. Essa política exclui a possibilidade de futuros acordos sobre controle de armamentos que poderão limitar a capacidade americana no espaço, e estabelece o direito do país de negar acesso ao espaço a quem for considerado "hostil aos interesses dos EUA" [...] No entanto, Michael Krepon, co-fundador do Henry L. Stimson Center, grupo de estudos apartidário que acompanha a questão, disse que as mudanças na política espacial devem reforçar as suspeitas internacionais de que os EUA pretendem desenvolver, testar e colocar armas no espaço. "A política adotada pelo governo Bill Clinton abriu as portas para o desenvolvimento de armas espaciais. Agora a política de Bush vai mais longe" (Kaufman, 19/10/2006).

O fim do privilégio do espaço público como lócus democrático e legítimo da política, no entanto, não é fenômeno novo, recente. Praticamente, este tipo de descredenciamento da política vem desde a formação da modernidade, como sugere Sennett (1988).

A tese de Sennett (1988), é correto dizer, insiste em que o privado engoliu o público. Mas, de lá para cá, da modernidade clássica à chamada pós-modernidade, pode-se dizer que uma das grandes mudanças está em que hoje também o privado sofre com um controle austero e invasivo. Tanto o privado quanto o público são vítimas do Terrorismo de Estado.

Todos os dias, vê-se o estatal (sem ser uma escala superior do público, pode ser exatamente sua negação) invadir o espaço da privacidade e impor regras restritivas — principalmente sob a alegação de que exerceria coerção sobre ilegalidades ou, ironicamente, ameaças à liberdade e à democracia. Nunca, na história, atentou-se tanto contra a democracia e a liberdade alegando, injustamente, a defesa desses valores.

Estas são algumas das neuroses que se alimentam exatamente das ações estatais que provocam ainda mais insegurança. Exemplo disso são ações estatais (ou de agências autorizadas pelo Estado) que abusam do "direito de exclusão" (provocando insegurança) e acabam gerando situações irregulares, anormais e até ilegais:

A nova questão envolve um peixinho muito comum nos EUA, o bluegill - na tradução literal para o português, guelras azuis. O animal está sendo usado por diversas cidades - entre elas as metrópoles Nova Iorque, San Francisco e Washington - para garantir a qualidade da água dos reservatórios e evitar ações terroristas de contaminação. Leis federais exigem, desde o 11 de setembro de 2001, que todas as cidades e comunidades norte-americanas que tenham reservatórios coletivos de distribuição avaliem a qualidade da água e garantam proteção a ataques de agentes biológicos e químicos. Muitos locais desenvolveram sistemas eletrônicos de proteção; mas, segundo informações da agência Associated Press, uma empresa criou, patenteou, produz, vende e faz muito sucesso com esse outro sistema, à base de bluegills. Os peixinhos, que cabem na palma da mão, são mantidos, em cardumes, em tanques alimentados com a mesma água que compõe o reservatório. Elementos sensoriais detectam qualquer alteração no comportamento dos animais. O bluegill é muito resistente e, segundo a AP, tem alta sensibilidade a mudanças na qualidade da água. Quando há alguma toxina presente, ele "tosse", flexionando as guelras para expelir as substâncias indesejadas [27].

Outro desses exemplos da manipulação da insegurança e que só faz agravar a aplicação do "direito de exclusão", agora como paranóia que pode ser vertida em valor de troca (expressão dessa soberania estatal monetarista), é a conversão de todo tipo de técnica em tecnologia de segurança ou de guerra:

A Angstrom Aerospace, uma empresa de microeletrônicos Sueca, anunciou que vai começar a vender o Rotundus - pequeno robô no formato de uma esfera - para fins de segurança privada. A companhia havia desenvolvido o sistema para explorações em satélites como a Lua e planetas como Marte. Como o dispositivo não foi escolhido para missões espaciais, a Angstrom resolveu dar um uso bem terreno ao Rotundus - ajudar na segurança de casas e edifícios privados. A esfera funciona em praticamente qualquer superfície - com exceção da água - e pode chegar a respeitáveis 10km/h, o dobro da velocidade do caminhar humano. Para rodar, a esfera usa o balanço de um pêndulo interno. Não há partes móveis no dispositivo, o que o torna excepcionalmente resistente [28].

Está em evidente expansão uma economia tecnológica de guerra, contra o público mas que também abate o privado. O Terrorismo de Estado, enfim, é o maior responsável pela insegurança da sociedade civil, assim como é o que mais atenta contra as liberdades públicas.

Ao mesmo tempo, desenvolvem-se sofisticados meios de guerra e tecnologias antiterroristas e assim se expande um tipo de síndrome do robô — para cada tecnologia de ataque, uma tecnologia de defesa; para uma tecnologia de minas, uma tecnologia de anti-minas etc. Em outros casos, hackers são convidados para testar e melhorar a segurança de equipamentos e de softwares ainda em fase de experimentos finais [29]. Como já diziam os antigos, trata-se da técnica do fogo contra fogo:

Uma empresa de Israel desenvolveu um tipo de laser capaz de detectar um cinto de explosivos ou eventuais armas químicas de um terrorista suicida a dezenas de metros de distância. A International Technologies Lasers Ltd. (ITL), fabricante de equipamentos semimilitares como sistemas de visão noturna, começou a desenvolver o sistema espectroscópico a laser há três anos. "O equipamento pode detectar qualquer um que esteja carregando explosivos, que esteja usando um cinto com explosivos ou que tenha trabalhado com explosivos", afirmou Ami Rudich, da ITL. Segundo a empresa, o sistema testado em laboratório é quase infalível e um protótipo do equipamento deve estar pronto dentro de seis a oito meses [30].

Outro tipo de violação de sentidos, acoplado às tecnologias repressivas, ocorre quando se deturpa o Estado de Direito impondo regras de dominação absolutamente injustas e imorais, como a aprovação de leis que permitem torturas de presos políticos e a negação de recursos de defesa. Este é o exemplo da mais recente aprovação do Senado americano, como parte desse Terrorismo de Estado que acaba por abalar os sentidos primários da lógica formal e do bom senso:

O Senado aprovou um pacote de medidas para interrogatórios e julgamentos de suspeitos de terrorismo, estabelecendo regras abrangentes para lidar com o que o presidente Bush chamou de combatentes mais perigosos em um tipo diferente de guerra. O projeto de lei estabelece regras para comissões militares que permitirão ao governo prosseguir com os processos de detidos importantes, como Khalid Shaikh Mohammed, considerado o mentor dos ataques de 11 de Setembro de 2001. Ele tornará ilegal vários abusos, definidos de forma ampla, cometidos contra os detidos, ao mesmo tempo em que deixa a cargo do presidente o estabelecimento das técnicas de interrogatório específicas permitidas. E privará os detidos do direito de habeas corpus para contestar suas detenções na Justiça. O projeto foi um compromisso entre a Casa Branca e três senadores republicanos que resistiam ao que consideravam como sendo um esforço de Bush para mudar as obrigações do país segundo a Convenção de Genebra. "Enquanto nossas tropas arriscam suas vidas combatendo o terrorismo, este projeto de lei assegurará que estaremos preparados para derrotar os inimigos de hoje e as ameaças de amanhã", disse o presidente em uma declaração após a votação. Os republicanos argumentaram que as novas regras fornecerão as ferramentas necessárias para combater um novo tipo de inimigo. "Nosso conceito anterior de guerra foi completamente alterado, como aprendemos tão tragicamente em 11 de Setembro de 2001", disse o senador Saxby Chambliss, republicano da Geórgia. "E devemos tratar as ameaças de uma forma diferente." "Eu acredito que não deve haver misericórdia para aqueles que perpetraram os crimes de 11 de Setembro", disse a senadora Hillary Rodham Clinton, democrata de Nova York. "Mas no processo de realizar o que acredito ser essencial para nossa segurança, nós devemos preservar nossos valores e estabelecer um exemplo para o qual possamos apontar com orgulho, não vergonha." O senador Carl Levin, de Michigan, o líder da bancada democrata no Comitê de Serviços Armados, argumentando em defesa de uma emenda para derrubar o artigo que impede os suspeitos de contestarem sua detenção na Justiça, disse que ele "abusa legalmente dos direitos concedidos pela Constituição da mesma forma que as ações em Abu Ghraib, Guantánamo e nas prisões secretas abusaram fisicamente dos detidos". A medida ampliará a definição de combatente inimigo além da definição tradicional usada em tempos de guerra, para incluir tanto não-cidadãos vivendo ilegalmente nos Estados Unidos quanto aqueles que vivem em países estrangeiros e qualquer um determinado a ser um combatente inimigo segundo critérios definidos pelo presidente ou secretário de Defesa. Ela privará os detidos de Guantánamo do direito de habeas corpus para contestar sua detenção na Justiça, optando por procedimentos conhecidos como julgamentos de revisão do status de combatente. Tais julgamentos possuem regras mais brandas para aceitação de evidências do que os tribunais comuns. O assunto foi enviado ao Congresso em conseqüência de uma decisão da Suprema Corte, em junho, que anulou os tribunais militares estabelecidos pelo governo Bush logo após os ataques de 11 de setembro. O tribunal decidiu que os tribunais violavam a Constituição e a lei internacional. Tal redefinição, eles argumentavam, enviaria um recado para que outros países também mudassem seus compromissos segundo a Convenção de 57 anos e, no final, levaria americanos capturados em tempos de guerra a sofrerem abusos e serem julgados em tribunais de cartas marcadas. Além da emenda que derrubaria a proibição de habeas corpus para os detidos, as outras que não foram aceitas incluíam uma estabelecendo um prazo de cinco anos para o Congresso reconsiderar as novas leis e uma que exigiria submissão da CIA à supervisão do Congresso. Outra emenda não aceita exigia que o Departamento de Estado informasse os outros países sobre que técnicas de interrogatório ele consideraria ilegal para uso em soldados americanos, uma medida que visava forçar o governo a dizer publicamente que técnicas consideraria fora dos limites [31].

O Estado de Direito baseado no Terrorismo de Estado permite a adulteração da noção de justiça, do certo e do errado, ao bel prazer de quem vê no direito um mero joguete de poder. É difícil dizer que isto seja o pior, pois o Senado americano também aprovou por unanimidade a liberação de 448 bilhões de dólares, como recursos para o antiterrorismo. Mais investimentos, portanto, para alimentar o terror de viver.

É claro que se vêem abatidos tanto o público quanto o privado, especialmente quando a justiça é substituída pelo oportunismo, a regra pela exceção, a verdade pela manipulação, o ideal pela retaliação. No fundo, trata-se já do Estado de Exceção, em que a exceção substitui a regra (em que a opressão substitui a liberdade; o engodo se sobrepõe à virtude). Para tanto, não é difícil perceber tomando-se alguns projetos de lei americanos, em que o poder judicial acaba sendo transferido para o Presidente da República: "O presidente tem autoridade para interpretar o significado e aplicação das Convenções. Poderá definir os métodos de interrogatório aceitáveis e quem são os combatentes inimigos" (Washington, 30/09/2006).

Esta é a fase que também se define como Estado de sombras, ou de escombros, sem corpo, em que não apenas houve falência múltipla dos órgãos, mas a própria morte anunciada do paciente. O problema é que o paciente envolve todo o mundo, a liberdade que interessa a todos, em que a restrição ou ameaça à paz é uma agressão a cada um de nós. Por isso, o governo americano tem sido colocado como verdadeira ameaça ao mundo, tornando o planeta menos seguro desde 2001:

Os britânicos consideram o presidente americano, George W. Bush, mais perigoso para o mundo que o líder da Coréia do Norte, Kim Jong-il, ou o presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad, indicou uma pesquisa publicada ontem pelo jornal The Guardian [...] Ainda segundo a pesquisa, que foi realizada de forma conjunta pelo Guardian (Grã-Bretanha), Haaretz (Israel), La Presse e Toronto Star (Canadá) e Reforma (México), a maioria das pessoas pesquisadas nos quatro países acha que a política externa dos EUA depois de 11 de setembro de 2001 tornou o mundo menos seguro [...] Com relação à invasão do Iraque, em março de 2003, somente os israelenses (59%) ainda acham que ela foi justificada. Na Grã-Bretanha, onde a popularidade do primeiro-ministro Tony Blair foi duramente afetada pela guerra do Iraque, 71% dos britânicos acreditam que a invasão para depor o ditador iraquiano Saddam Hussein foi injustificada (Londres, 04/11/2006).

Em porcentagem decrescente, para quem o mundo ficou mais inseguro com as recentes ações americanas: 69% na Grã-Bretanha; 62% no Canadá; 57% no México; 36% em Israel.

Então, em paralelo a esta sucumbência do Estado, é que se dá a colonização do público e do privado pelas forças remanescentes desse mesmo Estado — e do que vimos, o Terrorismo de Estado é a força mais viva, com a liderança americana. Tais forças não são apenas simbólicas como se crê, nem meras sombras de um passado glorioso, mas sim uma força viva que se expande com os factóides criados a par de sua própria imagem: para combater o terrorismo, nada melhor do que o Terrorismo de Estado; para defender a liberdade, nada melhor do que a sua negação.

Algumas alternativas já são velhas conhecidas, a exemplo do contratualismo liberal e ético de Locke e de Kant (sem contar Rousseau). Realmente são alternativas a este torniquete do raciocínio indutivo (Marx chamaria de "garrote"), porque, simplesmente "o direito de exceção não é direito":

Para a doutrina jurídico-estatal de Locke e para o século XVIII racionalista, o estado de exceção era algo incomensurável. A viva consciência da importância do caso excepcional dominante no Direito Natural do século XVII, logo se perde no século XVIII quando foi criada uma ordem relativamente duradoura. Para Kant, o direito de necessidade não é, de forma alguma, direito (Schmitt, 2006, p. 14).

E não é mesmo, pois que é puro poder.

Mas, para concluir um texto de crítica ao que aqui chamamos de "direito de exclusão", o melhor é pensar algumas afirmações ou "utopias possíveis".

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Weber e o desencantamento do Direito:: do Estado de exceção e do "direito à exclusão". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1300, 22 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9414. Acesso em: 19 nov. 2024.

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