4. Aspectos da tutela antecipada em caráter antecedente
4.1. Petição inicial.
Como é cediço, a jurisdição é inerte, devendo o jurisdicionado provocá-la para obter qualquer provimento. Precipuamente, a retirada da inércia da jurisdição é realizada por meio da petição inicial.
No caso da tutela antecipada antecedente não poderia ser diferente, mas, dada a peculiaridade do procedimento, deve-se destacar alguns pontos relevantes da peça vestibular.
O caput do artigo 303, do CPC, prevê que a referida peça poderá ser apresentada de forma simplificada, podendo o advogado se ater apenas “ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo.”.
Em que pese a possibilidade de sumarizar a exordial, o referido dispositivo não afasta as demais previsões legais, a exemplo do artigo 319, também do Código de Ritos. O artigo regula os requisitos necessários que devem ser observados na peça vestibular, vinculando o advogado também a observá-los quando da formulação do pedido antecedente.
Sobre o tema, diz Elpídio Donizeti19:
[...] a petição que veicula o pedido de tutela antecipada em caráter antecedente deve conter os requisitos do art. 319, uma vez que será essa petição que instaurará a relação processual. O aditamento se restringirá à complementação da argumentação, à juntada de novos documentos e à confirmação do pedido de tutela final (art. 303, § 1º, I). Assim, embora de antemão se preveja o aditamento, a petição deve ser a mais completa possível, com indicação dos requisitos do art. 319.
Todavia, apesar da brecha legal para a apresentação da peça sumarizada, o causídico deve externar inequivocamente ao processo que pretende se valer do referido benefício, nos termos do §5°, do artigo 303. Do contrário, o magistrado deverá se ater à regra processual geral para análise da exordial, haja vista toda a sistemática de autonomia da vontade dos sujeitos processuais que norteia Código de Processo Civil de 2015, incumbindo ao causídico eleger o meio pelo qual pretende satisfazer seu pedido.
Outro relevante ponto é o das despesas processuais para ingresso. Regulado pelos parágrafos 3° e 4°, deverá ser observado pelo demandante como valor da causa os pedidos após o seu devido aditamento, que, ao ser protocolado, não gerará a incidência de novas custas processuais.
4.2. Aditamento da inicial
O aditamento da peça inicial está previsto no inciso I, do §1°, do artigo 303, do Código de Processo Civil, e é o momento em que a parte autora deverá finalizar a exordial, vez que, em teoria, a peça foi apresentada de forma sumarizada. Na oportunidade, o demandante deverá realizar a complementação de sua argumentação, a juntada de novos documentos, caso existentes, e a confirmação do pedido de tutela final.
Ao analisar o aditamento da inicial em conjunto com a sistemática prevista para a tutela antecipada antecedente, constata-se que o dispositivo foi, no mínimo, omisso acerca do momento em que o aditamento deverá ser realizado.
Cumpre ressaltar que uma das benesses pela qual a parte poderá se interessar em utilizar o procedimento estudado é a estabilização da tutela provisória e a sua produção de efeitos.
Como será visto adiante, a única forma da decisão de cognição sumária proferida no procedimento antecedente não estabilizar será em caso da interposição de recurso, conforme consta expressamente na letra fria da lei (art. 304, caput), ressalvando, claro, um eventual pedido de prosseguimento do feito pelo autor.
Ora, se existe a factível possibilidade de a decisão estabilizar, sendo o processo consequentemente extinto (§1°, art. 304), como pode o autor ficar vinculado ao dever de aditar sua peça automaticamente? Tal aditamento parte do pressuposto que a decisão não estabilizou, logo, é necessário que tenha sido levado ao conhecimento do réu o deferimento do pedido, e que este tenha quedado inerte em seu prazo próprio para interposição de recurso.
Como forma de driblar a ilógica sistemática legislativa, José Miguel Garcia Medina20 assim defende:
O prazo de quinze dias dificilmente poderá ser observado pelo juiz, pois inviabiliza a incidência da regra prevista no art. 304. do CPC/2015 (já que o prazo de quinze dias tende a fruir antes de citado o réu). Deverá o juiz fixar outro prazo, maior, ou outro termo inicial (p.ex., dez dias contados da comunicação de que o réu recorreu contra a liminar, inviabilizando a estabilização, cf. art. 304, caput do CPC/2015), como autoriza a parte final do art. 303, § 1.º, I (cf. também art. 139, VI do CPC/2015). Caso o réu não interponha o recurso previsto no art. 304, caput, a tutela antecipada estabiliza-se e a apresentação de pedido principal torna-se, em princípio, desnecessária.
Assim como a grande maioria dos temas que cercam a tutela antecedente, o tema não é pacífico na jurisprudência pátria.
Ressalto, contrapondo o posicionamento adotado pelo nobre professor supradito, o entendimento exarado pela Segunda Turma Julgadora da Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás na Apelação Cível n° 5419755.79.2017.8.09.005121, que sequer entendeu pela necessidade de intimação específica do autor para o aditamento, servindo a mera publicação da decisão que concedeu a tutela antecipada em caráter antecedente suficiente para que o prazo de aditamento comece a correr.
No caso sub examine, era de interesse do autor prosseguir com a ação até a prolação de decisum exauriente, mas, em razão da ausência de interposição de recurso específico e não tendo o autor apresentado o aditamento da inicial no prazo legal, o magistrado de piso entendeu por imperiosa a necessidade de extinguir o feito, tornando estável a liminar antes concedida, sentença esta que foi mantida em sede recursal.
O referido acórdão também aborda outra relevante discussão ainda sobre o aditamento da inicial, que é a de que se o autor poderá, ainda que a tutela tenha estabilizado, postular pela continuidade da ação.
Nas mais diversas oportunidades, o Código de Processo Civil de 2015 prestigia a vontade das partes como um dos baluartes do ordenamento jurídico, logo, põem-se a mesa se a extinção da ação, conforme determina o §1° do art. 304, não poderia ferir o direito constitucional da inafastabilidade da jurisdição, vez que privaria o demandante do prosseguimento da ação.
Em um primeiro luar e exemplificando no direito privado, deve-se sopesar que, em teoria, o procurador do autor detém de conhecimento jurídico suficiente para distinguir as diversas formas com que poderá litigar em favor de seu cliente, elegendo a medida judicial que se adequa a cada situação. Ao escolher a tutela antecedente, resta, por óbvio, ressaltar que houve a aceitação dos termos legais previstos, inclusive referente ao instituto da estabilização da tutela, o que impediria o prosseguimento da ação por seu próprio juízo.
Todavia, encontra guarida na doutrina os que pensam de forma diametralmente oposta. O douto professor Daniel Amorim Assumpção Neves22 sustenta que:
Será inaplicável o art. 304. do Novo CPC se o autor expressar sua vontade de que pretende, além da concessão da tutela antecipada, pronunciamento fundado em cognição exauriente, capaz de gerar coisa julgada material. Contrariar a vontade do autor nesse sentido seria negar o exercício pleno de seu direito de ação, em manifesta violação do princípio da inafastabilidade da jurisdição, consagrada no art. 5°, XXXV, da CF.
Dada a polêmica do caso, faz-se necessário refletir: a perseguição da coisa julgada material não deveria ter sido valorada pelo causídico quando do protocolo da ação? Ao aceitar as normas que regulam o instituto da forma antecedente, o sujeito não estaria vinculado a um rito processual que ele próprio se submeteu?
Ao sentir do nobre doutrinador, não. Ainda que separando dois momentos para a expressão da vontade do autor, sendo um no protocolo da ação e outro na oportunidade de aditamento após a definitividade da decisão, o professor Daniel entende pela viabilidade de um eventual pedido de continuação da ação feito pelo demandante, ignorando-se a possível confiança do réu na estabilidade da decisão proferida, vez que o deslinde do processo com a sua consequente decisão em caráter exauriente poderá dar outras nuances para a lide, formando, ao final, coisa julgada material.
Corroborando, em parte, com o entendimento acima exposto, Marcus Vinicius Rios Gonçalves23 não diferencia em dois momentos para a exposição do autor, entendendo pela possibilidade de prosseguimento da ação sem a aplicação da estabilização apenas por vontade do demandante, desde que tal opção conste expressamente na peça de ingresso da ação. Não constando a vontade do autor, será necessário verificar qual foi a atitude do réu, prosseguindo-se o feito para a estabilização em caso de inércia, ou mesmo para a continuação da ação, com o seu consequente aditamento e instrução, caso tenha sido interposto recurso.
4.3. A coisa julgada e a estabilização na tutela antecipada antecedente
Aprofundando no estudo da tutela provisória antecipada antecedente, faz-se necessário enquadrar a estabilização prevista no artigo 304 dentro dos conceitos utilizados pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Preambularmente, insta salientar que a coisa julgada está alocada como um direito e garantia fundamental na Constituição Cidadã, que, objetivando a proteção da definitividade de decisão judicial da qual não exista mais recurso passível, prevê a impossibilidade de até mesmo lei posterior retroagir em seu desfavor (inciso XXXVI, artigo 5°).
Conforme bem elabora Marcus Vinicius24, “a função da coisa julgada é assegurar que os efeitos decorrentes das decisões judiciais não possam mais ser modificados, se tornem definitivos. É fenômeno diretamente associado à segurança jurídica, quando o conflito ou a controvérsia é definitivamente solucionado.”.
Contudo, ao analisar o microssistema processual da tutela antecipada antecedente, verifica-se que a ele carece a modalidade material da coisa julgada, uma vez que a decisão proferida se amparou em cognição sumária, havendo a expressa previsão legal nesse sentido (§6°, art. 304, CPC).
Para alcançar os efeitos da coisa julgada material, quais sejam a imutabilidade e indiscutibilidade, é imprescindível que a apreciação dos fatos seja realizada em caráter exauriente da matéria, logo, não sendo o caso, revela-se que a sentença de extinção prevista no §1°, do artigo 304, do CPC, englobará apenas a modalidade formal da coisa julgada, findando, exclusivamente naquele feito, a discussão da matéria.
Como forma de distinguir a citada extinção, e justificando a sua característica sui generis, Elpídio Donizeti 25 pontua:
Não se trata de extinção com resolução de mérito, pois não há qualquer pronunciamento sobre o mérito da causa, muito menos declaração sobre a causa de pedir (fatos e a respectiva valoração deles), essa sim com aptidão para gerar coisa julgada material. Também não se trata de extinção sem resolução do mérito, uma vez que o processo ultrapassou a fronteira da análise dos requisitos do processo. Os requisitos para o exame do mérito foram apreciados antes da análise do pedido de tutela antecipada e encontravam-se presentes, caso contrário, não se chegaria ao deferimento do pedido de antecipação de tutela.
Decorre logicamente da argumentação elaborada a ideia de que, não sendo pertencente à modalidade antecipada antecedente a característica da coisa julgada material, esta não estará salvaguardada pela possibilidade de ação rescisória, sendo tal entendimento, inclusive, exarado pelo Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), que em seu Enunciado n° 3326 afasta a aplicação da sistemática da rescisória frente a estabilização da tutela provisória prevista no artigo 304.
Pois bem, a via possível de se reabrir a discussão acerca da decisão estabilizada foi incluída pelo próprio legislador no texto legal, que no §2°, do artigo 304, previu de forma genérica a possibilidade de ação para revisão, reforma ou invalidação do ora decidido, tendo sido apenas incluído no §5° o prazo no qual a decisão está sujeita a rediscussão.
O prazo fixado foi de dois anos, a contar da ciência da decisão que extinguiu o processo, e deve ser classificado como decadencial27, observando-se as regras atinentes a tal definição.
Enquanto não manejada a ação própria de reavaliação, a tutela estabilizada produzirá seus regulares efeitos. Na visão do professor Marcus Vinícius28, a estabilidade ainda “impede o juiz de, a qualquer tempo, revogar, modificar ou invalidar a medida, como ocorre quando há processo em curso.”
Paira dúvida ainda, nas páginas da boa doutrina e na cabeça dos operadores do Direito, acerca do que resultaria da tutela estabilizada após os dois anos sem que seja realizado a sua rediscussão por meio de ação própria.
Parece, em um primeiro momento, uma conduta temerária afirmar que o decisum seria revestido de coisa julgada material, imbuindo-se pela imutabilidade e indiscutibilidade, vez que sua cognição se limitou a probabilidade do direito.
Além de suscitar uma possível ilegitimidade constitucional, Marinoni, Arenhart e Mitidiero 29aduzem que:
...a estabilização da tutela antecipada antecedente não pode lograr a autoridade da coisa julgada – que é peculiar aos procedimentos de cognição exauriente. Passado o prazo de dois anos, continua sendo possível o exaurimento da cognição até que os prazos previstos no direito material para a estabilização das situações jurídicas atuem sobre a esfera jurídica das partes (por exemplo, a prescrição, a decadência e a supressio).
No sentido apresentado, seria como afirmar que o prazo a que se refere o §5°, do artigo 304, é inócuo, vez que a revisão da situação fática poderia ser realizada a qualquer tempo, devendo ser observado pela autoridade judicante apenas as questões periféricas ao caso tutelado, tais como a prescrição e decadência.
Dado a ainda recente vigência do Novo Código, é tímida a jurisprudência acerca da referida situação, mas para a doutrina, há forte corrente30 que defende a existência da figura da superestabilização, também chamada de estabilidade qualificada, que pode ser definida como a indiscutibilidade da tutela após o prazo de dois anos, ressaltando também a acanhada militância que defende o uso da ação rescisória após esse prazo, via intepretação ampliativa do §2°, do artigo 966, do CPC.
4.4. Aplicação da técnica de monitorização do processo a tutela estabilizada
O procedimento da tutela provisória antecipada antecedente, ao proporcionar ao réu a liberdade de escolher em prosseguir com a ação, apresentando o devido recurso, ou acatar a decisão na forma lançada, utiliza-se do chamado contraditório eventual, ficando a cargo do sujeito a ponderação dos riscos de um eventual prosseguimento da ação.
Tal utilização é, de certa forma, semelhante a técnica usada na chamada ação monitória, prevista no artigo 700 e seguintes do Código de Processo Civil.
A ação monitória é o meio processual legítimo para aquele que não detém de título executivo, seja ele judicial ou extrajudicial, mas, estando em posse de prova escrita, pretende exercer seu direito de exigir o cumprimento de obrigação a outrem.
Proposta a ação monitória, e entendendo o magistrado pela validade do documento escrito apresentado, ao réu será dado prazo para pagamento da quantia ou cumprimento da obrigação. Na oportunidade, poderá ele exercer efetivamente o contraditório, que antes era eventual, com o oferecimento de embargos monitórios, prosseguindo-se o processo para julgamento. Não sendo oferecidos embargos, o título, que antes era precário, será constituído de pleno direito.
Haja vista a omissão do texto legal dos artigos 303 e 304, e também que tanto a tutela antecipada antecedente quanto a ação monitória utilizam-se do contraditório eventual, existe na doutrina uma forte corrente que opina pelo uso de certos dispositivos da monitória de forma analógica no procedimento da estabilização.
Assim entendem Fredie Didier Jr., Paulo Braga e Rafael Alexandria 31:
O modelo da ação monitória (arts. 700. a 702, CPC) deve ser considerado o geral - é possível, inclusive, pensar em um microssistema de técnica monitória, formado pelas regras da ação monitória e pelos arts. 303. a 304 do CPC, cujos dispositivos se complementam reciprocamente. A dúvida que surge é a seguinte: há vantagem para o réu em permanecer silente, no caso da estabilização da tutela antecipada? Sim, há: diminuição do custo do processo. Por não opor resistência, não pagará as custas processuais (aplicação analógica do disposto no §1° do art. 701. do CPC) e pagará apenas 5% de honorários advocatícios de sucumbência (art. 701, caput, CPC, também aplicado por analogia).
Como já abordado, o texto legal que rege a estabilização conta com diversos problemas e omissões, logo, objetivando alcançar a segurança jurídica, os referidos autores viram por bem adotar as nuances da técnica monitória por analogia, principalmente no que tange à honorários sucumbenciais e custas judiciais, ante a ausência de regulamentação quanto aos pontos.
4.6. A relativização da palavra recurso do artigo 304.
Em linhas gerais, a estabilização da tutela provisória já parece demasiadamente complicada quando se realiza uma análise aprofundada do texto legal introduzido pelos artigos 303 e 304, que, como visto, não colaboram com o bom funcionamento do Poder Judiciário, uma vez que os órgãos judicantes acabam ocupando-se em suprir omissões e decidir contradições de uma norma jurídica atécnica.
Não obstante a situação fática, emanou-se do Superior Tribunal de Justiça dois entendimentos divergentes quanto a um dos poucos pontos em que o texto legal foi claro.
Depreende-se de forma literal do artigo 304 que a maneira de obstar a estabilização da decisão que concedeu uma tutela antecipada antecedente (art. 303) é por meio da interposição de recurso, correspondido ao agravo de instrumento, em caso de primeiro grau de jurisdição (inciso I, do artigo 1.015), ou agravo interno, sendo uma decisão monocrática.
Todavia, em nova oportunidade, não há consenso quanto a referida interpretação.
4.6.1. A interpretação encabeçada pelo REsp 1.760.966/SP
O Superior Tribunal de Justiça, por meio do acórdão proferido no REsp 1.760.966/SP sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, acompanhou parte da doutrina que se posiciona no sentido de que a mera demonstração de irresignação pelo requerido, ou mesmo quando atestado seu interesse em ser proferido decisum exauriente, são suficientes para obstarem a estabilização da tutela, na forma prevista no artigo 304, caput, do Código de Processo Civil, recebendo a seguinte ementa:
RECURSO ESPECIAL. PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA REQUERIDA EM CARÁTER ANTECEDENTE. ARTS. 303. E 304 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU QUE REVOGOU A DECISÃO CONCESSIVA DA TUTELA, APÓS A APRESENTAÇÃO DA CONTESTAÇÃO PELO RÉU, A DESPEITO DA AUSÊNCIA DE INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRETENDIDA ESTABILIZAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA. IMPOSSIBILIDADE. EFETIVA IMPUGNAÇÃO DO RÉU. NECESSIDADE DE PROSSEGUIMENTO DO FEITO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
1. A controvérsia discutida neste recurso especial consiste em saber se poderia o Juízo de primeiro grau, após analisar as razões apresentadas na contestação, reconsiderar a decisão que havia deferido o pedido de tutela antecipada requerida em caráter antecedente, nos termos dos arts. 303 e 304 do CPC/2015, a despeito da ausência de interposição de recurso pela parte ré no momento oportuno.
2. O Código de Processo Civil de 2015 inovou na ordem jurídica ao trazer, além das hipóteses até então previstas no CPC/1973, a possibilidade de concessão de tutela antecipada requerida em caráter antecedente, a teor do que dispõe o seu art. 303, o qual estabelece que, nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, a petição inicial poderá se limitar ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo.
2.1. Por essa nova sistemática, entendendo o juiz que não estão presentes os requisitos para a concessão da tutela antecipada, o autor será intimado para aditar a inicial, no prazo de até 5 (cinco) dias, sob pena de ser extinto o processo sem resolução de mérito. Caso concedida a tutela, o autor será intimado para aditar a petição inicial, a fim de complementar sua argumentação, juntar novos documentos e confirmar o pedido de tutela final. O réu, por sua vez, será citado e intimado para a audiência de conciliação ou mediação, na forma prevista no art. 334. do CPC/2015. E, não havendo autocomposição, o prazo para contestação será contado na forma do art. 335 do referido diploma processual.
3. Uma das grandes novidades trazidas pelo novo Código de Processo Civil é a possibilidade de estabilização da tutela antecipada requerida em caráter antecedente, instituto inspirado no référé do Direito francês, que serve para abarcar aquelas situações em que ambas as partes se contentam com a simples tutela antecipada, não havendo necessidade, portanto, de se prosseguir com o processo até uma decisão final (sentença), nos termos do que estabelece o art. 304, §§ 1º a 6º, do CPC/2015.
3.1. Segundo os dispositivos legais correspondentes, não havendo recurso do deferimento da tutela antecipada requerida em caráter antecedente, a referida decisão será estabilizada e o processo será extinto, sem resolução de mérito. No prazo de 2 (dois) anos, porém, contado da ciência da decisão que extinguiu o processo, as partes poderão pleitear, perante o mesmo Juízo que proferiu a decisão, a revisão, reforma ou invalidação da tutela antecipada estabilizada, devendo se valer de ação autônoma para esse fim.
3.2. É de se observar, porém, que, embora o caput do art. 304 do CPC/2015 determine que "a tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso", a leitura que deve ser feita do dispositivo legal, tomando como base uma interpretação sistemática e teleológica do instituto, é que a estabilização somente ocorrerá se não houver qualquer tipo de impugnação pela parte contrária, sob pena de se estimular a interposição de agravos de instrumento, sobrecarregando desnecessariamente os Tribunais, além do ajuizamento da ação autônoma, prevista no art. 304, § 2º, do CPC/2015, a fim de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada.
4. Na hipótese dos autos, conquanto não tenha havido a interposição de agravo de instrumento contra a decisão que deferiu o pedido de antecipação dos efeitos da tutela requerida em caráter antecedente, na forma do art. 303. do CPC/2015, a ré se antecipou e apresentou contestação, na qual pleiteou, inclusive, a revogação da tutela provisória concedida, sob o argumento de ser impossível o seu cumprimento, razão pela qual não há que se falar em estabilização da tutela antecipada, devendo, por isso, o feito prosseguir normalmente até a prolação da sentença. 5. Recurso especial desprovido.
(STJ – Resp: 1760966 SP 2018/0145271-6, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 04/12/2018, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/12/2018)
O caso em apreço tratava de ação cuja requerida antecipou-se na apresentação de contestação, porém, não interpôs, a tempo e a modo, agravo de instrumento em face da decisão de primeiro grau. Com a manifestação, o magistrado de piso viu por bem revogar a decisão, por razões atinentes ao mérito da ação. Por conseguinte, a parte requerente manejou agravo de instrumento, postulando pela declaração de estabilização da tutela antes deferida, vez que a parte demandada não se ateve ao caput do artigo 304.
No voto, o exímio Ministro entendeu que “... a leitura que deve ser feita do dispositivo legal, tomando como base uma interpretação sistemática e teleológica do instituto, é que a estabilização somente ocorrerá se não houver qualquer tipo de impugnação pela parte contrária.”.
A referida interpretação se limita a explanar que, havendo interesse do réu em se contrapor ao decisum proferido, este poderá externar sua vontade por qualquer via, desde que pugne pelo prosseguimento do feito, não existindo, portanto, eventual requisito processual ou meio adequado para demonstrar sua irresignação.
Em consenso com a referida jurisprudência, Eduardo Lamy32 assim declarou:
Detém o requerido o direito de ver acertada juridicamente a crise de direito material instaurada de forma definitiva. Por isso, depender da interposição de um recurso para o exercício de um direito constitucional parece indevido, eivando de inconstitucionalidade a leitura literal da expressão “respectivo recurso” do art. 304. se entendida exclusivamente como o agravo de instrumento. Recurso é ônus e não obrigação processual com vistas ao exercício do direito de defesa; não há interpretação do devido processo legal que suporte a interpretação literal do dispositivo.
O posicionamento elencado também é adotado por outros grandes nomes do direito brasileiro, tais como Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga, Rafael Alexandria de Oliveira33, Marcus Vinicius Rios Gonçalves34 e Daniel Amorim Assumpção Neves35.
Pedindo vênias às posições contrárias, o presente trabalho visa expor razões para a desconstituição de tal entendimento, vez que está contra legem.
4.6.2. Do ônus recursal incumbido ao requerido pelo texto legal. Precedente do REsp 1.797.365/RS.
Uma vez trazido à baila os sempre convincentes argumentos da existência de inconstitucionalidade por ferir nortes principiológicos trazidos pela Carta Magna de 1988, tais como o acesso a justiça e a indeclinabilidade da jurisdição, que, no presente caso, cumpre função de mero desvio improdutivo para o debate público, não sendo a constitucionalidade o real intento, uma vez que serve apenas fundamento para aqueles que estão descontentes com a vigência de regramento legal (favorecendo, ainda, que arbitrariedades sejam cometidas), é necessário pontuar acerca da intenção do legislador com a vigência do caput do artigo 304, do Código de Processo Civil.
Da leitura da letra fria da lei, constata-se que sequer é necessário aprofundar-se nas teorias interpretativas que se desdobram no campo da Hermenêutica Jurídica, vez que é de uma clareza solar que, para obstar a estabilização da tutela, é incumbido ao réu a interposição de recurso.
Acerca do tema, o professor Elpídio Donizetti36 dessa forma entendeu:
A mens legislatoris é no sentido de exigir o recurso como forma de evitar a estabilização. Trata-se de um ônus imposto ao demandado. Não basta contestar. É certo que na contestação o réu adquire a prerrogativa de ver a demanda decidida levando-se em conta também as suas alegações. Ocorre que na ponderação dos princípios da amplitude do direito de ação e da defesa, bem como do princípio da celeridade, o legislador optou por este, de sorte que, não obstante a apresentação de contestação, o processo será extinto (art. 304, § 1º).
Quer seja pelo uso do verbo interpor, que nos remete a apresentação de irresignação a instância superior, quer seja pelo uso da palavra recurso, sendo esta uma das formas de apresentação de irresignação do réu, o dispositivo é claro ao induzir que a decisão concessiva deveria ser levada a um reexame pelo órgão judicante competente. Não se mostra razoável que, apenas pelo fato de não achar correta a forma com que foi elaborado o texto legal, exista a relativização de norma cogente.
Atribuindo a lei uma incumbência, esta deverá ser cumprida em seus ulteriores termos, devendo responder pelo prejuízo, quando inerte, aquele que deveria ter realizado a diligência. Neste presente caso, o prejuízo seria a estabilização da tutela deferida com a consequente extinção do feito.
A jurisprudência pátria que justifica a aceitação de outra manifestação além de recurso (REsp 1.760.966/SP) foi devidamente enfrentada, de forma esclarecedora, também pelo professor Elpídio Donizetti37, nesses termos:
Os fundamentos constantes no voto do relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, (estímulo à interposição de agravos de instrumento e de ajuizamento de ação revisional) poderiam até servir de justificativas para um projeto de lei, mas jamais para ler branco onde preto é. Ao seguir a toada ditada pelo Judiciário, seria de se editar uma lei, com artigo único, dispondo que, no Brasil, adota-se integralmente o sistema da Common Law. Em país que adota o sistema legislado, concorde ou não com a lei, há que obedecê-la. Os precedentes deveriam consistir na interpretação e aplicação da lei sobre determinadas hipóteses. Mas o que vivenciamos é um afastamento do sistema legislado.
Acompanhando in totum o entendimento do autor, a posição exarada no presente trabalho é a de que, ainda que respeitando os posicionamentos diversos, é demasiadamente perigoso para o Estado Democrático de Direito a reinterpretação do espírito da lei ao bel prazer.
O que deve prevalecer é, sem dúvidas, a regra escrita.
A ideia de existência de uma suposta inconstitucionalidade, como alegada por Eduardo Lamy, deve adentrar nos átrios forenses apenas por meios legítimos para desta conhecer, utilizando-se das ferramentas do controle difuso e controle concentrado de constitucionalidade, não devendo esta ser presumida por opção interpretativa, como quer o autor.
Aclarando o tema, sobreveio o REsp n° 1.797.365/RS, julgado pela Primeira Turma do STJ, que teve como relator o Ministro Sérgio Kukina e voto vencedor o prolatado pela Ministra Regina Helena Costa, sendo assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL. ESTABILIZAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA CONCEDIDA EM CARÁTER ANTECEDENTE. ARTS. 303. E 304 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. NÃO INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRECLUSÃO. APRESENTAÇÃO DE CONTESTAÇÃO. IRRELEVÂNCIA.
I – Nos termos do disposto no art. 304. do Código de Processo Civil de 2015, a tutela antecipada, deferida em caráter antecedente (art. 303), estabilizar-se-á, quando não interposto o respectivo recurso.
II – Os meios de defesa possuem finalidades específicas: a contestação demonstra resistência em relação à tutela exauriente, enquanto o agravo de instrumento possibilita a revisão da decisão proferida em cognição sumária. Institutos inconfundíveis.
III – A ausência de impugnação da decisão mediante a qual deferida a antecipação da tutela em caráter antecedente, tornará, indubitavelmente, preclusa a possibilidade de sua revisão.
IV – A apresentação de contestação não tem o condão de afastar a preclusão decorrente da não utilização do instrumento proessual adequado – o agravo de instrumento.
V – Recurso especial provido.
(STJ – REsp: 1797365 RS 2019/0040848-7, Relator: Ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Julgamento: 03/10/2019, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/10/2019 RB vol. 662. p. 229).
No caso em comento, a excelentíssima ministra divergiu do voto do ministro relator, que havia seguido o caminho jurisprudencial aberto pela Terceira Turma no REsp 1.760.966/SP.
Por sua maioria, restou entendido que a via processual necessária para obstar a estabilização da tutela é a interposição de recurso, tal como descrito em lei.
Peço novas vênias para colacionar parte do voto proferido:
Outrossim, conforme apontado pelo Sr. Ministro Benedito Gonçalves, na sessão de 03.10.2019, da consulta ao sítio do Senado Federal na internet extrai-se que o anteprojeto do Código de Processo Civil de 2015 estabelecia no § 2º do seu art. 288:
§ 2º Concedida a medida em caráter liminar e não havendo impugnação, após sua efetivação integral, o juiz extinguirá o processo, conservando a sua eficácia.
Verifica-se, assim, que, durante a tramitação legislativa, optou-se por abandonar expressão mais ampla – "não havendo impugnação" (sem explicitação do meio impugnativo) – e a Lei n. 13.105/2015 adveio contendo expressão diversa – "não for interposto o respectivo recurso".
Ao pontuar especificamente sobre a vontade da lei, de forma brilhante a ministra se atentou ao fato de que a expressão “não havendo impugnação” foi retirada da minuta do Novo Código de Processo Civil, prevalecendo, com a vigência do texto legal, a expressão “interposto o respectivo recurso”.
O voto proferido também entra em consenso com a lição de Alexandre Câmara38. Quando colocado para desmistificar o artigo 304, do CPC, o nobre professor realizou uma minuciosa análise da etimologia da palavra recurso empregada no Novo Código de Processo Civil, tendo sido concluído que, neste caso, é imperiosa a necessidade de afastar qualquer interpretação diversa, uma vez que o texto legal é taxativo em fazer referência a uma espécie de impugnação que deve ser manejada, não enquadrando-se como simples demonstração de irresignação.