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Concubinato adulterino:

uma entidade familiar a ser reconhecida pelo Estado brasileiro

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Agenda 23/03/2007 às 00:00

3 DA PLURALIDADE FAMILIAR PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A evolução das constituições brasileiras nos informa que, por muito tempo, o modelo estatal de família tinha o formato de um casamento. Na própria Constituição de 1824, embora implicitamente, o Império, adotando a religião católica apostólica romana, reconhecia o casamento religioso constituinte da família (art. 5.º).

Já nessa época, o patriarcalismo era vigente, havendo concentração exacerbada de poderes nas mãos do cônjuge varão, que detinha controle sobre o cônjuge virago e sobre a prole, que faziam parte de seu patrimônio — era o pater familia romano. Eram tempos em que a mulher era criada para ser submissa ao marido; e o homem, o provedor da família. A finalidade familiar, por excelência, era econômica, embora a família manifestasse uma representatividade religiosa, política e procracional.

À sua vez, a Constituição de 1891 traçou em seu art. 72, § 4.º, que "A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita". Quer dizer, a primeira Carta de Direitos da República brasileira colocou explicitamente o casamento civil como sinônimo de família. E diante dessa visão transpessoal da família como instituição econômica, veio a lume o Código Civil de 1916.

O Texto Civil de 1916 era cheio de normas de exclusão. Outra coisa não podíamos esperar, tendo em vista que o próprio Estado oprimia toda e qualquer relação que não se concebesse pelo casamento válido e indissolúvel. Consentia o Diploma Civil com que a mulher casada fosse considerada relativamente incapaz, sendo seu marido o representante legal; que o poder sobre os filhos só fosse visto pela ótica do pai (pátrio poder); e que os filhos havidos fora do casamento não fossem reconhecidos. Isso só para citar alguns exemplos. Ou seja, o homem desfrutava de uma superioridade incrível com o aval legal.

Contudo, não tardou muito e o homem foi, aos poucos, perdendo sua posição hierárquica de destaque. Mesmo que as Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967-69 repetissem claramente que a família era constituída pelo casamento e que o Estado devia protegê-la, continuando vigente o sistema patriarcal, a mulher foi buscando lentamente uma situação de igualdade dentro da sociedade e do casamento.

Após a Segunda Guerra Mundial e com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que pregava a igualdade entre os homens, o movimento feminista foi ganhando expressividade. As mulheres saíram de suas casas para o mercado de trabalho, tornando-se parte importante para a economia do lar. Por via de conseqüência, o homem teve de reformular seus deveres para adaptar-se ao trato doméstico.

No Brasil, a década de 60 foi o ponto chave das mudanças nas relações familiares. Foi nessa década que as mulheres brasileiras descobriram que podiam ser auto-suficientes, desaparecendo a dependência econômica ao homem dentro do casamento. Em seu lugar, passou a viger a solidariedade mútua entre os cônjuges. Nessa década ainda, o Estatuto da Mulher Casada transmutou a mulher de objeto a sujeito de direitos.

Em corrente paralela, a revolução sexual que assomava trouxe consigo a idéia de que o casamento poderia ser dissolvido. A busca pela felicidade passou a dar o tom das relações conjugais e, conquanto não existisse o respaldo legal para o divórcio, os casais foram se separando de fato e formando novas relações informais. Isto é, aquela resignação feminina de outrora, que era a base de sustentação do casamento, foi se esvaindo.

Quando do advento da Lei do Divórcio, na década de 70, a família já era nuclear e com poucos filhos. Havia ainda grande intervenção estatal em suas relações. Contudo, sua evolução fez com que ela superasse esses impasses, e o ser humano passou a ser o alvo da proteção do Estado à família.

Na década de 80, o afeto transformou-se na principal finalidade da família em substituição ao patrimônio. A Constituição Federal de 1988, então, empunhando o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, e embasada no princípio da afetividade que se descortinava no direito de família, declarou o pluralismo familiar.

Contrariando seus precedentes, o Texto Constitucional de 1988 não mais trouxe a norma de exclusão de outras formações familiares que não o casamento. Diz seu art. 226, caput, que "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". Nos parágrafos em que se desdobra esse artigo, além do casamento, a Constituição reconhece expressamente a união estável de pessoas de sexos diversos — que chama de entidade familiar — e as famílias monoparentais — formada pela comunhão do pai ou da mãe e os filhos. (Entidade familiar aí, adverte Carlos Eduardo Pianovski RUZYK (2005:33), é sinônimo de família.) A partir de então, família passou a ser uma relação humana pública e duradoura fundada no afeto.

Outras mudanças se desvendaram no novel Texto Constitucional, dentre as quais a igualdade dentro da sociedade conjugal; os filhos, sejam havidos dentro ou fora do casamento, sejam adotados, passaram a ter o mesmo tratamento; e a família passou a ser encarada como seio de desenvolvimento da dignidade do homem.

O Estado abandonou sua figura de protetor-repressor, para assumir postura de Estado protetor-provedor-assistencialista, cuja tônica não é de uma total ingerência, mas, em algumas vezes, até mesmo de substituição a eventual lacuna deixada pela própria família como, por exemplo, no que concerne à educação e saúde dos filhos (cf. art. 227 da Constituição Federal) (Rodrigo da Cunha PEREIRA, 2004b:112).

Importa ventilarmos que, mesmo após a Carta de 1988, custou muito aos legisladores e aplicadores da lei aceitar essa pluralidade familiar. Tanto que somente em 1994 foi que se tentou, pela primeira vez, regular a união estável. Por outro lado, o Código Civil de 2002 encontra-se mais adaptado aos preceitos constitucionais, conseqüência do processo de constitucionalização do direito civil que se desencadeou com a Constituição Federal de 1988. Esse processo influenciou decisivamente o direito de família, que passou a ser regido, principalmente, pelo macroprincípio da dignidade da pessoa humana. As conseqüências disso poderemos observar nos pontos seguintes.

3.1 PRINCÍPIOS APLICÁVEIS À FAMÍLIA CONSTITUCIONAL

A complexidade é característica peculiar à família, corolário da busca incessante do ser humano pela felicidade. Assim sendo, o surgimento constante de novos conceitos e conjugações familiares exigem do operário do direito maior cuidado ao interpretar a lei, porque nem sempre se encontrará a regra aplicável ao caso — seja pela imprevisão do fato social, seja pela prescrição incompleta feita pelo legislador. Isso representaria um grave problema se vivêssemos numa ordem jurídica estritamente positivista, segundo a qual o fato não enquadrado nos limites legais não logrará qualquer efeito.

As exigências para criar-se um Estado "... destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos..." (Preâmbulo da Constituição Federal de 1988) não se coadunam com o positivismo tradicional. Mormente quando esse Estado preza pela dignidade da pessoa humana. Não podemos conceber nossa ordem jurídica como estritamente positivista. A própria lei nos diz que, ao ser aplicada, deve o juiz observar seus fins sociais e as determinações do bem comum, sendo que, quando for omissa, deverá o julgador buscar auxílio na analogia, nos costumes e nos princípios gerais do direito (art. 4.º e 5.º, Lei 4.657/42, Lei de Introdução ao Código Civil).

Nesse ínterim, os princípios gerais do direito ganham maior relevo, pois são ferramentas de interpretação, sistematização e integração do ordenamento jurídico. Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b:24-25), exprimindo sua posição de destaque, escreve que

Com a crescente tendência de constitucionalização do Direito Civil, conseqüência dos movimentos sociais e políticos de cidadania e inclusão, os princípios gerais têm-se reafirmado cada vez mais como uma importante fonte do direito e têm-se mostrado para muito além de uma supletividade. Eles se revestem de força normativa imprescindível para a aproximação do ideal de justiça. [...] É equivocada a idéia e o pensamento de que os princípios vêm por último no ato interpretativo integrativo. Ao contrário, os princípios, como normas que são, vêm em primeiro lugar e são a porta de entrada para qualquer leitura interpretativa do Direito. [...] Pode-se dizer que os princípios gerais significam o alicerce, os pontos básicos e vitais para a sustentação do Direito. São eles que traçam as regras ou preceitos, para toda espécie de operação jurídica e têm um sentido mais relevante que o da própria regra jurídica. [...] Os princípios constituem, então, os fundamentos da ciência jurídica e as noções em que se estrutura o próprio Direito. [...] Eles não necessitam estar escritos por que eles já são inscritos no espírito ético dos ordenamentos jurídicos. ..

Diante disso, não podemos estudar o direito de família e olvidarmos os princípios pertinentes. A despeito das rápidas mudanças das relações familiares que deságuam na falta de regulamentação legal, os princípios gerais surgem para apreender novos fatos afetivo-sociais e distribuir justiça.

Os princípios aplicáveis à família constitucional são:

1) Princípio da dignidade da pessoa humana. A dignidade da natureza humana, assim como foi apresentada por Immanuel Kant em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, é decorrente da idéia de que o homem, como ser racional, não pode fazer de outro homem meio para buscar seus próprios desideratos. Diz o filósofo:

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade (apud Paulo Luiz Netto LÔBO, 2002).

Assim sendo, temos que a dignidade do homem lhe dá um caráter de fim e não de meio.

Foi com esse sentido que a dignidade humana apareceu pela primeira vez de forma expressa no campo jurídico, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, espalhando-se daí para as várias Cartas Magnas dos Estados Democráticos de Direito.

E embebida dessa filosofia, a Constituição Federal de 1988 alçou a dignidade da pessoa humana à condição de princípio fundamental da República Federativa do Brasil, colocando-a em posição topográfica de destaque. Constante do art. 1.º, III, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana representa um dos vértices da ordem jurídica brasileira, permeando todas as relações jurídicas. A partir de então, qualquer interpretação de leis constitucionais e infraconstitucionais deve partir desse pressuposto, de forma que não há norma de ordem pública que resista à sua ação.

No campo específico do direito de família, respeitar a dignidade da pessoa humana significa reconhecer o homem como finalidade de proteção da família, o que nos remete à vedação de exclusão de entidades familiares; respeitar a autonomia privada do indivíduo ao escolher o arranjo familiar mais adequado a si mesmo; privilegiar o afeto como elemento embrionário do organismo familiar; tratar igualmente os cônjuges dentro da relação afetiva; não excluir filhos havidos fora do casamento; pregar a política do fim do preconceito e louvar as diferenças.

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Ressaltamos que a grandiosidade do princípio da dignidade da pessoa humana deve muito à universalidade de sua significação. Qualquer Estado que se preze deve-lhe observância, de modo que sua falta implica ilegitimidade. Nos dias de hoje, não basta garantir o direito à vida, mas sim à vida digna.

2) Princípio da afetividade. Já dissemos que a família do início do século XX se estruturava em volta de seu patrimônio e que o patriarcalismo dava o tom das relações familiares. As mulheres eram as "donas do lar".

Eis que a evolução social levou a mulher para o mercado de trabalho; a revolução sexual, ao fim do casamento indissolúvel. A auto-suficiência feminina determinou o fim do aspecto patrimonial familiar. Pouco a pouco, o afeto começa a surgir como finalidade da família.

A Constituição Federal de 1988, então, demonstrando assimilar o novo princípio, passa a reconhecer expressamente como entidades familiares relações fundadas no afeto; expurgou de vez o estigma sobre os filhos havidos fora do casamento e adotados; outrossim, entendeu que o fim do afeto determina o fim do laço conjugal. Segundo Paulo Luiz Netto LÔBO (2002),

Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade, tendo em vista que consagra a família como unidade de relações de afeto, após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procracionais, econômicas, religiosas e políticas. [...] Pode ser assim traduzido: onde houver uma relação ou comunidade unida por laços de afetividade, sendo estes suas causas originária e final haverá família.

Diante disso, a afetividade ganhou status de princípio implícito no Texto Constitucional. Já é possível encontrar na jurisprudência a chamada paternidade sócio-afetiva, conforme a qual a relação entre pai e filho decorre mais da demonstração social de afetividade do que da genética.

Por fim, impende lembrarmos que não é qualquer afeto que forma a família, mas tão-somente o afeto familiar. Nas palavras de Sérgio Resende de Barros (apud Rodrigo da Cunha PEREIRA, 2004b:128), é

"um afeto que enlaça e comunica as pessoas, mesmo quando estejam distantes no tempo e no espaço, por uma solidariedade íntima e fundamental de suas vidas – de vivência, convivência e sobrevivência – quanto aos fins e meios de existência, subsistência e persistência de cada um e do todo que formam".

3) Princípio da autonomia e da menor intervenção estatal. A Constituição de 1988, em seu art. 226, estabelece que o Estado deve endereçar proteção especial à família. Mas qual é o limite dessa proteção?

Discute-se bastante sobre se o direito de família faz parte do direito público ou do direito privado. Daquela, por causa do interesse do Estado em preservar sua base que é a família; deste, por causa da autonomia do homem para decidir sobre sua vida privada. Porém, anda melhor aquele que se respalda no princípio da menor intervenção estatal, pois o direito de família é genuinamente um ramo do direito privado.

O princípio da mínima intervenção estatal ressai claro do Texto Constitucional de 1988, no seu art. 226, § 7.º, que diz: "Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal...". Por sua vez, o Código Civil, no art. 1.513, estatui que "É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família".

Luiz Edson Fachin, citado por Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b:111), em posicionamento esclarecedor, leciona:

"Não se deve confundir, pois, esta tutela com poder de fiscalização e controle, de forma a restringir a autonomia privada, limitando a vontade e a liberdade dos indivíduos. Muito menos se pode admitir que esta proteção alce o Direito de Família à categoria de Direito Público, apto a ser regulado por seus critérios técnico-jurídicos. Esta delimitação é de fundamental importância, sobretudo para servir de freio à liberdade do Estado para intervir nas relações familiares".

Ora, é certo que a família merece proteção estatal. Porém, não porque é uma instituição alicerce do Estado, mas porque é no seio familiar que o indivíduo encontra as lições iniciais para se desenvolver salutarmente. Quer dizer, o foco da proteção constitucional da família é o ser humano (art. 226, § 8.º, CF/88). Portanto, respeitar a autonomia privada do indivíduo é obrigação do Estado. Doutra maneira, infringir-se-ia o macroprincípio da dignidade da pessoa humana.

4) Princípio da igualdade. Previsto no art. 5.º, caput, da Constituição Federal de 1988, a igualdade perante a lei é uma exigência do Estado Democrático de Direito. Mais do que isso, a igualdade é pressuposto do exercício da cidadania, e para ser cidadão se faz necessário o respeito às diferenças.

Em nosso caso, interessa-nos a igualdade dentro do âmbito familiar como corolário do megaprincípio da dignidade da pessoa humana.

Por muito tempo, o modelo patriarcal de família produziu uma série de odiosas exclusões. Assim é que a mulher ocupava lugar hierarquicamente inferior ao homem dentro do casamento, devendo mesmo obediência a ele. Por sua vez, os filhos havidos fora do casamento eram alvos de preconceito, condenados à invisibilidade legal. Tudo isso num período em que já havia se falado em igualdade como direito do homem nas declarações de direitos humanos.

Nesse particular, a revolução feminista acabou por contribuir para o fim da desigualdade. A auto-suficiência feminina pôs em xeque o poder de controle que o homem tinha dentro da família. Paralelamente, a afetividade, que continuamente se firmou como finalidade da família, promoveu a igualdade dos filhos "legítimos" e "ilegítimos".

Do ponto de vista constitucional, o § 5.º, do art. 226 já garante que "Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher". A essência desse preceito inspirou os art. 1.511, 1.567, 1.630 e 1.631, do Código Civil, sendo que, pelo menos abstratamente, podemos falar em igualdade conjugal.

5) Princípio da pluralidade familiar. Norberto Bobbio, apud Rodrigo da Cunha Pereira (2004b:25), disse que "’Muitas normas, tanto dos códigos como da Constituição, são normas generalíssimas e, portanto, são verdadeiros e autênticos princípios gerais expressos’". Esse é o caso do princípio da pluralidade familiar, previsto na norma geral constante do art. 226, da Constituição Federal de 1988, conquanto possamos concluí-lo de outros preceitos constitucionais.

E como veremos no ponto seguinte, a interpretação constitucional nos levará à ilação de que o pluralismo familiar compreende não somente as famílias explicitamente reconhecidas pela Carta Magna — casamento, união estável e família monoparental —, mas também as implícitas, que são todos os arranjos em que se visualiza a afetividade, a estabilidade e a publicidade, como bem aponta Paulo Luiz Netto LÔBO (2002).

Por último, é importante que coloquemos que vários civilistas resistem ao entendimento de que a Constituição vigente reconheceu entidades familiares implícitas. Segundo Rodrigo da Cunha PEREIRA (2004b:119), "Uma das dificuldades e resistências de se reconhecer a pluralidade e as várias possibilidades dos vínculos parentais e conjugais reside no medo de que estas novas famílias signifiquem a destruição da ‘verdadeira’ família". Ocorre que a proteção constitucional à família, como já falamos, dirige-se à pessoa humana, independentemente da formação familiar escolhida. E conforme Paulo Luiz Netto LÔBO (2002), "A exclusão não está na Constituição, mas na interpretação".

Poderíamos ainda enumerar o princípio da monogamia, mas não o faremos. Este ainda não é o momento certo para tratarmos do assunto, vez que, como ponto nevrálgico do próprio trabalho, guardamos para o capítulo 5 — quando falaremos do concubinato adulterino em face do sistema monogâmico.

3.2 A INTERPRETAÇÃO DOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS CONCERNENTES À FAMÍLIA

A Constituição Federal, como norma fundamental de nossa ordem jurídica, deve ser interpretada de modo que haja harmonia entre seus princípios e sua finalidade. Aplicar o Texto Constitucional significa adaptá-lo à realidade social, de forma que suas prescrições ganhem maior relevo com a viabilização dos direitos e garantias fundamentais. Assim é que até seu preâmbulo, a despeito da falta de poder normativo, deve ser utilizado como ferramenta de direção do hermeneuta em momentos de obscuridade ou integração, eis que conforma um conjunto de princípios orientadores das normas constitucionais.

Alexandre de MORAES (2002:44-45), citando a doutrina do grande constitucionalista Canotilho, elenca, entre regras e princípios interpretativos, os seguintes:

da unidade da constituição: a interpretação constitucional deve ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normais; [...]; da máxima efetividade ou da eficiência: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda; [...]; da concordância prática ou da harmonização: exige-se a coordenação e combinação de bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício total de uns em relações aos outros; da força normativa da constituição: entre as interpretações possíveis, deve ser adotada aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais.

São essas as balizas que o intérprete deverá obedecer ao analisar os preceitos maiores que regem a família. Aliás, a Carta Magna de 1988 rompeu com a técnica de hermenêutica equivocada que imperava até então, quando se interpretava o direito de família da codificação para a constituição. Esse fenômeno foi chamado pelos estudiosos como a constitucionalização do direito de família.

Das ponderações acima, temos que o aplicador do direito deve ter em mente, ao estudar os preceitos maiores da família, a interpretação sistemática e teleológica, de modo que suas especificações devem cercar-se de maior efetividade e eficácia. Destarte, continuando a idéia de pluralidade familiar, concluímos que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, caput, ao estatuir que "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado", instituiu um conceito familiar amplo.

Utilizando-se a lição de Carlos MAXIMILIANO (1993:204) sobre critérios de interpretação ampla, concluímos, ainda, que o preceito em tela deve abranger todos os casos possíveis (implícitos ou explícitos) que derivem lógica e necessariamente dele, vez que a família, da forma em que foi promulgada no artigo transcrito, tem ares de princípio ou origem.

Isso nos faz chegar a uma primeira constatação: que a regra citada é uma norma geral de inclusão. Importa dizer que, se o legislador, diferentemente das constituições anteriores que traçaram explicitamente que a família é uma instituição constituída pelo casamento, a exemplo da de 1967 e 1969, não discriminou no caput qualquer arranjo familiar, quis ele incluir na proteção especial do Estado todas as outras formações constituídas sob o pálio da afetividade. Por via de conseqüência, o pluralismo familiar compreende não somente as tramas familiares contidas expressamente nos parágrafos do art. 226, mas também todas as uniões ostensivas e estáveis que se formaram a partir de um elo afetivo — que, por isso, estão protegidas implicitamente. Não teve o legislador originário de 1988 o objetivo único de proteger a família proveniente do casamento, como fizeram seus antecessores. Quis ele, em verdade, resguardar o a pessoa humana, que deve encontrar na convivência familiar condições para desenvolver-se plenamente (art. 226, § 8.º, CF/88).

Complementando o raciocínio, Paulo Luiz Netto LÔBO (2002) afirma que o § 4.º, do art. 226, da Constituição Federal de 1988 integra a cláusula de geral de inclusão. Segundo o professor, a palavra "também" contida aí

... tem o significado de igualmente, da mesma forma, outrossim, de inclusão de fato sem exclusão de outros. Se dois forem os sentidos possíveis (inclusão ou exclusão), deve ser prestigiado o que melhor responda à realização da dignidade da pessoa humana, sem desconsideração das entidades familiares reais não explicitadas no texto.

O Superior Tribunal de Justiça, comungando de mesma interpretação, prolatou a seguinte decisão no Recurso Especial n.º 205.170-SP, publicado no DJ de 07/02/2000:

1. O conceito de entidade familiar, deduzido dos arts. 1º da Lei 8.009/90 e 226, § 4º da CF/88, agasalha, segundo a aplicação da interpretação teleológica, a pessoa que, como na hipótese, é separada e vive sozinha, devendo o manto da impenhorabilidade, dessarte, proteger os bens móveis guarnecedores de sua residência. 2. Recurso especial conhecido e provido.

Nesse ínterim cabe nova lição de Carlos MAXIMILIANO (1993:204), o qual nos ensina que a interpretação de normas que tenham por finalidade desconstituir males ou injustiças, como é caso do art. 226, caput, da Constituição Federal de 1988, deve ser ampla. Portanto, não há falar-se em dúvidas quanto à proteção constitucional de entidades familiares não explícitas em seu texto.

A segunda e última constatação a que chegamos nos fala que, se houver discriminação, essa discriminação deve vir expressa. Ora, como já anotado, a Carta Magna vigente não repetiu a mesma dicção das anteriores, que instituíram norma geral de exclusão. Se assim não quis o legislador originário, não cabe ao derivado e muito menos ao hermeneuta assim determinarem-se.

3.3 AS ENTIDADES FAMILIARES CONSTITUCIONALIZADAS

A família plural, como vimos, compreende tanto as entidades familiares expressamente citadas na Constituição Federal como também as implícitas, abarcadas que são pela norma geral de inclusão prevista no art. 226, caput, e, mormente, pelo macroprincípio da dignidade da pessoa humana.

Em verdade, não podia ser diferente com o Direito, já que outros ramos do conhecimento de há muito vêm constatando uma ampliação das formações familiares. Paulo Luiz Netto LÔBO (2002) nos diz que a perspectiva da Sociologia, da Psicologia, da Psicanálise e da Antropologia, dentre outros segmentos, mesmo antes da Lei Maior de 1988, já reconhecia outras tramas familiares que não a decorrente do casamento.

Como sabemos, o fato social precede a norma legal. E o que vemos na sociedade brasileira é uma diversidade de formações familiares, fruto do maior exercício das liberdades públicas pelo cidadão. Não pode o ordenamento jurídico passar incólume por essa realidade, tabulada pelo IBGE no Censo Demográfico de 2000:

TABELA 1: Distribuição das famílias por tipo e a situação do domicílio, segundo as classes de tamanho da população dos municípios do Brasil – 2000

Classes de tamanho da população dos municípios

Unipessoal

2 ou + pessoas sem parentesco

Casal sem filhos

Casal com filhos (1)

Mulher sem cônjuge com filhos

Casal com filhos (2)

Outras modalidades

Total

8,3

0,2

15,6

52,4

12,6

3,0

7,9

Até 20.000

8,0

0,1

15,3

57,4

10,1

1,5

7,5

De 20.001 até 100.000

7,6

0,1

15,1

55,3

11,8

2,3

7,7

De 100.000 até 500.000

8,1

0,2

15,6

52,2

13,2

3,3

7,4

Mais de 500.000

9,5

0,4

16,1

46,4

14,4

4,2

9,0

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000

Nota: (1) Casal com filhos sendo o responsável do sexo masculino.

(2) Casal com filhos sendo o responsável do sexo feminino.

Abolida, então, qualquer forma de exclusão de composições humanas em que se vislumbram a afetividade, a durabilidade e a publicidade por inconstitucionalidade, e estribados nos dados demográficos anteriores, reconhecemos as seguintes entidades familiares constitucionalizadas:

1) Casamento. Previsto no § 1.º, do art. 226, da Constituição Federal de 1988, o casamento é, nas palavras do saudoso civilista Silvio RODRIGUES (2004:19), "... o contrato de direito de família que tem por fim promover a união do homem e da mulher, de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem mútua assistência".

Pilar forte do sistema monogâmico reinante nos países ocidentais, como o nosso, o casamento foi, por muito tempo, considerado a única forma de constituição de família. Sem dúvidas, por influência da Igreja Católica e do Cristianismo, que o vê como reflexo da família sagrada.

Ainda hoje, mesmo após o advento do pluralismo familiar pela Carta Magna de 1988, percebemos um apego dos legisladores e jurisprudentes à essa tradição, demandando-se grande esforço para o reconhecimento de outras composições familiares. Isso se deve, quiçá, pela falsa conclusão do Estado de que o casamento representa a família perfeita para seus interesses, o que o faz regulá-lo em minúcias.

2) União estável. Conforme traçado no Código Civil de 2002, em incremento a Constituição Federal de 1988, "É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família" (art. 1.723).

A união estável se reporta à década de 60, quando, no Brasil, veio à tona o movimento feminista. A mulher que, em face de sua resignação, sustentou por muito tempo a indissolubilidade do casamento, buscava igualdade perante o Estado, a sociedade civil e a relação conjugal. Junto com isso, veio o grito de liberdade e autonomia pelos cidadãos brasileiros que, buscando a felicidade, nem sempre a encontraram no berço conjugal.

Demorou muito até que o Estado reconhecesse a união estável como entidade familiar, tudo por culpa de um duvidoso moralismo. E mesmo após a Lei Maior de 1988, que a declarou como tal, o Poder Judiciário foi renitente, concebendo-a sociedade de fato e lhe conferindo efeitos exclusivamente obrigacionais — na medida do esforço efetivo de cada parte para a aquisição dos bens comuns (súmula 380 do STF). Doutra forma, determinavam os tribunais o pagamento pelo varão de indenização pelos "serviços prestados" pelo virago, tudo para repelir situação injusta de enriquecimento ilícito.

Não foi diferente com o Poder Legislativo, que só em 1994 promulgou a Lei n.º 8.971, a qual disciplinava os direitos sucessórios e alimentares dos conviventes. Reconhecia a lei de antemão como entidade familiar a união estável por mais de cinco anos ou com filho formada por homem e mulher desimpedidos de casar. Em seguida, veio a lume a Lei n.º 9.278/96, que trouxe, entre outras mudanças, a exclusão de impedimento para casar do conceito (aludindo à proteção do concubinato adulterino), a regulamentação da partilha e a determinação da competência absoluta das varas de família para apreciar o assunto.

Mais recentemente, o Código Civil regulamentou a matéria trazendo o conceito inicialmente transcrito e regulando com poucas minúcias a entidade familiar em questão — situação que suscita ainda dúvidas aos aplicadores da lei.

3) Famílias monoparentais. Também conhecida como unilineares, são aquelas formadas pela convivência afetiva entre um dos pais e os filhos (§ 2.º, art. 226, CF/88). Ela se verifica especialmente com a mãe assumindo o posto de "chefe da família", representando, de acordo com o IBGE, no ano de 2000, 12,6 % dois lares brasileiros.

Vários motivos podem explicar a formação das famílias monoparentais. Maria Celina BRAVO e Mário Jorge Uchoa SOUZA (2002) esclarecem que vai

... desde a pobreza, a liberdade sexual, o controle da natalidade, a independência econômica das mulheres, a instabilidade das uniões afetivas, a possibilidade de adoção por maior de 21 anos seja qual for o seu estado civil, e até mesmo o desejo da maternidade independente, estimulado pelo desenvolvimento da ciência no campo da inseminação artificial.

A despeito disso, a proteção constitucional está garantida.

4) Concubinato adulterino. Tecnicamente, chama-se concubinato. Na dicção do art. 1.727, do Código Civil, são "As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato".

Deixamos aqui de tecer maiores comentários, já que, sendo o cerne de nosso trabalho, dedicamos-lhe atenção especial nos capítulos 4, 5 e 6 que seguem.

5) Uniões homoafetivas. Podemos verificar a união homoafetiva sempre que a convivência entre duas pessoas de mesmo sexo estejam seladas pela afetividade, a estabilidade e a ostensibilidade. O fundamento que sustenta essas entidades familiares estão entre os direitos fundamentais enumerados no art. 5.º, da Constituição Federal de 1988, quais sejam, a liberdade, a igualdade e a inviolabilidade da intimidade. O preâmbulo constitucional também a fundamenta ao argumento de criação de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

As uniões homoafetivas são um exemplo de como os fatos sociais precedem o direito. Ora, já há algum tempo, o Brasil vem batendo recordes em vista do contingente de homossexuais nas paradas do orgulho gay da cidade de São Paulo. Tão logo, não tardou o aparecimento de questões diante dos tribunais, que, sob o rótulo inadequado de sociedades de fato, têm demonstrado considerável receptividade, notadamente, no campo previdenciário.

No Poder Legislativo Federal já tramita há alguns anos um projeto de lei com o objetivo de regulamentar a união civil de pessoas do mesmo sexo, valendo ressaltarmos que alguns países de cultura ocidental já aceitam o casamento de "iguais".

Em comentário brilhante, só para arrematarmos, trazemos a doutrina de Paulo Luiz Netto LÔBO (2002):

A ausência de lei que regulamente essas uniões não é impedimento para sua existência, porque as normas do art. 226 são auto-aplicáveis, independentemente de regulamentação. Por outro lado, não vejo necessidade de equipará-las à união estável, que é entidade familiar completamente distinta, somente admissível quando constituída por homem e mulher (§ 3º do art. 226). Os argumentos que têm sido utilizados no sentido da equiparação são dispensáveis, uma vez que as uniões homossexuais são constitucionalmente protegidas enquanto tais, com sua natureza própria.

6) Entidades familiares desprovidas de poder familiar. Chamamo-las dessa forma porque em sua configuração não existem a figura do pai e da mãe. São de dois tipos: duas ou mais pessoas sem parentesco cujo elo é o afeto, sem finalidade sexual ou econômica, que correspondiam no Censo de 2000 a 0,2% dos lares familiares; e duas ou mais pessoas com parentesco unidas pela afetividade. O Superior Tribunal de Justiça, acatando a tese decantada, já decidiu:

EXECUÇÃO. Embargos de terceiro. Lei n.º 8.009/90. Impenhorabilidade. Moradia da família. Irmãos solteiros. Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza de proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei nº 8.009/90, não podendo ser penhorado na execução de dívida assumida por um deles (REsp 159.851-SP, DJ de 22.06.98).

7) Entidade familiar por equiparação ou unipessoal. É formada por uma única pessoa, inclusive, solteira. Os "solitários", em 2000, correspondiam a 8,2% dos domicílios brasileiros. São considerados equiparados porque sua verificação como entidade familiar se dá somente para proteção dos direitos pessoais decorrentes de relações familiares. Em verdade, não percebemos neles a característica da afetividade que se faz presente nas entidades familiares genuínas, já que afeto subentende a existência de no mínimo duas pessoas.

Assim se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. LOCAÇÃO. BEM DE FAMÍLIA. MÓVEIS GUARNECEDORES DA RESIDÊNCIA. IMPENHORABILIDADE. LOCATÁRIA/EXECUTADA QUE MORA SOZINHA. ENTIDADE FAMILIAR. CARACTERIZAÇÃO. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA. LEI 8.009/90, ART. 1º E CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 226, § 4º. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO (REsp 205.170-SP, DJ de 07.02.2000).

Por último, bem lembra Paulo Luiz Netto LÔBO (2002), verificamos a "... comunidade afetiva formada com ‘filhos de criação’, segundo generosa e solidária tradição brasileira, sem laços de filiação natural ou adotiva regular". A jurisprudência pátria já se posicionou da seguinte forma:

Negatória de paternidade. "Adoção à brasileira". Confronto entre a verdade biológica e a socioafetiva. Tutela da dignidade da pessoa humana. Procedência. Decisão reformada. A paternidade socioafetiva, estando baseada na tendência de personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular ´adoção à brasileira´, não tutelaria a dignidade da pessoa humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-ia as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado (TJPR, Ac. 108.417-9, rel. Des. Accácio Cambi, j. 12/12/2001, DJPR 4/2/2002).

Somente as três primeiras estão explícitas na Carta de 1988. Isso se explica pela maior incidência dessas formas familiares na sociedade brasileira. Aproximadamente 84% de nossa população, em 2000, se encaixavam entre as entidades familiares explícitas, contra aproximadamente 16% das implícitas.

3.4 EXISTE HIERARQUIA AXIOLÓGICA ENTRE AS ENTIDADES FAMILIARES?

Disse o legislador originário, ao incluir explicitamente a união estável entre as entidades familiares: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento" [grifo nosso] (art. 226, § 3.º, CF/88).

Entre os doutrinadores que acreditam que a Constituição Federal de 1988 declinou rol exaustivo de entidades familiares, essa escrita deu ensejo a interpretações de duas ordens: 1) o casamento ocupa posição hierarquicamente superior às outras entidades, que deverão ter efeitos jurídicos limitados pelo ordenamento jurídico; e 2) as entidades familiares ocupam patamar de igualdade, pois o megaprincípio da dignidade da pessoa humana garante a liberdade de escolha das relações afetivas.

Não é correto extrair da norma transcrita a primeira interpretação, pois o legislado originário, ao colocar o trecho que grifamos, não pretendeu fazer distinção entre as entidades familiares. Nem assim poderia, sob pena de ferir a harmonia e sistematicidade da Carta Magna. Ora, de que adianta garantir como direito fundamental do indivíduo a liberdade para escolher o melhor arranjo familiar para si, se mais a frente diz que a família do casamento é o melhor caminho para seus interesses (ou para os do Estado)?

Em verdade, quis o legislador originário dizer que o legislador derivado deverá, ao promulgar leis infraconstitucionais cujo conteúdo é a união estável, incluir uma forma simples para que os conviventes venham a contrair, se assim quiserem, um casamento civil.

Paulo Luiz Netto LÔBO (2002) leciona que

A tese II, da igualdade dos tipos de entidades, consulta melhor o conjunto das disposições constitucionais. Além do princípio da igualdade das entidades, como decorrência natural do pluralismo reconhecido pela Constituição, há de se ter presente o princípio da liberdade de escolha, como concretização do macroprincípio da dignidade da pessoa humana. Consulta a dignidade da pessoa humana a liberdade de escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização existencial.

Portanto, pensamos que o legislador não foi feliz ao incluir o trecho causador da dúvida. Conquanto não tenha querido propor uma hierarquia de entidades familiares, o certo é que deixou entrever uma predileção do Estado pelo casamento, com certeza pelo ranço de longo período em que a singularidade familiar reinou na ordem jurídica pátria.

Ninguém é mais indicado do que a própria pessoa para dizer do melhor para sua dignidade e sua afetividade. E como veremos adiante, o objetivo do Estado ao determinar proteção especial à família, não é outro senão o de assistir aos seus integrantes (§ 8.º, art. 226, CF/88). Então, sua influência na família se restringe tão-somente à proteção do ambiente familiar, seja qual for ele.

3.5 A PROTEÇÃO ESTATAL ÀS ENTIDADES FAMILIARES E A SEUS MEMBROS

Já dissemos que a família é a base da sociedade e que, por isso, o Estado deve conferir-lhe uma proteção. Esse discurso permeou-se de forma clara pelas constituições brasileiras desde 1934 (art. 144, CF/34; art. 124, CF/37; art. 163, CF/46; art. 167, CF/67-69).

A Carta Magna vigente, em seu art. 226, caput, assevera que "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". Vai além no § 8.º, do mesmo artigo, quando diz que "O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um que a integra, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações". Nesse particular, cabe-nos questionar a quem se dirige a proteção estatal: à família ou à pessoa que a integra?

As constituições anteriores faziam menção expressa à família como sendo conseqüência de um casamento indissolúvel. A tutela estatal aí significava proteger em primeiro lugar a família e não a seus membros. Em outros termos, a proteção estatal reduzia-se a afastar toda sorte de "uniões ilícitas", objetivando consagrar o casamento como instituição essencial para assegurar os interesses do próprio Estado. Tanto era assim que, por muitos anos, falou-se em filhos "legítimos" e "ilegítimos" — os provenientes de relações fora do manto civil, que tinham tratamento discriminatório pela sociedade e pela lei.

Em tese adversa, a Constituição de 1988, desviando o foco para a pessoa humana e sua dignidade, repensou a família e a declarou objeto de proteção mediata do Estado. Para tanto, passou a amparar cada pessoa que integra o núcleo familiar sob o argumento de lhe despender proteção especial (§ 8.º, art. 226). Ratificando nossa visão, temos os art. 227 e 230, os quais determinam que é dever da família, da sociedade e do Estado garantir o desenvolvimento saudável e digno da criança, do adolescente e das pessoas idosas.

Com efeito, como nos ensina Gustavo Tepedino,

"... é a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas de direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indivíduo social" (apud Maria Celina BRAVO e Mário Jorge Uchoa SOUZA, 2002).

Além do mais, complementa Paulo Luiz Netto LÔBO (2002),

Sob o ponto de vista do melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas entidades familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que as integram por opção ou por circunstâncias da vida, comprometendo a realização do princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim sendo, mais um motivo para vedar-se a interpretação que expõe que a Constituição declinou rol exaustivo de entidades familiares, sob pena de infringência ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Sobre o autor
Anderson Lopes Gomes

advogado em Forquilha (CE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Anderson Lopes. Concubinato adulterino:: uma entidade familiar a ser reconhecida pelo Estado brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1360, 23 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9624. Acesso em: 23 nov. 2024.

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