CAPÍTULO IV
A RESPONSABILIDADE PÓS CONTRATUAL NO DIREITO BRASILEIRO
4.1. A real pós eficácia caracterizadora da culpa post factum finitum
Algumas hipóteses de pós-eficácia têm um sentido amplo e não representam situações em que se possa adotar a teoria da culpa post factum finitum, tendo em vista que não está ligado a deveres impostos por norma jurídica (pós-eficácia aparente), a efeitos da prestação secundária que aparecem após o efetivo cumprimento da prestação principal (pós-eficácia virtual) ou a vínculos acessórios numa obrigação duradoura (pós-eficácia continuada).
Para que se caracterize a pós-eficácia em sentido estrito, não há que se falar em deveres expressamente previstos em lei, contrato, ou em deveres que estejam à mercê das partes, ou seja, que não são disponíveis. São, na realidade, os deveres acessórios.
Embora nada proíba que os deveres acessórios venham expressos em lei, a aplicação da teoria da culpa post factum finitum se dá somente quando tais deveres acessórios não sejam previstos em lei. Caso venha disposto em contrato o dever acessório, sua violação implicará no dever de reparar o prejuízo, mas a responsabilidade, nesse caso, seria contratual e não pós-contratual.
Se os deveres foram estabelecidos em lei, sua violação igualmente gera o dever de indenizar a parte lesada, que também poderá exigir uma determinada conduta do agente, a resolução ou rescisão do contrato, além de perdas e danos. Estes deveres, portanto, não seriam acessórios, mas, na realidade, deveres legais, estabelecidos em lei.
Ocorre que muitas vezes as partes não especificam certos comportamentos num contrato, também não havendo lei que os preveja. Em tais casos, os deveres acessórios são fundamentais para que, demonstrada a ausência de boa-fé objetiva pelo agente violador, surja possibilidade para a parte contrária de responsabilizar, aquele, numa fase pós-contratual.
Tome-se o exemplo trazido por Rogério F. Donnini [24], de situação entre empregado e empregador que caracteriza culpa post factum finitum. Trata-se do dever do empregador de, após o término da relação de trabalho, prestar informações corretas sobre seu ex-empregado. Se o ex-patrão distorce ou dá informação errônea sobre seu ex-funcionário, comprometendo a boa fama profissional, causando embaraço ou dúvida a respeito de sua idoneidade, está ele ferindo um dever acessório de informação.
Observa o autor que, neste caso não existe cláusula na rescisão do contrato de trabalho acerca desse dever do empregador de prestar com exatidão informação sobre seu ex-funcionário idôneo, tampouco havendo norma jurídica prevendo tal situação. O dever de informação decorre da própria relação contratual, pois os efeitos do contrato, no que concerne ao dever de informar, persistem posteriormente ao fim da avença. Esse dever continuou a existir na fase pós-contratual, implicando para o empregador o dever de reparar o dano causado, ainda que extinta a relação de trabalho.
Percebe-se que os deveres acessórios são na realidade impostos numa relação obrigacional com o objetivo de evitar que situações dessa natureza fiquem desabrigadas pela simples ausência de norma especifica ou cláusula contratual que a preveja. Por esta razão, havendo dano causado à outra parte, a violação dos mencionados deveres gera obrigação de indenizar, com fundamento no desrespeito à cláusula geral da boa-fé, que impõe às partes deveres de lealdade, informação e proteção.
4.2. A aplicação da responsabilidade pós-contratual no direito brasileiro
Antes da promulgação do novo Código Civil, nossa legislação já havia consagrado a regra da boa-fé objetiva. Nesse sentido o Código de Defesa do Consumidor. Antônio Junqueira de Azevedo [25] lembra que:
atualmente, como conseqüência da mudança de mentalidade, a recente lei de proteção ao consumidor que, por sua amplitude, é denominada de Código de Proteção do Consumidor (Lei nº 8078/90), tem o princípio da boa-fé refletido em inúmeros de seus artigos. Aqui trata-se, na verdade, da boa-fé objetiva que interessa à formação do contrato, isto é, a boa-fé como regra (objetiva) de conduta.
Com o advento do Código Civil de 2002, a boa-fé foi expressamente consagrada, dispondo em seu art. 422:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Trata-se da cláusula geral da boa-fé, semelhante àquela presente no BGB e outros códigos. A sua presença significa, no âmbito do direito positivo, uma profunda mudança, propiciando uma abertura do sistema jurídico.
Em decorrência desta cláusula, o juiz deixa de ser um simples investigador da vontade da lei, passando a contribuir para a construção do direito, concretizando os conceitos indeterminados e cláusulas gerais. A positivação da cláusula geral da boa-fé dispensou o julgador do trabalho de justificação da existência do instituto, possibilitando-lhe elaborar suas concretizações, determinando sua extensão e aplicação.
Mas em que pesem os avanços trazidos pela inserção da norma em nosso ordenamento, esta não é impassível de críticas. Nas palavras do professor Antônio Junqueira de Azevedo [26], "o artigo é insuficiente, deficiente, e além de tudo, revela que está num paradigma anterior ao tempo em que estamos vivendo". Como deficiência do então projeto, aponta que o artigo se limita do período que vai da conclusão do contrato até a sua execução, excluindo a fase pré-contratual do âmbito da boa-fé objetiva.
Com relação àquilo que se passa após a fase contratual propriamente dita, mais uma vez nada está dito. Resta, portanto, insuficiente a redação do artigo, pois só trata da conclusão – momento em que se faz o contrato – e execução. Não se faz menção ao que ocorre antes ou após estes momentos.
Como se depreende do exposto neste trabalho, os deveres inerentes à boa-fé subsistem após a fase contratual. Embora a redação da norma do art. 422 tivesse a intenção de introduzir a boa-fé nas relações jurídicas, não há dúvidas quanto à imprecisão, mostrando-se insuficiente para abarcar toda a multiplicidade de fenômenos que a boa-fé pode abarcar.
4.3. A responsabilidade pré-contratual, pós-contratual e a terceira via
Apesar de guardarem algumas semelhanças, a responsabilidade com base na culpa in contrahendo e na culpa post factum finitum tem distintos argumentos para a sua aplicação. No primeiro caso não há contrato efetuado entre as partes, enquanto no segundo, verifica-se a celebração do contrato e o cumprimento da prestação, mas prevalecendo deveres acessórios, vinculados ao pacto, cujos efeitos se estendem para além da sua extinção.
Na responsabilidade pré-contratual, a ruptura imotivada das negociações gera à parte violadora o dever de indenizar os prejuízos eventualmente causados, se tal relação for caracterizada como de direito civil havida entre particulares. Se relação de consumo for, a questão não será resolvida em perdas e danos, em razão da possibilidade do consumidor exigir o cumprimento da oferta, nos termos do art. 35, do Código de Defesa do Consumidor.
Nas relações de direito civil, o rompimento imotivado e injustificado das negociações preliminares será resolvido com base na regra geral da responsabilidade civil, constante do art. 186 do Código Civil. Trata, pois, a responsabilidade pré-contratual, de verdadeira responsabilidade extracontratual, pois decorre do ilícito rompimento injustificado praticado por uma das partes, antes da celebração do contrato.
Não é o que ocorre na hipótese do art. 35 do CDC, anteriormente mencionada, pois em tal caso a responsabilidade pré-contratual se converteria em responsabilidade contratual, haja vista a criação de um vínculo, com o mesmo efeito de um contrato, por força de lei, entre o consumidor e o fornecedor a partir da oferta por este lançada e que possibilita a exigibilidade de seu cumprimento.
Nos contratos findos, a indenização decorrente da violação de deveres assessórios de conduta tem, para alguns autores, natureza extracontratual. Outros autores, contudo, defendem que nesta última hipótese não haveria responsabilidade contratual, tampouco extracontratual. Haveria um tertium genus, uma terceira via na responsabilidade civil.
Para os defensores desta teoria, as duas formas clássicas de responsabilidade civil não seriam adequadas para garantir o cumprimento de certos deveres, uma vez que em alguns casos (culpa in contrahendo e culpa post factum finitum, além de outras hipóteses) existiria algo mais que a simples responsabilidade extracontratual.
Esta terceira via seria uma espécie de responsabilidade civil fundada em vínculos específicos, consistentes de deveres das partes no tráfego negocial. Deveres esses superiores aos denominados deveres genéricos, calcados na boa-fé e não no dever geral de diligência. Diante da existência desses deveres, seria possível a aplicação da responsabilidade civil. No caso de haver culpa post factum finitum, a parte lesada estaria numa situação de dúvida acerca da escolha do caminho a ser seguido para a reparação de prejuízo, o que é relevante no aspecto prático.
A discussão doutrinaria acerca da terceira via da responsabilidade civil, posto importante, não altera as situações fáticas atuais. Diante de um caso concreto, ao intérprete caberá optar entre a caracterização da responsabilidade civil em contratual e extracontratual ou, de maneira mais ampla, em responsabilidade obrigacional ou extra-obrigacional, porque ainda não existe, em Portugal, na Alemanha, tampouco no Brasil, ao menos em termos pragmáticos, esse terceiro gênero. A doutrina majoritária entende que, na culpa in contrahendo a responsabilidade será extracontratual, o mesmo se podendo afirmar com relação à culpa post factum finitum.
Incorreto ou inadequado seria igualar situações relativas a um contrato devidamente firmado com aquelas decorrentes de negociações em fase pré contratual com fundamento na chamada terceira via, a menos que haja dispositivo que prescreva tratamento idêntico, diga-se, nos casos de responsabilidade pré-contratual que são tratados como se contrato houvesse.
No que se refere à responsabilidade civil, a violação dos deveres acessórios de conduta, em se tratando de fase pré contratual, ensejará a chamada responsabilidade aquiliana, dado inexistir, ainda, uma avença. Em se tratando de fase pós-contratual, a violação dos mencionados deveres implicará em responsabilidade contratual, pois em tal caso verifica-se haver um contrato e a produção de seus efeitos.
Destas assertivas, constata-se que em se tratando de ato ilícito praticado por uma das partes derivado de um contrato já firmado entre estas, a comprovação de sua violação será inegavelmente facilitada. Some-se a tais considerações o fato de que os prazos prescricionais na responsabilidade contratual são distintos daqueles previstos para a responsabilidade extracontratual.
Como se percebe, a responsabilidade extracontratual, em regra, torna mais difícil a prova do dano, posto exigir a sua comprovação, a conduta comissiva ou omissiva do agente e o nexo de causalidade entre o dano e o ato. Teoricamente, pelo menos, torna-se mais simples a demonstração da culpa de uma das partes decorrente de um contrato, mesmo após seu término, pois mais fácil é a identificação dos termos contratuais e o exame da infringência ou não dos deveres acessórios de conduta.
CONCLUSÃO
A obrigação é uma relação complexa, que não se esgota no dever principal (dar, fazer, não fazer, entregar e restituir). Existem deveres secundários que viabilizam a prestação e deveres acessórios de conduta. De outro lado, a concepção da obrigação como um processo viabiliza o reconhecimento de várias fases da relação contratual (fase pré-contratual, fase contratual propriamente dita e fase pós-contratual).
Numa relação contratual, a responsabilidade civil deriva do não cumprimento, cumprimento defeituoso ou infringência de deveres acessórios, anexos ou laterais de uma obrigação. Não se confundem responsabilidade e obrigação, podendo haver uma, sem necessariamente subsistir a outra.
A responsabilidade civil pode se originar de vínculo estabelecido entre devedor e credor num contrato, ato unilateral, e pode, ainda, advir de situações não obrigacionais, como nos casos da lesão a direito de uma pessoa mediante ato ilícito, sem que exista qualquer liame obrigacional, ou ainda no caso da oferta regulada pelo CDC.
Em se tratando de responsabilidade contratual, imprescindível a existência de um contrato válido, e que haja prejuízo resultante de seu não cumprimento ou cumprimento defeituoso.
A divisão entre as duas modalidades de responsabilidade, contratual e extracontratual ou aquiliana faz-se necessária, pois diferem quanto à prova do dano e nexo de causalidade, assim como em relação aos prazos prescricionais.
Criada pela doutrina alemã e seguida por influentes autores portugueses, a terceira via caracteriza-se como uma responsabilidade que não seria contratual, nem extracontratual. Tem o objetivo de garantir os deveres acessórios de maneira mais adequada, mas não se mostrou eficiente no aspecto prático, posto que as modalidades clássicas resolvem situações atinentes à inobservância destes deveres.
A boa-fé é um principio geral do Direito. Divide-se em boa-fé objetiva, que é dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura, honestidade, (...) para não frustrar a confiança legítima da outra parte e boa-fé subjetiva, que representa o estado de crença do agente.
A boa-fé objetiva, além de outras funções, integra a relação obrigacional, criando deveres para as partes. Tais deveres incidem em todo o processo contratual. Não são eles determináveis a priori, devendo ser considerados na relação contratual. São deveres a cargo de ambas as partes e que contribuem para que o contrato atinja sua real finalidade.
A violação dos deveres acessórios de conduta, que são diversos daqueles deveres principais e secundários, se ocorrida na fase que antecede a celebração do contrato (culpa in contrahendo) ou se havida em momento posterior à sua extinção (culpa post factum finitum), causando danos a qualquer das partes, possibilita à parte lesada a reparação pelos prejuízos. Na primeira hipótese, haveria a responsabilidade pré-contratual, e no segundo caso, teríamos a chamada responsabilidade pós-contratual, ambas de natureza extracontratual.
A teoria da culpa post factum finitum ou a responsabilidade pós-contratual teve origem no direito germânico, que a desenvolveu através de sua doutrina e jurisprudência. Apregoa a referida teoria que mesmo após o cumprimento de uma avença, com a sua extinção deve continuar existindo entre os ex-contratantes os denominados deveres acessórios, anexos ou laterais de conduta, os quais não se encontram insertos no contrato ou em norma legal que preveja dado comportamento.
Com efeito, a extinção da obrigação principal não desamarra totalmente os contraentes, subsistindo um vínculo que vai além do dever genérico de não prejudicar outrem (alterum non laedere).
Os fundamentos da responsabilidade civil pós-contratual são a boa-fé objetiva, a função social do contrato, dignidade da pessoa humana, solidariedade, igualdade e justiça social. A boa-fé, criando os deveres de conduta, atua como fator de aferição do caráter ilícito da conduta.
A cláusula geral da boa-fé, positivada no art. 422 do Código Civil e presente também no Código de Defesa do Consumidor e Constituição Federal, em que pese a má redação daquele primeiro dispositivo, leva o intérprete a crer que os deveres acessórios de conduta na fase pré-contratual, bem como na fase pós-contratual, podem ser reconhecidos.
A boa-fé objetiva como regra de conduta exige que os contraentes, finda a relação contratual, comportem-se de maneira que evitem que a outra parte se veja despojada ou sejam fortemente reduzidas as vantagens obtidas em razão do contrato.
Esse liame jurídico que enlaça os contraentes após a extinção do contrato materializa-se nos deveres acessórios de conduta, que têm por missão salvaguardar o fim do contrato, não admitindo que uma das partes adote conduta que impeça a outra parte de desfrutar da situação jurídica adquirida em razão do contrato.
É neste sentido, abraçando a teoria da responsabilidade civil pós-contratual, que vem se posicionando a maior parte de nossa doutrina, cujos reflexos já se podem ver em um número cada vez maior de julgados.