4. O ARGUMENTO DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
Mutação constitucional, sabemos, é uma espécie de reforma da Constituição, mas sem a alteração do texto. O que se modifica é apenas a interpretação dada à norma objeto do processo de reforma.
Sobre o tema, transcrevem-se as seguintes considerações:
"...denomina-se mutação constitucional o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Lex Legum, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e costumes constitucionais."
Finalmente, ainda nos aproveitando do entendimento do Prof. Uadi, ressalta o mestre, na direção do caminho que estamos construindo desde o Capítulo 1, que: "De fato, as mudanças informais são difusas e inorganizadas, porque nascem da necessidade de adaptação dos preceitos constitucionais aos fatos concretos, de um modo implícito, espontâneo, quase imperceptível, sem seguir formalidades legais."
"Atuam modificando o significado das normalizações depositadas na Constituição, sem vulnerar-lhes o contudo expresso; são apenas perceptíveis quando comparamos o entendimento dado às cláusulas constitucionais em momentos afastados no tempo."
"Desta feita é válido asseverar que a mutação constitucional constitui uma alteração no conteúdo de alguma(s) norma(s) constitucional(is), sem qualquer alteração no Texto Maior, objetivando o acompanhamento da evolução do pensamento do corpo social, mantendo intacto o entrosamento entre soberania popular e Norma Fundamental."
Os defensores do efeito vinculante da decisão tomada pelo STF no HC 82.959-7/SP pretendem encontrar guarida na doutrina de GILMAR FERREIRA MENDES, Eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, e autor do excelente artigo "O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional", publicado na Revista de Informação Legislativa n.º 162 (abr/jun. 2004), páginas 149/168.
Diz o autor, em síntese:
a) a ampliação do sistema concentrado, com multiplicações de decisões dotadas de eficácia geral, acabou por modificar radicalmente a concepção sobre a divisão de poderes, tornando comum no sistema a decisão com eficácia geral, que era excepcional sob a EC 16/65 e sob a Carta de 1967/69;
b) A ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental admitiu a impugnação ou a discussão direta de decisões judiciais das instâncias ordinárias perante o Supremo Tribunal Federal, constituindo-se em uma ‘ponte’ entre os dois modelos de controle de constitucionalidade, ao atribuir eficácia geral a decisões de perfil incidental;
c) os órgãos fracionários de outros tribunais ficaram exonerados do dever de submeter a declaração de inconstitucionalidade ao Plenário ou Órgão Especial, na forma do artigo 97 da CF/88, quando já houver decisão plenária do STF reconhecendo a inconstitucionalidade, orientação incorporada ao direito positivo (art. 481, parágrafo único, parte final, na redação da Lei n.º 9.756/98);
d) a finalidade da decisão do Senado (art. 52, X, da CF/88) é apenas tornar pública a decisão do STF, levando-a ao conhecimento de todos os cidadãos;
e) em conseqüência, as decisões legislativas e judiciais referidas significam autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico, devendo ser dada nova interpretação ao artigo 52, X, da CF/88.
Os argumentos utilizados pelo culto e operoso Ministro, em que pesem substanciosos, salvo melhor juízo não se apresentam suficientes para infirmar o disposto no artigo 52, inciso X, da CF/88.
Crê-se que duas vetustas normas de interpretação das leis salvam a interpretação tradicional do texto do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal.
A primeira delas é: ‘Commodissimum est, id accipi, quo res de qua agitur, magis valeat quam pereat" (Prefira-se a inteligência dos textos que torne viável o seu objetivo, ao invés da que os reduza à inutilidade), que deve ser conjugada com a segunda: "Verba cum effectu, sunt accipienda" (Não se presumem, na lei, palavras inúteis).
Com efeito, o sistema jurídico deve ter uma coerência interna, funcional, ou seja, o controle difuso não pode ser igualado ou equiparado ao controle concentrado. Assim, o art. 52, X não é velharia, relíquia jurídica, letra morta por ter "caído em desuso", até mesmo porque, no nosso sistema romano-germânico, costume não revoga lei.
Se o costume revogasse a lei, nosso sistema jurídico seria caótico, pois como aferir objetivamente se determinada norma está em desuso? Como suplantar, pelo costume, a norma positivada (elaborada pelo Parlamento, e supostamente fruto da vontade geral) e vigente?
Existe uma longa tradição brasileira de controle difuso de constitucionalidade que não pode ser quebrada, ainda que por louvável pragmatismo.
Não se olvide que forte é a presunção de constitucionalidade de uma interpretação de dispositivo constitucional quando data de longos anos – no caso, desde a Constituição de 1934.
Lembre-se que o STF, no ano de 1966, afirmou, no Mandado de Segurança n.º 16.512, que o Senado não estava constitucionalmente obrigado a suspender o ato declarado inconstitucional.
Pelo voto do então Ministro Victor Nunes Leal, firmou-se que a suspensão trata-se de ato discricionário do Senado Federal, atrelado a critérios de conveniência e oportunidade.
Pode o Senado Federal não entender conveniente tal suspensão pelos mais variados motivos: a decisão não estar suficientemente pacificada, aposentadoria iminente de ministros que votaram pela inconstitucionalidade da norma, a iminência da norma impugnada ser alterada legislativamente, com novo regramento para a matéria, desgaste político de suspender a execução da norma declarada inconstitucional, etc.
Mencione-se, também, que quando uma Constituição mantém os mesmos institutos da Constituição anterior, sem alteração significativa de redação, é porque não pretendeu introduzir mudanças, devendo ser aplicada a mesma interpretação aceita para a Constituição anterior. E é justamente o que ocorre com o artigo 52, inciso X, da Constituição Federal, ‘sucessor’ do artigo 42, inciso VII, da Constituição de 67/69. Isso é tão óbvio que nem precisaria ser dito, mas o problema é que muitas vezes nos meios jurídicos não se consegue ver o óbvio.
Aliás, a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal torna letra morta o artigo 52, inciso X, da CF/88, o que equivale a dizer que tal norma nenhuma eficácia teria e que permanece no texto constitucional como ‘alma penada’, simples ornamento, o que não é admissível.
Retomando os ensinamentos de CARLOS MAXIMILIANO, é de se dizer que a prática constitucional longa e uniformemente aceita pelo Poder Legislativo ou Executivo tem mais valor para o intérprete do que as especulações engenhosas dos espíritos concentrados, não sendo a Constituição repositório de doutrinas (op. cit. p. 255).
Ora, afirmar, como fazem alguns, que o papel do Senado na declaração incidental de inconstitucionalidade é apenas ‘dar publicidade à decisão do STF, levando-a ao conhecimento dos cidadãos’ é aviltar o papel daquela Casa Legislativa, atribuindo-lhe um papel de ‘mero divulgador’ das decisões da Suprema Corte brasileira.
Para tal objetivo – dar publicidade à decisão do STF em controle incidental de constitucionalidade – certamente o legislador constituinte de 1988 prescindiria do Senado Federal, bastando que a decisão fosse publicada no Diário da Justiça da União, como ocorre nas decisões em controle concentrado de constitucionalidade.
Nada pode ser mais lógico do que isto! Não se olvide, aqui, a sábia advertência de que a interpretação das normas jurídicas não pode levar a absurdos.
Caso o Senado Federal, dentro do seu juízo de discricionariedade, suspenda a execução da lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo STF, a eficácia será erga omnes e ex nunc.
A decisão não pode ter efeitos ex tunc (retroativos) porque há diferenças entre a retirada de eficácia de uma lei (no controle concentrado) e a suspensão da execução feita pelo Senado em sede de controle incidental ou difuso.
Venia concessa para novamente dizer o óbvio: suspensão de execução de lei não é sinônimo de retirada de eficácia de lei, sob pena de supressão de diferenças entre as formas de controle concentrado e difuso de constitucionalidade.
A suspensão de vigência de lei é atribuição do Poder Legislativo, e não do Poder Judiciário. Este último atua no plano da eficácia, motivo pelo qual a decisão de suspensão de execução da lei não pode ter efeitos retroativos.
Quando a execução de uma lei é suspensa, os efeitos remanescem, diferentemente do que acontece quando uma lei é nula, ou seja, írrita. Se não houvesse tal distinção, seria suficiente que o STF encaminhasse ao Senado a lei que afirmou inconstitucional em sede de controle incidental para que os efeitos fossem idênticos aos de uma ação direta de inconstitucionalidade. Mas não o são, já que até 23.02.2006, data em que finalizado o julgamento do HC 82.959-7/SP, o artigo 2º, § 1º, da Lei n.º 8.072/90 era norma jurídica plenamente vigente e válida.
A decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 82.959/SP ainda causa outros ‘danos’ ao sistema jurídico enquanto ordenamento concatenado e coerente.
A interpretação do STF consagrará um desrespeito à legitimação ativa prevista na Constituição para deflagar-se o procedimento de controle abstrato das normas. Se no artigo 103 da atual Constituição estão previstos os legitimados ativos para a propositura das ADINs e ADECONs, é porque o poder constituinte originário, por seus representantes, não quis que essas espécies de ações fossem ajuizadas por qualquer pessoa do povo. Considerando-se que foi admitido pelo STF a abstração dos efeitos da decisão de caráter difuso (o que equivale aos efeitos das ações de controle concentrado de constitucionalidade), quebrou-se a regra de legitimação.
Qual os benefícios para o ordenamento jurídico em quebrar-se regras de competência estabelecidas constitucionalmente? Contrariar uma norma constitucional, a pretexto de ‘modernidade’, mas com a intenção inequívoca (e não revelada) de somente esvaziar presídios, robustecerá nossas instituições? Concretizará o direito fundamental à segurança que a população tem direito? Hipertrofiar o Poder Judiciário, permitindo ao STF que retire do ordenamento jurídico uma lei elaborada pelo Parlamento, em razão de julgamento em caráter incidental de qualquer processo subjetivo, não será abrir a porta para a tirania dos juízes?
5. CONCLUSÕES ARTICULADAS
1. O artigo 2º, § 1º, da Lei n.º 8.072/90, não padece de qualquer vício de inconstitucionalidade, já que o legislador constituinte deixou ao encargo do legislador ordinário a fixação dos parâmetros de individualização da pena;
2. Não pode o juiz se substituir ao legislador, aquilatando a constitucionalidade de um dispositivo legal pelas suas predileções pessoais sobre a melhor forma de se proceder à reinserção social do condenado;
3. A decisão proferida pelo STF no HC 82.959-7/SP não tem efeito vinculante, pois proferida em sede de controle incidental de constitucionalidade, valendo apenas inter partes;
4. Para que a decisão do STF possa ter eficácia erga omnes, deve ser obedecido o disposto no artigo 52, X, da CF/88;
5. O Senado Federal possui discricionariedade para suspender a execução de ato normativo julgado inconstitucional incidentalmente pelo Supremo Tribunal Federal;
6. O argumento de que houve uma mutação constitucional que tornou possível a extensão de efeitos erga omnes da decisão tomada no HC 82.959-7/SP é um tanto frágil, pois: a) torna o Senado Federal mero divulgador das decisões proferidas em sede de controle incidental pelo STF, o que não se coaduna com a importância dessa Casa Legislativa; b) quebra a coerência interna, funcional, do sistema jurídico constitucional, pois praticamente faz desaparecer as diferenças entre controle concentrado e controle difuso de constitucionalidade; c) ignora que a suspensão de vigência da lei é atribuição do Legislativo, enquanto o Poder Judiciário, no controle difuso, trabalha com a questão da eficácia da lei; d) a suspensão da lei não pode ter efeitos retroativos, pois até a declaração da inconstitucionalidade em controle difuso a norma era válida e eficaz; d) quebra a regra de legitimação do art. 103 da CF/88, permitindo que os efeitos de decisões de processos subjetivos (caráter incidental) sejam equiparados aos das decisões de caráter concentrado de controle da constitucionalidade.