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Direito e Justiça: uma relação tormentosa, mas necessária

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Agenda 07/02/2007 às 00:00

4. Arbitrariedade e a justiça

Um regra é arbitrária quando não for suscetível de justificação. Alf Ross indica que a justiça é conduta contrária à arbitrariedade e que haverá justiça toda vez que uma regra for aplicada corretamente. Neste caso, adverte o jusfilósofo dinamarquês, a justiça é intrasistêmica. 26

Isso significa que justificar consiste em demonstrar que uma regra deriva de outra mais genérica, integrante de uma categoria mais vasta, como difundido por Hans Kelsen. 27 O casuísmo é injustificável. Desta forma um ato arbitrário concreto não pode se coadunar com a justiça formal. Não há derivação entre um e outro.

Todavia, há arbitrariedade na justiça. A verificação de uma conduta ou norma como justa decorre do fato de esta está pautada em uma regra. Esta regra, em última análise, possui o valor justiça como ponto de referência. Aqui se vai da concreção à abstração. Este ponto de parada é arbitrário. Mesmo no valor justiça. É ínsito a esta categoria. Por ser arbitrário, não há justificação.

Por que prevalece, em um dado momento histórico esta categoria essencial e não aquela outra? A esta pergunta responder-se-á: porque, neste momento histórico, o valor que prevalente é este. Esta escolha não é pautada em dado científico e nem em dado lógico, mas, como dito, de forma arbitrária. Por ser arbitrário, é precário. Muda-se ao sabor da escolhas históricas da humanidade. Acrescenta-se, ainda, que, em um mesmo momento histórico, esta prevalência pode não está clara, como no momento atual. Neste caso, o valor justiça eleito pode ser qualquer um dos critérios explicitados no tópico 3.

Desta forma o ideal de justiça é arbitrário. Dele se deriva a justiça das condutas concretas.

Saliente-se. A arbitrariedade é da escolha do critério e não de sua aplicação no caso concreto. Em outros termos, a escolha, por exemplo, entre o critério "a cada um segundo o que a lei lhe atribui" e o critério "a cada um segundo seu mérito" é arbitrária. Após a escolha, sua aplicação é vinculada, sob pena de se incorrer em injustiça.


5. Elementos da justiça na sua manifestação existencial

A justiça como um todo é composta pelo valor que o fundamenta, a regra que a enuncia e o ato que a realiza.

Na primeira hipótese, constata-se que o valor, em si, não é justo. O valor é atributo dos entes. A justiça, por ser valor, vale, não é. 28 Por não ter característica de ente, não pode ser deduzida de um esquema racional, muito menos lógico. Entretanto, é o ponto de partida. Não há o valor correto ou errado. Há o valor escolhido, desejado. Na sua conformação, pode tomar inúmeras variantes. Dependendo da categoria essencial eleita. Assim, além de arbitrário, o valor justiça é plural e muitas vezes antagônicos. Chocam-se.

No que pertine à segunda característica – a regra que enuncia -, deve haver justificação. Aqui se tem em mente a regra específica. Se uma regra não possui lastro em um valor de justiça ela será casuística, logo injusta.

Além dessas duas características, tem-se a terceira, qual seja, o ato que a enuncia. Este, como compositiva da justiça em sua manifestação existencial, deve ser regular, ou seja, tratar de forma igual os membros de uma categoria essencial.

A percepção do conteúdo arbitrário, na justiça, traz conseqüências importantes para o aplicador. A primeira e mais importante é que não existe justiça perfeita, pois um sistema de justiça decorre de uma escolha. É axiológica! Não há uma justiça absoluta, aplicada indistintamente à universalidade dos casos. Um ato será justo se emitido em conformidade com o valor justiça eleito. Logo é relativa, como bem salienta Hans Kelsen. 29

Desta forma, alguém ávido por justiça não pode esquecer que, ao lado de seus valores, existem outros e que, no caso concreto, deve ser flexível nas suas ponderações, pois, caso contrário, ter-se-á, em nome da justiça, uma conduta autoritária, incompatível com a configuração da justiça.


6. Justiça como um valor

Percebe-se, em Aristóteles, Santo Tomás de Aquino, Kelsen, Aftalion, Radbruch, Lask, Cossio e Reale, o caráter axiológico da justiça. Paulo de Barros Carvalho escolheu a justiça como princípio mais importante da ordem jurídica. 30 Entende-o como valor. Para isso segue a linha de pensamento de Miguel Reale para explicar o valor, como se expõe.

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Como já explicitado, o valor não é, vale. É atributo do ser, entretanto, possui algumas características. Inicialmente, a bipolaridade. É típico dos objetos ideais. Cada valor tem um desvalor que lhe é correspondente. A segunda é a implicação. Por ser bipolar, um implica o outro. A justiça implica a injustiça. A referibilidade é outra característica do valor. Neste caso, a qualidade importa sempre tomada de posição do ser humano diante de alguma coisa. Preferibilidade é a próxima característica. Prefere-se um valor a outro. Mais ainda: não há como medir o valor; ele é incomensurável. Além disso, o valor possui gradação hierárquica. O valor necessita de dados da experiência para receber sua densificação. Eis a objetividade. Não se pode esquecer que os valores são construções humanas que variam no tempo e no espaço, logo, possuindo historicidade. Por último, o valor não se exaure em um objeto. Pode-se tributar como justa a norma "a", "b", "c", [. ..], "n" e mesmo assim não exaurir a justiça. 31

Percebe-se, assim, que justiça é um atributo, uma qualidade de determinada ordem.

Entretanto, este valor acaba sendo intrínseco ao direito positivo pátrio. Isto decorre da opção constitucional explícita. É um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil ao destacar, no art. 3º, I, CF/88, a finalidade de construir uma sociedade livre, justa e solidária. Além disso, há menção à justiça no preâmbulo da Constituição e também como valor fundante da ordem econômica, como se colhe da leitura do art. 170. da CF/88. Ainda que ela não fosse expressa, e no caso brasileiro é, esta se manifestaria como decorrente de outros princípios, a saber: a dignidade da pessoa humana, a isonomia, a capacidade contributiva etc. Todos eles têm por lastro a justiça. Por esta razão, o valor justiça é um dado intrassistêmico e que deve ser obedecido, sob pena de macular a ordem positiva. Esta é a posição de Alf Ross.

Desta forma a justiça não pode ser vista como categoria alheia, metafísica, mas inerente à ordem jurídica, como salientado. Acrescente-se. Sendo intrassistêmica, de matriz constitucional, a lei reconhecida como injusta padece do vício de inconstitucionalidade, conforme escólio de Juarez Freitas 32. Assim, pode-se compreender, na esteira de Santo Tomás de Aquino que uma lei injusta não é lei, mas sua perversão. 33


7. Justiça como princípio

Partindo da premissa que o princípio é um comando fundamental que irradia sua carga axiológica sobre todo o ordenamento jurídico. Tendo conteúdo eminentemente normativo, como preconizam Alexy, Dworkin, Canotilho, Celso Antônio Bandeira de Mello e outros, e não mero indicativo ou meta a ser cumprida, percebe-se que este, o princípio, acaba sendo a categoria suficiente para orientar o aplicador a formular, no caso concreto, a regra que irá nortear a solução dos problemas que são colocados.

Sendo a justiça um princípio positivado, percebe-se que esta terá, no arcabouço principiológico do ordenamento, que ser ponderada, no momento da sua efetivação. Mais. Havendo colisão entre este – o princípio justiça – e outro de matriz constitucional dever-se-á ponderar os interesses antagônicos, aplicando-se o mais relevante.

Outro dado importante, com relação à aplicação da justiça, é a existência de diversas formulações acerca da justiça. Antes de aplicar o princípio justiça, deve saber a formulação da justiça concreta a ser aplicada, que, como se viu, são várias. Eis a colisão interna. Neste caso, resta evidente que, como preconizaram Aristóteles e Perelman, deve-se socorrer da Régua de Lesbos: a eqüidade.

Resolvido este primeiro problema, passa-se a verificar, no panteão principiológico, qual o que deve prevalecer: mais uma vez, a Régua de Lesbos. Percebe-se assim que, como restou demonstrado por Perelman, a eqüidade é o instrumento que irá auxiliar o direito na realização da justiça.


Conclusão

Do que restou exposto, percebe-se as duas categorias direito e justiça, nascidas juntas, foram como o Andrógeno34, separados e, no percurso histórico do desenvolvimento humano, entre encontros e desencontros, buscam se encontrar para reatar a perfeição inicial.

A justiça sem o direito vira pura especulação metafísica, sem efetividade. O direito sem justiça transforma-se em ordem destituída de legitimidade, opressão, comando do mais forte. A interação entre direito e justiça, além de possível, é necessária. Sem esta interação, perde-se a humanidade nas relações intersubjetivas. A justiça humaniza o direito. O direito a efetiva.

A efetivação da justiça passa pela superação da idéia que só existe uma variante de justiça concreta. Esta idéia, inclusive, fundamenta os regimes totalitários. Às vezes, usar o postulado "dar a cada um o seu direito" acaba sendo uma opção injusta, como preconizou João Mangabeiras. Como saber qual o postulado de justiça a ser utilizado? Como relatado, faz-se necessário a Régua de Lesbos, a eqüidade.

Saliente-se que este valor justiça fora positivado pela Constituição Federal de 1988 e ele irradia seus efeitos sobre o ordenamento jurídico de forma obrigatória, pois a idéia de que o princípio não vincula não mais anima os teóricos hodiernos.


Referências

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Notas

1 VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 56-57.

2 FERRAZ JÚNIOR, Tércio. Introdução ao Estudo do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1996, p. 24.

3 SÓFOCLES. Trilogia Tebana – Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Trad. de Mário da Gama Kury. 8. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 214.

4 ARAÚJO FILHO, Evilásio Correia. Sobre o Direito Alternativo e o Uso Alternativo do Direito. Curitiba: HD Livros Editora, 2004, p. 22-29.

5 PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 342.

6 KELSEN, Hans. A Ilusão da Justiça. Trad. Sérgio Tellaroli. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 448.

7 ARISTÓTELES. Etica Nicomáquea. Ética Eudemia. Trad. Julio Palli Bonet. 1. ed., 4. reimp. Madrid: Editorial Gredos. 1998, p. 238.

8 ARISTÓTELES, op. cit., p. 264.

9 ARISTÓTELES, op. cit., p. 265.

10 ARISTÓTELES, op. cit., p. 243.

11 ROSS, Alf. Direito e Justiça. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000, p. 313-314.

12 Acontece esta hipótese nas trocas, precisamente quando for possível valorar de forma igual objetos distintos.

13 Aqui se toma como parâmetro o mérito de cada um.

14 Digesto de Justiniano – Liber Primus. Trad. Hélcio Maciel França Madeira. Edição bilíngüe, 3. ed. São Paulo: RT e Centro Universitário FIEO, 2002, p. 21.

15 TOMÁS DE AQUINO. Tratado da Justiça. Trad. Fernando Couto. Porto: Rés-Editora, s.d., p. 63-70.

16 AFTALIÓN, Enrique R. et al. Introducción al Derecho. 3. ed., nueva versión. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1999, p.717-718.

17 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 52.

18 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Sistema de Ciência Positiva do Direito. Campinas: Bookseller, 2000, Tomo I., p. 117.

19 AFTALIÓN, op. cit. p. 709-711.

20 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 64-69.

21 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – Entre Facticidade e Validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 45.

22 Este tópico tem como inegável fonte a obra Ética e Direito, de Chaïm Perelman, máxime o §1º do capítulo I, denominado "Da Justiça".

23 PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 3-67.

24 Cf. MANGABEIRAS, João. Oração aos Bacharelandos da Faculdade de Direito da Bahia. In Idéias Políticas de João Mangabeiras. Vol. III. 2. ed. Brasília-Rio de Janeiro: Senado Federal e Fundação Casa de Rui Barbosa, 1978, p. 20.

25 Cf. PERELMAN, op. cit. p. 19.

26 ROSS, op. cit., p. 326-331.

27 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 52.

28 MORENTE, Manuel Garcia. Fundamentos de Filosofia – Lições Preliminares. Trad. Guilherme de la Cruz Coronado. 8. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1980, p. 299/301.

29 KELSEN, Hans. O que é a Justiça? Trad. Luis Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 23-25

30 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 147.

31 CARVALHO, op. cit., p. 143-147.

32 FREITAS, Juarez. A Substancial Inconstitucionalidade da Lei Injusta. Petróples-Porto Alegre: Vozes e Edipucrs, 1989, p. 89-104.

33 Santo TOMÁS DE AQUINO. Tratado da Lei. Trad. Fernando Couto. Porto: Res Juridica, sd, p. 27-30

34 O Andrógeno é um ser mítico, modelo da completude humana, possuidor de dois sexos que foi separado por Zeus por um fio de cabelo e, por esta razão, um vive em busca do outro, à procura da perfeição perdida. Cf. PLATÓN. Simpósio (Banquete) o De la Erótica, in Diálogos. Trad. Francisco Larroyo. 25. ed., México: Editorial Porrúa, 1998, p. 362/365.

Sobre o autor
Beclaute Oliveira Silva

Doutor em Direito (UFPE). Mestre em Direito (UFAL). Professor da FDA/UFAL. Membro do IBDP e da ABDPC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Beclaute Oliveira. Direito e Justiça: uma relação tormentosa, mas necessária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1316, 7 fev. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9466. Acesso em: 23 dez. 2024.

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