A Covid-19 se transformou em um cataclismo mundial que impôs desafios aos chefes de Estado de todo o planeta. No Brasil, apesar da catástrofe com o esgotamento de leitos nas UTIs e com o alto número de mortes, foram tomadas inúmeras medidas na tentativa de combater esse fenômeno devastador. No tocante à administração pública e ao direito administrativo, uma das medidas tomadas pelos órgãos do Estado foi em relação às licitações. Desse modo, o intuito do seguinte ensaio é demonstrar os efeitos provocados pela pandemia da Covid-19 nesse procedimento administrativo.
Começando pela licitação, faz-se mister elucidar que licitação é: O procedimento prévio de seleção por meio do qual a administração, mediante critérios previamente estabelecidos, isonômicos, abertos ao público e fomentadores da competitividade, busca escolher a melhor alternativa para a celebração de um contrato. (CHARLES, 2020: 277). Nesse sentido, infere-se que o poder público tem o dever de licitar. Contudo, há alguns casos específicos em que a própria legislação eximiu a administração pública de tal obrigação. Cronologicamente, remetendo inicialmente ao ano de 2020, no qual ainda não havia sido aprovada a nova Lei de Licitações; o artigo 24 da lei 8.666/93 trouxe um rol de possibilidades para a dispensa de licitação. Através de uma hermenêutica literal e sistemática, infere-se que o inciso IV desse artigo se amolda na situação vivida em 2020/2021. Ele possui a seguinte redação:
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos; (BRASIL, 1993).
Nesse sentido, a fim de enfatizar o caso descrito pelo inciso IV do artigo 24 da Lei 8.666/93 e oferecer maior segurança jurídica ao administrador público, foi publicada a Lei Federal nº 13.979/2020, posteriormente modificada pela Medida Provisória nº 926/2020 e pela Lei Federal n° 14.035/2020, e com validade concomitantemente com a vigência do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020; estabelecendo as providências para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional causada pela Covid-19. O artigo 4° dessa lei dispôs que É dispensável a licitação para aquisição ou contratação de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei. (BRASIL, 2020).
Além disso, tal lei apresentou em seu artigo 4°-B um rol taxativo de requisitos que devem ser observados para que os procedimentos licitatórios sejam dispensados. São eles: I - ocorrência de situação de emergência; II - necessidade de pronto atendimento da situação de emergência; III - existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e IV - limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.
Percebe-se que essa dispensa de licitação se refere apenas às atividades e aos serviços voltados ao enfrentamento da pandemia. Nesse diapasão, é correto afirmar que, como nem toda contratação com o Poder Público realizada durante este período tem como objetivo o combate à Covid-19, as medidas trazidas pela lei 13.979/2020 não se aplicam a todos os casos, devendo ser observadas as normas gerais de licitações e contratos contidas na lei 8.666/93 (ou na lei 14.133, conforme justificativa que será apresentada posteriormente), bem com nas demais legislações aplicáveis à matéria, sob pena de incidirem, tanto o gestor público, quanto o particular contratado, nas responsabilidades e penalidades previstas em lei, nos casos que não possuírem relação direta com o combate da pandemia. Ademais, esses requisitos são fundamentais e devem ser observados, de modo a impedir o mau uso do dinheiro público, evitar fraudes e garantir à administração pública a melhor oferta com a livre concorrência. Segundo Bruno Teles,
Tais exigências visam a atribuir o máximo de segurança ao procedimento, impossibilitando ou, pelo menos, dificultando que ocorram interpretações equivocadas que coloquem em risco o erário ou possível favorecimento de determinados fornecedores em decorrência da diminuição da concorrência (TELES, 2020).
Além disso, a lei 13.979/20 ainda dispõe sobre outras medidas que facilitam ou dão celeridade ao processo licitatório, em virtude da urgência da situação. São elas: a contratação de uma única fornecedora do bem ou prestadora do serviço independentemente da existência de sanção de impedimento ou de suspensão de contratar com o poder público; a não exigência da elaboração de estudos preliminares quando se tratar de bens e de serviços comuns; a simplificação do termo de referência ou projeto básico; a relativização e a dispensa da estimativa de preços; a redução dos prazos nos procedimentos de pregão, etc.
Posteriormente, no ano de 2021, foi publicada a Nova Lei de Licitações. Com a nova legislação, Lei n° 14.133 de abril de 2021, a matéria em estudo passou a ser tratada pelo artigo 75 e a correspondência direta ao inciso IV do artigo 24 da antiga lei se encontra no inciso VIII (BRASIL, 2021). O novo dispositivo legal adiciona como fundamentação dos motivos de dispensa, o comprometimento da continuidade dos serviços, além de alterar o prazo de 180 (cento e oitenta) dias da antiga lei para 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto desse inciso. Além disso, a Nova Lei de Licitações expõe novidades sobre a dispensa de licitação como, por exemplo, a ampliação do valor das contratações que podem ser efetuadas com dispensa de licitação.
Destarte, é de extrema relevância abordar o disposto em ambas as leis, pois haverá aplicação concomitante das duas durante dois anos. Tanto a Lei 8.666/93, quanto a Lei 14.133/21 poderão ser aplicadas, de acordo com os critérios de escolha e conveniência da administração pública, pelo prazo de dois anos, quando então, finalmente, apenas a nova lei vigerá. De acordo com Gustavo Silva Xavier,
O art. 194 da lei 14.133/21 prevê que a nova lei entrará em vigor na data da sua publicação. Não haverá, pois, o denominado período de vacatio legis. Contudo, haverá uma espécie de "período de transição", caso em que a nova lei de Licitações conviverá por dois anos com as leis 8.666/93, 10.520/02 e 12.462/11, exceto quanto às disposições penais da lei 8.666/93, que foram revogadas de imediato. Nesse interim, a Administração Pública terá a prerrogativa tanto de aplicar o novo Marco Regulatório quanto de continuar aplicando a legislação pretérita, devendo ser indicada no edital de licitação a opção escolhida e vedada a aplicação combinada das citadas leis (art. 191). (XAVIER, 2021).
Nesse sentido, nos casos de dispensa ou inexigibilidade de licitação, e enquanto ainda vigente a Lei de 1993, o gestor público deverá estabelecer expressamente a lei aplicável à contratação entre a nova lei ou a antiga.
Por fim, vale ressaltar, que em abril de 2021 o Plenário do Senado aprovou o projeto que prorroga a dispensa de licitação para serviços e compras relacionados à pandemia. De autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o PL 1.315/2021 também convalida os atos praticados pelos governos federal, estaduais, do DF e municipais desde janeiro, quando a Lei 13.979/20, que tratava dessa flexibilização, perdeu a validade (CHRISTIAN, 2021). Entretanto, em decorrência de uma cautelar do STF, alguns dispositivos da referida norma foram mantidos. Atualmente, o projeto foi remetido à Câmara dos Deputados e está aguardando análise de parecer na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF).
Portanto, neste ensaio foi debatida a dispensa e a relativização dos procedimentos licitatórios diante da decretação de calamidade pública. A crise sanitária vivenciada atualmente abalou estruturas e alarmou as autoridades de todo o planeta. A necessidade de mudanças pragmáticas, a fim de evitar grandes perdas e manter o funcionamento da máquina estatal, tornou-se vital para a manutenção dos Estados e para a sobrevivência das pessoas. Com isso, vê-se a importância de estudar a matéria, uma vez que diante de uma situação fática de crise, como a atual provocada pelo coronavírus, há inúmeros efeitos e mudanças nas licitações e nos contratos administrativos.
Referências Bibliográficas:
BRASIL. Lei n° 8.666 de 1993. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm Acesso em: 19 de agosto de 2021.
BRASIL. Lei n° 13.979 de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm Acesso em: 19 de agosto de 2021
BRASIL. Lei n° 14.133 de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm Acesso em: 19 de agosto de 2021
CHRISTIAN, Hérica. Plenário aprova prorrogação da dispensa de licitação na pandemia. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2021/04/plenario-aprova-prorrogacao-da-dispensa-de-licitacao-na-pandemia Acesso em: 19 de agosto de 2021
NETO, Fernando Ferreira Baltar; DE TORRES, Ronny Charles Lopes. Direito Administrativo. 10. Ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.
TELES, Bruno. A dispensa de licitação durante a Covid-19. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-06/bruno-teles-dispensa-licitacao-durante-covid-19 Acesso em: 19 de agosto de 2021.
XAVIER, Gustavo Silva. Reflexões sobre o regime de transição da nova lei de licitações. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/343336/reflexoes-sobre-o-regime-de-transicao-da-nova-lei-de-licitacoes Acesso em: 19 de agosto de 2021