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Análise econômico-marxista do direito: os donos das leis

Agenda 08/01/2022 às 09:00

O direito pode ser entendido sob o ponto de vista marxista e as suas análises, ao nosso ver, apresentam os entendimentos mais completos que possam existir sobre o fenômeno jurídico.

A união da abordagem sociológica, com uso do método histórico-dialético de tendência frankfurtiana, como orientação teórica para o Direito, se torna perfeitamente pertinente na medida em que, neste, o elemento social é elucidado como um fator intrínseco. Consoante Antonio Candido, acreditamos que o externo se torna interno, ou seja, o meio se torna parte integrante (CANDIDO, 1967, p. 4): isso significa dizer que a sociedade se torna parte integrante do Direito. A ação do Direito depende da ação da sociedade, produzindo sobre os cidadãos um efeito jurídico, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentido dos valores sociais. O Direito é a expressão da sociedade, muda com ela, e é a expressão de um vínculo entre as relações sociais de determinado período histórico, lugar e cultura.

Muito associada à linha histórica está uma das concepções mais marcantes da cultura ocidental: o marxismo. Este sistema teórico, composto por um conjunto de teses sociais, econômicas e políticas que emergem das obras de Karl Marx e Frederich Engels, propõe, dentre outras coisas, que o mundo seja repensado dentro de um quadro mais abrangente de relações históricas (MARX; ENGELS, 1980, p. 12). Neste sentido, acreditamos que qualquer separação entre a formação da consciência humana e o processo histórico se aproxima de uma falácia ideológica.

Isto significa que o Direito deve ser compreendido ligado a um processo mais abrangente, o que consiste, de acordo com G. Lukács, na existência de uma visão dialética capaz de identificar as contradições intrínsecas aos processos sociais e às realizações singulares (LUKÁCS, 1965, p. 13). Torna-se impossível, portanto, tentar compreender o desenvolvimento do Direito apenas em suas particularidades, suas conexões imanentes. Elas são importantes sim, mas para integrar o todo histórico, no qual o fator econômico se sobressai.

Falar em marxismo, hoje em dia, torna-se perigoso. As primeiras associações que se estabelecem sobre essa filosofia são as da velha tendência que sistematizava, de forma rígida e fechada, os pontos de vista marxistas (LUKÁCS, 1965, p. 6). Ou seja, relaciona-se, imediatamente, o marxismo à ortodoxia. Esta está ligada a um pensamento fechado, dogmático, engessado, que não se renova, baseada nos textos clássicos, digamos assim, enquanto que o ideal é a pessoa estar aberta à evolução das ideias.

Marxismo ortodoxo seria, assim, um pensamento relativo ao método, segundo Lukács. O horizonte de análise seria o materialismo-histórico dialético: uma compreensão dialética da realidade e uma análise do fundamento do ser social que é materialista e histórica. Dentro desse materialismo-histórico, compreende-se que o real está sempre em transformação, em movimento, transformando-se; a teoria, necessariamente, precisa se transformar para acompanhar esse movimento da realidade. A partir do núcleo do materialismo-histórico, teríamos três aspectos básicos: a) a defesa da revolução enquanto superação das contradições sociais em que vivemos; b) a compreensão de que o elemento fundamental da sociedade é a luta de classes, é o conflito social; c) e a defesa de uma perspectiva materialista isso significa dizer que não é a consciência que determina o ser social, mas o contrário: o ser social determina as suas consciências pelas formas como produzem e reproduzem a vida.

Distanciando-se da ortodoxia, consideraríamos, neste momento, que, embora o mundo ainda seja capitalista apenas com a atualização para neoliberalismo , os modos de produção não são mais os mesmos que os da época de Marx. Para se ter uma ideia, a Empresa Norte-Americana UBER conseguiu inventar uma nova forma de exploração do trabalhador com os seus aplicativos. Tentava ela iludir o trabalhador, fazendo com que ele mesmo não acreditasse que estava vivendo uma forma de exploração de seu trabalho ao acreditar que não havia vínculo trabalhista entre a sua função de motorista e a empresa UBER. Ou seja: os tempos são outros e é preciso se atualizar o marxismo à luz dos nossos modos de produção atuais. É por isso que não acreditamos na eficácia do marxismo ortodoxo para os dias atuais. É por isso também que não acreditamos mais ser possível uma revolução para a superação das contradições sociais em que vivemos; embora estejamos convictos da compreensão de que o elemento fundamental da sociedade é o conflito social e que não é a consciência que determina o ser social, mas o contrário: o ser social determina as suas consciências pelas formas como produzem e reproduzem a vida. Neste sentido, o Direito pode ser entendido sob o ponto de vista marxista e as suas análises, ao nosso ver, apresentam os entendimentos mais completos que possam existir sobre o fenômeno jurídico.

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Vale lembrar que o marxismo surge da fusão seletiva entre o patrimônio cultural existente e a intervenção política do proletariado. Na primeira metade do século XIX, a sociedade europeia vive uma explosão de fatos - a herança ideológica da Revolução Francesa e as insurreições proletárias de 1848 - decisivos para a elaboração do pensamento marxista. Trata-se de um entendimento da realidade de forma racional, de um encon tro entre o universo da cultura e o universo do trabalho (PAULO NETTO, 1985).

Em trecho famoso de Karl Marx e Friedrich Engels, a base do pensamento marxista é a de:

individuos determi nados, que como produtores atuam de um modo também determinado, estabelecem entre si relações sociais e políticas determinadas. É preciso que, em cada caso particular, a observação empírica coloque necessariamente em relevo - empiricamente e sem qualquer especulação ou mistificação - a conexão entre a estrutura social e política e a produção (MARX; ENGELS, 1986, p. 35).

Assim, a realidade não pode ser entendida sem que o homem seja analisado dentro de um macrossistema. Trata-se de uma visão da evolução histórica dentro de um contexto econômico da sociedade. Esse contexto econômico envolve as transformações dos modos de produção, as classes sociais oriundas dessas mudanças, bem como da luta entre essas mesmas classes como bem já assinalamos anteriormente. Sobre este modo de entendimento marxista, Engels e Marx esclarecem que:

a concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas, é deter minada pelo que a sociedade produz e como produz e pelo modo de trocar os seus produtos (MARX; ENGELS, 1975, p. 44).

Neste sentido, as causas das transformações sociais, políticas e históricas operadas na sociedade devem ser procuradas nas mudanças ocorridas no modo de produção e de trocas, ou seja, na economia em especial. Isto porque a estrutura econômica da sociedade é a verdadeira base da sociedade, é o alicerce sobre o qual se ergue a superestrutura jurídica e política. Leandro Konder bem lembra que:

as ideias nunca podem, por si mesmas, superar um deter minado estado de coisas: podem apenas superar as ideias desse estado de coisas. Ideias superam ideias e não, automa ticamente, situações materiais. As ideias nunca podem realizar nada (...), pois para a realização das ideias é preciso que os homens ponham em ação uma força prática (KONDER, 1981, p. 61).

A título de exemplo, podemos lembrar os fatores históricos decisivos para a explicação do nosso desenvolvimento tardio: a escravidão, quando os donos dos meios de produção eram os senhores de engenho e a mão-de-obra escrava era a dos negros; no período colonialista, quando os donos dos meios de produção eram os colonizadores e a mão-de-obra explorada era a dos colonos; e a eterna dependência econômica entre os países desenvolvidos e os subdesenvolvidos, sendo aqueles os donos dos meios de produção, e estes, os fornecedores de mão-de-obra barata e matéria-prima. O desenvolvimento da política e do direito se deram de acordo com o momento econômico brasileiro. Na época da escravidão, o maior exemplo disso era a licitude da escravidão de pessoas negras porque convinha para a economia. Com o tempo, o modo de produção muda e surgem as leis para a libertação dos negros.

O materialismo dialético vem somar-se ao materialismo histórico. Trata-se do aspecto do marxismo que mais é devedor da tradição filosófica ocidental, em particular do hegelianismo. É uma espécie de filosofia do marxismo, que apresenta uma visão do mundo:

um corpo de teoria considerado como verdadeiro em relação à realidade concreta como um todo, e concebido, em certo sentido, como científico, como uma espécie de "filosofia natural" que generaliza as descobertas das ciências específicas (ao mesmo tempo que nelas se apóia) em seu avanço para a maturidade, entre as quais está a ciência social do materialismo histórico (BOTTOMORE, 1983, p. 258).

O materialismo dialético pressupõe a existência de uma unidade entre a matéria e o ideal. Entretanto, eles são opostos e a matéria é primordial para essa unidade. O espírito depende da matéria para existir, origina-se dela, mas o inverso não ocorre.

Leandro Konder explica que Marx baseia-se em Hegel para formular o seu método dialético. Assim: na vida, a contradição não é a mera manifestação de um defeito: é uma realidade que não se pode suprimir. Determinadas contradições surgem, outras desaparecem (são superadas), mas há sempre algumas contradições pendentes de solução" ((KONDER, 1981, p. 56): "para Marx, a vida, na sociedade capitalista, apresenta numerosas contradições. A principal delas, porém, aquela que afeta de maneira mais constante e socialmente mais decisiva a existência dos indivíduos é a contradição entre o trabalho e o capital, quer dizer, entre o proletariado e a burguesia" (KONDER, 1981, p. 58).

Uma das orientações indispensáveis à concepção marxista da história é a que se refere à história das ideologias. Para K. Marx e F. Engels, segundo G. Lukács:

o materialismo histórico reconhece ainda neste ponto, em franca oposição ao marxismo vulgar - que o desenvolvimento das ideologias não acompanha mecanicamente e nem segue "pari passu" o grau de desenvolvimento econômico da sociedade. Na história da humanidade, sob o comunismo primitivo e sob a divisão da sociedade em classes, a respeito da qual escreveram Marx e Engels, não é de maneira alguma necessário que a cada florescimento econômico e social que corresponda infalivelmente um florescimento da literatura e da arte, da filosofia, etc.; não é absolutamente simétrica que uma sociedade mais evoluída socialmente possua uma lite ratura, uma arte, uma filosofia infalivelmente mais evoluída do que as de uma sociedade com nível inferior de progresso (LUKÁCS, 1965, p. 17).

Por isso que a relação entre a infra e a superestrutura é assimétrica, segundo Karl Marx. Aqui concluímos que um Estado pode ser altamente desenvolvido, tecnologicamente, como os EUA, mas não possuir um progresso jurídico equivalente, como a existência de pena de morte em alguns de seus Estados. Assim, por mais que uma sociedade evolua tecnicamente, o desenvolvimento de sua cultura jurídica não é sempre diretamente proporcional a essa evolução. Por exemplo, nos dias de hoje, José William Vesentini e outros falam em Terceira Revolução Industrial, ou Revolução Técnico-Científica, com o predomínio da informática, da robótica, evolução genética etc. (VESENTINI, 1999, p. 142). Isto não significa que a população também passe por um processo de transformação, com todos se adaptando facilmente às referidas mudanças e, por conseguinte, aprimorando o seu conhecimento cultural. Essas mudanças ocorrem em regiões isoladas de países desenvolvidos.

Dessa forma, a hipótese basilar deste trabalho pauta-se na concepção marxista de que as relações sociais de produção determinam, contraditoriamente, a constituição dos indivíduos. O homem possui características determinadas coletivamente, sendo este coletivo exposto pela ideologia dominante como a totalidade social. Sabendo que esta totalidade é falsa, a constituição humana é ideológica, haja vista que a coletividade também o é.

Por conseguinte, o Direito é determinado por interesses de classes dominantes que imporão as leis a depender de suas conveniências. Cabe aos doutrinadores contribuírem para mudar essa postura.


REFERÊNCIAS

BOTTOMORE, Tom (org.). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 2.ed. São Paulo: Nacional, 1967.

KONDER, Leandro. Marx: vida e obra. 4.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

LUKÁCS, G. Ensaios sobre Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

MARX, K.; ENGELS, F. Sobre Literatura e a Arte. 2.ed. São Paulo: Global, 1980.

______. A Ideologia Alemã. 5.ed. São Paulo: HUCITEC, 1986.

______. Textos. Sâo Paulo: Edições Sociais, 1975.

PAULO NETO, J. O que é Marxismo? São Paulo: Brasiliense, 1985.

VESENTINI, José William. A revolução técnico-científica. Sociedade e Espaço: geografia geral e do Brasil. 30.ed. São Paulo: Ática, 1999. pp. 140-153.

Sobre a autora
Ana Clara de Melo

Doutora em Letras. Graduação em Direito e Letras. Especialista em Educação em Direitos Humanos, Métodos Adequados de Solução de Conflitos, Gestão Tributária e Empresarial. Professora de Direito Constitucional. Escritora e Pesquisadora. Assessora e Consultora Acadêmica. Advogada. @ana.claradv

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Ana Clara. Análise econômico-marxista do direito: os donos das leis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6765, 8 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95560. Acesso em: 21 nov. 2024.

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