RESUMO
O presente trabalho visa a delinear os principais aspectos concernentes à responsabilização civil do Estado e à respectiva ação de regresso a ser ajuizada em face do agente público responsável pelo dano, com enfoque na fixação do momento do surgimento do interesse de agir por parte da Fazenda Pública para demandar a ação regressiva em juízo, com o fim de tornar mais eficiente a recuperação do erário desfalcado, a partir de tese construída por meio de pesquisa bibliográfica com enfoque na doutrina administrativista mais moderna.
Palavras-chave: Direito Administrativo. Responsabilidade Civil do Estado. Ação Regressiva. Surgimento do interesse de agir na ação regressiva.
Introdução
A responsabilidade civil do Estado pelos danos causados aos particulares no exercício das funções e dos serviços públicos que o ordenamento jurídico brasileiro lhe impõe, continua sendo um dos temas mais complexos e de maior repercussão nas mais distintas áreas da ciência jurídica, seja no ramo do direito administrativo, constitucional, civil ou processual.
Embora seja notável a expressividade das conquistas alcançadas pelo direito em matéria de responsabilidade civil do Estado, com a evolução histórica do instituto, desde uma total imunidade da pessoa jurídica pública até a consagração da atual responsabilidade objetiva estatal, muitos aspectos permanecem controvertidos e carecem de melhor elucidação.
Um dos pontos responsáveis por antigas controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais diz respeito, justamente, à relação de regresso entre o Estado e o agente público nos casos de danos causados a terceiros.
No Direito brasileiro, percebe-se a inexistência de legislação específica e sistemática a respeito da responsabilidade civil do Estado e do direito de regresso deste em face do agente público responsável, bem como das formas processuais de exercício desse importante direito.
Diante desse contexto, surge a pertinência do atual artigo, cuja principal finalidade é abordar, de forma crítica, a questão do surgimento do interesse de agir do Estado para propositura da ação regressiva, a fim de elucidar o momento adequado para o exercício desse direito/dever de regresso garantido constitucionalmente na parte final no artigo 37, § 6º, da Carta Magna.
Para tanto, o trabalho ora desenvolvido encontrar-se-á alicerceado na mais moderna doutrina administrativista, visando sugerir soluções práticas para a recuperação célere do erário público desfalcado, numa ótica da Administração Pública eficiente e de resultados.
Desenvolvimento
Na enorme maioria das vezes em que a Administração Pública pratica ato, lícito ou ilícito, que causa lesão a outrem, surgindo a responsabilidade civil do Estado, a vítima do dano ajuíza ação de reparação contra a Fazenda Pública, porque, nesse contexto, não há indagação acerca do elemento subjetivo da responsabilização civil. Além do que, em regra, a solvibilidade do Estado, na condição de pessoa jurídica de direito público, é mais certa que a do eventual agente causador do dano.
Nesses casos, é assegurado o direito de regresso ao Estado no sentido de dirigir sua pretensão indenizatória contra o agente responsável pelo dano, quando este tenha agido com dolo ou culpa.
Como bem salienta o doutrinador Sydney Sanches (2010, p. 104), o legislador brasileiro não definiu, nem simplesmente conceituou o direito regressivo ou a ação regressiva. Mas não deixou de empregar a expressão em vários artigos de lei.
Desse modo, ainda que os doutrinadores brasileiros e estrangeiros não tenham chegado a um consenso a respeito do que seja esse direito regressivo, pode-se compreendê-lo como um instituto de direito material voltado à proteção do patrimônio público, reservando ao Estado o dever-poder de regresso da Fazenda Pública contra o agente que deu causa direta ao cometimento danoso para que o mesmo, comprovada sua participação dolosa ou culposa, recomponha o erário no quantum despendido pela referida indenização.
Diz-se que constitui um poder-dever irrenunciável do Estado, vez que, à luz do princípio da indisponibilidade do patrimônio público, não cabe ao administrador qualquer juízo de discricionariedade sobre a oportunidade ou conveniência do regresso contra o agente culpado nem tampouco dispor do erário público a seu talante.
Trata-se, portanto, de medida assecuratória da permanência do patrimônio público, em atendimento aos princípios da continuidade do serviço público, da moralidade e da legalidade administrativa. (TORRES apud ANDRADE, 2008, p. 71)
Carmen Lúcia Antunes Rocha (2009, p 385) registra que não há de responder a coletividade pelo agente que tenha praticado atos contrários ao sistema jurídico ou que tenha agido sem a diligência que seria de lhe exigir, cabendo a obrigação jurídica de ser ele chamado à responsabilidade, anotando, ainda, que os sistemas passaram a revelar a imprescindibilidade de convocar o agente, após o ressarcimento do prejudicado pela pessoa Estatal.
Celso Bastos (BASTOS, 1994, p. 181-185), no mesmo sentido, reforça que muitas vezes a Administração deixa de promover essa ação regressiva, mas isso é anomalia que não pode fundar ou embasar uma solução jurídica. O certo é que os Poderes Públicos têm o dever de mover essa ação de regresso.
Amparando a obrigatoriedade do exercício do direito de regresso pelo Estado, encontram-se os princípios da indisponibilidade do interesse público, da legalidade, da moralidade, da isonomia, da economicidade e da eficiência, como forma de restabelecer a legalidade e preservar o erário.
Ainda que não estivesse consubstanciado parte final do já citado art. 37, §6º, da Constituição Federal, o direito de regresso do Estado contra o agente responsável estaria assegurado pelo art. 934 do Código Civil, ao prever que aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o que houver pago daquele por quem pagou, salvo se o causador do dano for descendente seu, absoluta ou relativamente incapaz.
De igual modo, a regressividade está prevista no âmbito infraconstitucional, aplicável também ao servidor celetista. A Lei Federal 8112/1990, em seu art. 122, §2º, reafirma esse princípio.
É certo que a relação jurídica, na ação regressiva, estabelece-se entre o Estado, titular da ação, e o servidor culpado, únicas partes integrantes do vinculum júris.
Nada obstante, convém destacar, uma vez mais, que a ação regressiva difere da ação de responsabilidade intentada pelo particular, diretamente contra o Estado, porque, para esta última, bastam o dano e o nexo causal; para aquela é indispensável a culpa ou o dolo do funcionário, bem como a propositura da preliminar ação de responsabilidade, culminando com a condenação do Estado.
Registre-se, ainda, que o efetivo exercício desse direito de regresso tem, em relação ao agente público, natureza de sanção patrimonial, cujo pagamento da indenização não libera o agente causador de eventuais responsabilidades administrativa e penal. É o que se extrai do art. 125 da Lei nº 8.112/90, ao dispor que as sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.
Finalmente, no que concerne ao prazo para o ajuizamento da ação regressiva, convém explicitar a controvérsia doutrinária nesse tema.
A doutrina tradicional defende a imprescritibilidade da pretensão de regresso do Estado perante o agente responsável pela lesão. Assim, não haveria período máximo (vale dizer: prazo prescricional) para o Poder Público possa propor a ação de indenização em face de seu agente, com o fito de garantir o ressarcimento pelos prejuízos que o mesmo lhe causou. (CARVALHO FILHO, 2010, p. 556)
Todavia, seguindo um raciocínio analógico às regras contidas no Código Civil, uma crescente corrente, ainda minoritária, aduz que o prazo prescricional da ação de regresso do Estado contra o agente responsável pelo dano a terceiro é de três anos, porque aplicável o direito comum (art. 206, §3º, V, do vigente Código Civil).
Segundo essa nova corrente, a interpretação que confira à norma do art. 37, § 5º, da Constituição Federal como acolhedora da hipótese de imprescritibilidade de ação de ressarcimento do Poder Público para reaver prejuízo ao erário, não se coaduna com o princípio da segurança jurídica e com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Pois, não há nenhuma justificativa principiológica para se premiar o Poder Público inerte com a imprescritibilidade das ações de reparação. Muito pelo contrário, tal prêmio atenta contra a sistemática constitucional. (ANDRADE, 2005, p. 97)
Essa respeitável visão doutrinária remete-nos a uma nova discussão, não menos importante, e que dá azo ao tema central do presente trabalho: qual seria o marco inicial para que se possa cogitar da prescrição da pretensão regressiva? E, consequentemente, a partir de que momento surge o interesse de agir estatal para a propositura da ação regressiva?
Conclusão
Após minudenciosas e exaustivas considerações acerca dos institutos da responsabilidade civil do Estado e do direito de regresso, é chegada a hora de definir quando esse direito pode ser exercitado, estipulando o momento em que o Estado pode agir contra o agente público responsável pelo dano, fazendo valer seu direito/dever de regresso previsto constitucionalmente.
De acordo com o que foi demonstrado até aqui a respeito da efetivação da responsabilidade do Estado através do pagamento das indenizações via precatório, nota-se que a situação do credor de condenação judicial do Poder Público é extremamente dura, pois o tempo que levará para receber, se for obedecida a Constituição, e desconsiderando o notório atraso na fila de pagamento, pode variar de 18 a 30 meses.
Atentos a esse quadro, os administrativistas apontam que o momento para o exercício do direito de regresso seria aquele posterior ao pagamento da indenização, considerando que, se não houver o pagamento, não há como justificar o pedido de regresso.
Tal entendimento, de fato, é acertado, pois nada impede que o lesado, autor da ação de indenização, não promova a execução dos valores a que foi o Estado condenado, como reflexo do seu poder dispositivo, já que o direito à indenização, em princípio, é disponível.
No entanto, ainda que haja certo consenso doutrinário quanto à necessidade do efetivo pagamento da indenização como condicionante à propositura da ação regressiva contra o agente causador do dano, cumpre, agora, realizar uma importante distinção pouco considerada pela doutrina e jurisprudência: a diferenciação entre a apuração da existência do direito de regresso e sua efetivação.
Sabidamente, não se pode admitir que o Estado exerça e concretize previamente o direito de regresso, ou seja, que receba primeiro do agente responsável, para somente depois pagar o lesado, sob pena de se evitar eventual enriquecimento sem causa em favor do Estado.
Com efeito, o Estado deve pagar a indenização para, somente então, estar apto a voltar-se regressivamente contra o agente público. Afinal, é essa a lógica e a sistemática do direito de regresso.
No entanto, segundo a acepção mais moderna e dinâmica do Direito Administrativo, numa ótica que visa a eficiência e o resultado, isso não afasta a possibilidade de o Estado, paralelamente ao ajuizamento da ação de indenização pelo lesado, ajuizar sua ação regressiva para apurar a existência do direito de regresso e seus contornos. Definidos estes, o efetivo exercício de tal direito ficaria, então, paralisado, suspenso, até o momento em que o Estado efetuar o pagamento ao lesado.
Nesse caso, o Estado estará buscando apenas verificar se, de fato, tem direito de regresso.
Assim, uma vez confirmada a sua existência por decisão judicial, somente a efetivação ou execução desse direito regressivo ficará condicionada ao pagamento da indenização. Desta feita, a procedência da ação de regresso não significa que o Estado está antecipando o seu direito de regresso, pois a execução deste fica condicionada ao prévio pagamento da indenização à vítima.
Os benefícios do ajuizamento ad eventum da ação regressiva são inegáveis, tanto para o Estado como para o Poder Judiciário. Dessa forma, ambas as lides, principal (responsabilidade objetiva do Estado) e regressiva (contra o agente responsável pelo dano), estarão sendo simultaneamente decididas, atendendo-se, assim, aos princípios da celeridade e economia processual.
De fato, conforme já foi demonstrado exaustivamente no presente trabalho, o sistema de pagamento das dívidas da Fazenda Pública via precatório é extremamente moroso, sendo recomendável ao Estado ajuizar ad eventum a ação de regresso, para já promover o acertamento judicial do direito regressivo e evitar um possível perecimento do conjunto probatório contra o agente responsável pelo dano.
Assim, quando a majoritária doutrina de direito administrativo defende que o direito de regresso está condicionado ao pagamento da indenização do Estado à vítima, há que se fazer a distinção entre dois momentos diversos: a apuração do direito de regresso em si, e a efetivação ou satisfação de direito de regresso judicialmente reconhecido.
De tal modo, o que não é possível é a efetivação ou satisfação do direito de regresso, já judicialmente reconhecido, antes do pagamento da indenização no processo entre Estado e terceiro. Somente com o desembolso, o Estado poderá executar o título judicial que tenha obtido contra o agente responsável, no âmbito da ação de regresso.
Portanto, a mera apuração e acertamento da existência de seu direito de regresso, paralelamente à ação de indenização ajuizada em face do Estado pelo lesado, não está proibida.
Ao contrário, com vistas à otimização das demandas regressivas e a uma maior eficiência no resgate ao erário desfalcado, mostra-se mais acertado o entendimento de que o interesse de agir do Estado não reside em executar antecipadamente o agente público responsável, mas sim em já deixar judicialmente acertado o direito de regresso, de modo que, após o pagamento da indenização por força de condenação na lide originária, partirá o ente estatal para a execução de seu título executivo judicial, gerado no âmbito da lide regressiva, privilegiando, assim, os princípios da economia e celeridade processual.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Érico. Responsabilidade Civil do Estado e o Direito de Regresso. 1ª ed. São Paulo: IOB Thomson, 2005.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 1994.
CARVALHO Filho, Jose dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
ROCHA, Carmen Lucia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.
SANCHES, Sydney. Denunciação da lide no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984.