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O edifício da proteção integral precisa de portaria.

Sobre a edição de portarias normativas pelo juiz da Infância e da Juventude

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Agenda 22/03/2007 às 00:00

Neste trabalho, sustentaremos – ao contrário de majoritário entendimento - que é prerrogativa do Juiz da Infância e da Juventude a edição de Portarias normativas.

"Que não triunfem os inertes!"

Norberto Bobbio


APRESENTAÇÃO

No presente trabalho, sustentaremos – ao contrário de majoritário entendimento - que é prerrogativa do Juiz da Infância e da Juventude a edição de Portarias normativas.

Em resumo, é produzida a seguinte argumentação:

1.O ECA situa-se junto aos direitos de 3ª geração. A mudança na conjuntura econômico-política internacional produziu conflitos entre norma e realidade, em prejuízo da primeira. Disso resultariam lacunas, cujo suprimento pelo Poder Judiciário demandaria "uma atitude hermenêutica ativa e uma jurisdição enérgica, por evidente que os novos direitos são direitos em processo, direitos em construção e aperfeiçoamento."

Para tanto, seria necessário "ler o ECA à luz da Constituição", portanto, orientado pela doutrina da proteção integral. Desta ótica, entende-se que a defesa da infância - inclusive, por meio da edição de Portarias – se sobrepõe ao que chamamos "redução do princípio da legalidade a uma leitura estreita da lei menorista";

2.É objetivo da doutrina da proteção integral, o que chamamos de "proteger sementes", para o que "é preciso chegar antes". O princípio regedor do ECA não é hierárquico, mas solidário. Necessário que, no vácuo de atuação de algum dos integrantes da "rede" de proteção, o Juiz menorista não permaneça inerte.

É diferenciado o papel do Juiz da Infância, cujas "tarefas especiais" exigiriam mecanismos adequados, dentre os quais se incluiria a Portaria Judicial. Das diferenças conceituais entre "influência e poder", ressalta, que embora com "temperos, parcimônia e justificação" é necessário ao Juiz exercício de poder.

Endossaremos a tese que vê o princípio da inércia como exceção na jurisdição menorista, dada a superioridade, no tema, do princípio da precaução.

Compete ao Juiz da área menorista exercício de poder de polícia de caráter especial, para o qual estaria implícito poder normativo subsidiário, que também situamos no quadro de poder discricionário do Juiz.

Improcede a preocupação dos que veriam no Juiz menorista um "’super-juiz’, sem controle", lembrando que o ECA instituiu, ao contrário do antigo Código de Menores, o recurso de apelação para controle jurisdicional, em par com a vigilância do Ministério Público, o controle correicional e disciplinar próprio da Magistratura, o monitoramento produzido pelos próprios magistrados da área, através de padrões estabelecidos em Portarias-Conjuntas e Enunciados.

3.O rol do art. 149 é exemplificativo, a partir de visão sistêmica da lei.

A Portaria, é "medida judicial", portanto, coberta pelo art. 153. A edição de Portaria normativas não fere o princípio da legalidade, a teor do art. 3º do ECA e da compreensão de que conforme ensina José Afonso da Silva, "o princípio da legalidade não exclui atuação secundária de outros poderes".

Há julgado em que o STJ, indiretamente, confirmou validade de Portarias menoristas.

Embora exceção, é prerrogativa do Juiz em geral. A atuação de ofício em diversas situações legalmente previstas, em prol da obtenção de justiça. Traz-se a prerrogativa, analogamente, à jurisdição menorista à luz do art. 6º do ECA.

4.A Portaria é como uma necessidade imposta pela realidade. O Juiz menorista exerceria função de liderança numa época de transição entre uma certa autocracia nos Códigos de Menores até a rede solidária do ECA.

É inevitável a figura da "portaria-meio", que explicita formas para atendimento de "obrigações-fim".

A Portaria é medida de economia processual e administrativa.

Se adequado e participativo, o modus faciendi adotado pelo Juiz realça o caráter pedagógico da Portaria.

Já para esta 2ª versão do trabalho, incluiremos proposta de cuja elaboração participamos, de formas de classificação, rito e controle para a edição de Portarias.

Concluiremos descrevendo algumas das mazelas que atingem nossa infância e juventude, fazendo um apelo pela preservação do ‘belo’ ético que, na infância, representa nosso futuro.

Em apêndices traremos as cópias das Resoluções do Conselho da Magistratura. A de nº 02/06, que vedou a edição das Portarias, e a de nº 30/06, em cujo processo, por honrosa deferência, o trabalho que segue foi incluído como peça de instrução.


INTRODUÇÃO

Embora a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro viesse referendando diversas Portarias de Juízos Menoristas, e a maioria dos julgados de infrações detectadas por contrariedade às mesmas as convalidasse, algumas Câmaras vinham entendendo como infringentes do princípio da legalidade quaisquer delas que extrapolassem as hipóteses do art. 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei 8069/90).

Tal debate alcançou relevo com a aprovação, por unanimidade, da Resolução n. 02/06 [01] em que o Conselho de Magistratura do TJ-RJ impôs a revogação de todas as Portarias emitidas por Juízes da Infância e da Juventude que não se referissem às hipóteses do art. 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O assunto acabou superado, com a edição da Resolução 30/06, onde foram permitidas as portarias, desde que cumprindo rito e forma estabelecidos em seus anexos. Tal decisão surgiu de proposta dos magistrados do grupo temático organizado na AMAERJ, que tiveram a generosidade de permitir nossa colaboração, sendo este texto incluído entre as peças instrutórias da proposição.

Também na jurisprudência de outros Tribunais tem havido controvérsias, com acórdãos que ora anulam determinadas Portarias [02], ora entendem que mesmo para as do art. 149 haveria imposição de requisitos procedimentais prévios e justificativos (sindicância) [03]. Noutras decisões, Portarias polêmicas (como a que determina distância mínima entre escolas e fliperamas) [04] são validadas.

Na negativa, geralmente alega-se que o legislador não renovou a prerrogativa genérica de edição de Portarias e Provimentos pelo Juízo menorista, facultada no antigo Código de Menores (Lei 6697/79), revogado expressamente no art. 267 do ECA.

Entretanto, consideradas as características especialíssimas da magistratura menorista, pedimos vênia para a ousadia de entender que se trata de assunto por demais complexo, que a nosso ver comporta aprofundamento, pois, a prevalecer hipótese de tal restrição, teremos configurado sério óbice ao bom cumprimento das tarefas jurisdicionais e administrativas de natureza peculiar conferidas ao Juiz da Infância e da Juventude.

Entendemos que a doutrina da proteção integral é um todo lógico e articulado, uma edificação que, vista em sua completude, precisa de várias ações sincronizadas dos poderes do Estado e da sociedade. Com tal norte, defenderemos que o Juiz deve e pode editar Portarias normativas porque, ciente das características especiais da jurisdição que exerce, o fará coberto pela Constituição, amparado em lei e premido pelas exigências da realidade. Pedimos ainda tolerância com o pequeno trocadilho na titulação do trabalho, eis que ele bem se prestou a expressar a finalidade do texto. Da mesma forma que uma portaria de condomínio facilita entrada e saída seguras às unidades prediais, a Portaria Judicial pode ser uma porta de acesso para que o direito posto encontre a morada da justiça ou, dependendo de onde se olha, a saída para situações lacunosas que tantas vezes rondam o Juízo Menorista.

O espírito dado por Norberto Bobbio na frase com que epigrafamos o trabalho – "Que não triunfem os inertes!" [05], nos servirá para inspirar a defesa de que a inércia da jurisdição menorista, em nosso entendimento, não pode prevalecer, sob pena de, quando ocorrer provocação adequada, ser tarde demais para resgatar o que devia ter sido, na verdade, motivo de prevenção.


I – RELAÇÕES CONTEXTUAIS – ECA E CONSTITUIÇÃO FEDERAL/88

CONTEXTO DE SURGIMENTO DO ECA

A doutrina da proteção integral à infância e à adolescência que instrui o ECA é passo conseqüente no desenvolvimento histórico dos direitos humanos. Grosso modo, após a definição dos princípios da liberdade e da consolidação conceitual do princípio da igualdade, surge um corpo de mecanismos legais que melhor especifica e especializa [06] para segmentos determinados os direitos proclamados nas ‘gerações’ anteriores. Tratados e acordos internacionais viabilizam a construção jurídica em que se inserem o direito da criança, junto com direitos relativos a ecologia, idosos, minorias, consumidores, etc.

A Constituição Federal de 1988 acolhe tanto diretrizes resultantes de tal movimento global, quanto demandas próprias, acumuladas no longo processo de luta democrática vivido pelo país.

Disso resulta uma Carta de viés progressista, mas com evidentes desequilíbrios. Foram estabelecidas tanto as garantias de direitos amadurecidos, resultantes de novos contextos sócio-políticos, quanto a prescrição de direitos que, embora já assentes em filosofia, por não socialmente construídos, acabaram transferindo para a arena da hermenêutica e das atividades jurisdicionais e legiferantes, o "desempate" prático em torno de princípios e conceitos antagônicos. Tal ocorre em constituições como a nossa, classificadas pelos estudiosos como ‘compromissárias’ [07].

Daí que, jogados os embates da luta política, sempre caracterizada por grande fragmentação e corporativismo, a sociedade brasileira, naquele momento, fez do compromisso constitucional ao mesmo tempo um auto-retrato e um projeto. No auto-retrato, flagradas estão todas as complexidades e o contraditório resultante do acúmulo da experiência republicana nacional, que formam "o que somos". No projeto, o risco iluminado de um monumento a construir, ambicioso e generoso, talvez até um celeiro de sonhos para usufruto pelas gerações futuras, enfim, "aquilo que queremos ser". Que não se veja isso como demérito, afinal, como demarcou RUBEM ALVES, "... administrar os sonhos de um povo... não será esse, por acaso, o único sentido para uma Constituição?" [08].

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Entretanto, padecemos os males da constatação de que uma coisa é o que a sociedade idealiza e representa em projeto, outra é o que efetiva e pratica como construção. Muito do que se verificou foi que a luta de décadas, quando atingiu a possibilidade de alcançar status de norma legal, encontrou um mundo já modificado em suas estruturas. Assim, mecanismos de proteção social e controle do Estado sobre a atividade produtiva vieram à luz com atraso, encontrando um habitat hostil, onde já vicejavam, sob o signo da queda do Muro de Berlim, políticas predominantemente neoliberais. Tais políticas abriram ações ferozes contra o Estado, massacrado ao mínimo pretendido pela voracidade instantânea da globalização informatizada.

Alteraram-se estruturas de governo, revolucionaram-se costumes, arranjos familiares, formas de lazer inéditas surgiram. O ECA, sem que tenha sido totalmente implementado, já chega defasado à arena de combate. Sua espada tem pouco fio para a nova realidade. Principalmente porque a armadura completa exigia implementos fundados no aço da solidariedade. Esta, que foi massacrada pelo novo status quo de individualismo desenfreado e luta pela imediato da sobrevivência.

Países centrais, onde o welfare state se consolidara antes da vaga globalizante, ainda que com fissuras, puderam resistir relativamente melhor à ventania. O Brasil periférico, de semeadura social-democrática recente, viu seus canteiros de fracas raízes limitando o crescimento das novas proposições.

Hoje, muitos princípios e preceitos constitucionais padecem de ineficácia indevida por hermenêutica restritiva e desatualizada e/ou ausência de norma regulamentadora, que não se produz, freqüentemente por força da desconformidade com as totalizantes normas de mercado que passaram a reger a sociedade. Sendo o administrador também um intérprete constitucional, em sua ação no dia a dia da gestão pública diversos artigos foram tornados letra morta. O legislador não fez a norma reguladora do preceito, o poder público ignorou-o e o juiz formalista muitas vezes não o considerou, aguardando a regulamentação.

Não é que de tal quadro não se tenham produzido avanços, pois é inegável que, no sistema jurídico inaugurado pela Constituição de 1988, a simples existência de estatutos e institutos como o ECA, o CDC, o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Cidade, o projeto do Estatuto da Igualdade Racial, e estruturas como o SUS e outros sistemas unificados em gestação (assistência social, cultura, etc), pôs em pauta discussões relevantes para o progresso da sociedade, municiando de ferramentas para defesa de seus direitos segmentos antes desprezados ou desprotegidos e dando respaldo aos bem intencionados agentes de mudança em sua luta desigual.

Mas os próceres do atraso, os agentes do conservadorismo, fartaram-se nas supostas lacunas, e deixaram ao relento da inação muitas providências e estruturas administrativas que viabilizariam a implementação de diversos direitos. A lógica da maximização do lucro não se harmoniza com a efetiva proteção aos desassistidos. Não interessa a um aparelho de governo ocupado por interesses privados o dispêndio da prioridade à infância, investimento claramente de caráter abstrato e de longo prazo. E a tímida literalidade do ECA permite que pedófilos cheguem ao quarto de nossos filhos, pela internet, sem que saibamos.

Mas os princípios e preceitos lá estão, a exigir nova hermenêutica. E, insistiremos, com força normativa e integradora do ordenamento, o que não devem ignorar os magistrados no exame dos casos trazidos a seu juízo. Leciona FÁBIO KONDER COMPARATO:

Os juízes não podem ignorar que todas as normas relativas a direitos humanos, inclusive as normas de princípio, são de aplicação direta e imediata. (...) Por conseguinte, quando estiver convencido de que um princípio constitucional incide sobre a matéria trazida ao seu julgamento, o juiz deve aplicá-lo, sem necessidade de pedido da parte". [09] (grifo nosso)

Tal se aplica, como à frente relembraremos, inclusive a eventuais lapsos ou supostos confrontos entre o art. 227 da Constituição e as disposições do ECA, que especializou em lei a vontade do Constituinte, sem entretanto, a exaurida. A necessidade de efetivar a proteção integral, o papel, hoje a cargo dos juízes, mais que de tutela, de promoção dos novos direitos, parecem não se coadunar com a restrição total à edição de Portarias pelo Juiz Menorista. A acolher-se a restrição, ter-se-á clara lacuna normativa a ser resolvida, eis que a minúcia do ECA não cobre todas as hipóteses abrangidas pelo art. 227 da CF/88.

PREENCHIMENTO DE LACUNA PELO PODER JUDICIÁRIO

Para sanar parte do problema das supostas lacunas, o Poder Judiciário tem sido chamado a atuar [10]. Tal circunstância torna necessária uma atitude hermenêutica ativa e uma jurisdição enérgica, por evidente que os novos direitos são direitos em processo, direitos em construção e aperfeiçoamento.

Obrigam-se, os operadores do direito antenados com o caráter teleológico do ordenamento, à revisão da estática positivista, em favor de uma postura que veja os sistemas jurídicos não como rígidas estruturas hierárquicas e verticais, mas sim como ‘teias jurídicas’ (como se depreende do pensamento de Norberto Bobbio), que se expandem e interligam em todas as direções, garantida, ao centro, a primazia constitucional, com relevo para os princípios fundamentais e os objetivos da República, dentre os quais sobressai a meta de "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (art. 3º, I).

Há, por vezes, que abandonar a tese do silogismo rígido, para buscar a decisão justa, para cuja fundamentação podem contribuir um tratado internacional invocado em complemento a uma lei estadual, e, acima de tudo, um princípio constitucional que se soma a um julgado federal para cobrir imprecisão ou inadequação de normativa estadual.

Na tradição dogmática que preside as práticas judiciárias pátrias tal concepção ainda pode agredir a sensibilidade de muitos ‘matemáticos’ do Direito. Muitos kelsenyanos – do Kelsen de primeira lavra – subsistem, no país do "vale o escrito", a imaginar que "direito, para o jurista, deveria ser encarado como norma, não se misturando com fato social" [11]. Assim, rigidez, neutralidade e forma seriam sinônimos de Direito. Romper com essa tríade conceitual seria romper com o próprio Direito.

Entretanto, o operador deve ter sempre em mente o conhecido dito que se alçou a brocardo jurídico, em que EDUARDO CÓUTURE sabiamente recomenda: "quando encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça". [12] Ou seja, o Direito não tem significado se não for uma ferramenta de justiça. E para atingir esse fim maior, é função do julgador valorar o caso concreto frente à norma posta.

Com tal constatação partiu o eminente Miguel Reale, para consagrar sua formulação de que o direito é fato, valor e norma. Ao pôr a norma, o legislador valora comportamentos em face da cultura e objetivos de uma sociedade. Após desvendar a exatidão de tais conexões pelo caminho hermenêutico, cabe ao julgador valoração própria, que atualize os vínculos da norma ao caso concreto, num trânsito necessário entre o objetivo (norma) e o subjetivo (hermenêutica) e deste (atualização hermenêutica), novamente àquele (aplicação concreta).

O subjetivo não pode, por óbvio, prescindir do humano. E o humano é, necessariamente histórico, contextualizado. Por isso é que computadores nunca produzirão julgados, o que, eventualmente, fariam, caso desnecessária a valoração. O Direito seria um apertar de botões. Mas a própria enunciação do fato (‘fulano roubou’) já guarda juízo de valor.

Assim, a doutrina acata e estimula a tese da atualização valorativa, como afirma ANDERSON SANT’ANA PEDRA:

No Iluminismo se assentou a idéia de que as normas deveriam ser estabelecidas com clareza e segurança jurídica absoluta, por intermédio de uma elaboração rigorosa, a fim de garantir, especialmente, uma irrestrita univocidade a todas as decisões judiciais e a todos os atos administrativos, devendo ser o juiz o escravo da lei. Neste contexto, a segurança jurídica se confundia com a noção de justiça. Contudo, a partir do século XIX esta concepção começou a vacilar.A norma jurídica por natureza é geral, abstrata, fixa tipos, referindo-se a uma série de casos indefinidos e não a casos concretos.Urge assim a necessidade de estudo quanto ao momento da aplicação da norma pelo operador do direito, ou seja, submeter um caso particular ao império de uma norma jurídica.A norma jurídica só se movimenta ante um fato concreto, pela ação do aplicador do direito, que é o intermediário entre a norma e os fatos da vida. [13](grifo nosso)

No mesmo trabalho o autor produz citação importante que realça o que aqui se defende:

CARLOS MAXIMILIANO com sua lavra indelével há tempo firmou: "A palavra é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias idéias, valores mais amplos e profundos do que os resultantes da simples apreciação literal do texto." [14] (grifo nosso)

Bem se vê que não se pode prescindir de atualização valorativa numa sociedade tão dinâmica e mutante. Nunca as mudanças se deram em tamanha velocidade, nos costumes, nas estruturas sócio-políticas, na economia, nas organizações familiares. O tempo em que as determinações justinianas ou do Código Napoleônico podiam ser imaginadas pelos racionalistas como obras acabadas, a nosso ver, se foi, com outras ilusões iluministas igualmente bem intencionadas, mas que não resistiram à pós-modernidade. Obscurantismo seria aplicar a letra da lei sem atualização axiológica. Daí, o que leciona REALE:

"Há certos casos em que a aplicação rigorosa do Direito redundaria em ato profundamente injusto. Summun jus, summa injuria. Esta afirmação para nós é uma das belas e profundas da jurisprudência romana, porque ela nos põe em evidência a noção fundamental de que o Direito não é apenas sistema lógico-formal mas, sobretudo, a apreciação estimativa ou axiológica da conduta. Diante de certos casos, mister é que a justiça se ajuste à vida". [15] (grifo nosso)

E, transitando entre doutos, recuemos mais de dois mil anos, a CÍCERO:

"(...) Muitas vezes se é injusto atendendo-se muito à letra, interpretando a lei com tal agudeza que ela se torna artificiosa. De onde vem o provérbio: Summun jus, summa injuria". [16]

As circunstâncias impuseram definitivamente a superação da neutralidade extremada, guardada na literalidade, da mecânica do ‘poder nulo’ pretendido por MONTESQUIEU ao averbar que os Juízes não seriam "mais do que a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que não podem moderar nem a força nem o rigor das leis" [17].

A lei não tem como garantir a eficácia do silogismo perfeito frente aos desafios legais e éticos de um mundo on-line, em que crimes são cometidos ao toque de uma tecla, em tempo real. Tempos em que um passageiro pode, pelo celular, surpreender-se tripulando não o avião em que embarcou, mas um míssil terrorista.

A lei não tem como prever todas as hipóteses que se impõem com a atual velocidade dos acontecimentos. Há cerca de trinta anos, discutíamos a viabilidade do divórcio e hoje estamos às voltas com a hipótese da adoção de crianças por casais de homoafetivos. Das mal acabadas discussões éticas quanto ao ‘bebê de proveta’, passamos, quase sem escalas, aos dilemas da manipulação genética.

Nunca o rio de Heráclito se moveu tão rápido, e diante de tal quadro, não pode o juiz congelar sua consciência, ser um "conviva de pedra", como conclama Nagib Slaibi Filho:

"Os autores antigos até mesmo diziam que o juiz seria, no processo, o "conviva de pedra". Mas o juiz tem o dever moral e jurídico de não ser o "conviva de pedra", mesmo porque não se despe de seus caracteres humanos" [18]

A atualização hermenêutica é necessária, particularmente, num país em que o Código Civil, após décadas, "já nasce velho" [19] e a Constituição, por detalhista – o que, tendo mérito estratégico, impõe dificuldade operacional –, é remendada a toda hora. Mais do que uma letra, que envelhece, a lei guarda um espírito, que se mantêm e se desvela ao hermeneuta de busca honesta. Por isso, não pode a sociedade prescindir da atualização hermenêutica, da criatividade jurisprudencial e da proatividade administrativa.

Como ao correr deste se verá, não é que se despreze o rigor, o rito ou a forma ao sabor de conveniências instáveis e conjunturas mutantes. Fosse assim, a insegurança jurídica imperaria, produzindo um quadro de incerteza que ameaçaria o próprio Estado Democrático de Direito. Mas não se olvide a máxima de REALE: "O Direito é ordenação que dia a dia se renova". [20]

É o que demandam, mais do que todos, os direitos da infância e da adolescência.

Não se propõe aqui uma aventura de egos, a inovação descabida, nem mesmo o "Direito Alternativo" que muitos entenderam – equivocadamente, nos parece – como oportunismo ideológico travestido de pensamento jurídico [21]. Mas há que se conhecer das peculiaridades especiais de novos estatutos que demandam criatividade jurisdicional e administrativa sob pena de inviabilizar a efetivação da vontade do constituinte e do legislador.

Com vênia para o prosaico, se a urgência determina que há um parafuso a ser ajustado e a regra técnica indica uma determinada ferramenta (chave ‘philips’) como meio eficaz para tal objetivo, grave é, na ausência da mesma, vedar-se o empréstimo de mecanismo (canivete) ao qual se atribua novo uso ou qualidade, a partir da qual se produziria o mesmo resultado.

Ou seja, não se faz boa Justiça com a predominância da forma sobre o objetivo. Se os fins não justificam os meios, é certo que os meios não podem tornar-se camisa de força para a obtenção da Justiça. Médicos hábeis, em urgência num descampado, não deixam de realizar traqueostomia por ausência de cânula adequada. Um tubo de caneta vale, quando se trata de salvar uma vida.

Nesse espírito virou lenda e inspiração a corajosa inventiva de Sobral Pinto ao recorrer à Lei de Proteção aos Animais, na falta de melhor instrumento em regime de exceção, como era a ditadura de Vargas, para defender os direitos do prisioneiro político Luiz Carlos Prestes.

Não esqueçamos também da experiência de criação dos Juizados Especiais, que tanto honra a história do Judiciário brasileiro. Foi um fruto da inovação e da experimentação que terminou por se consolidar institucionalmente. Somente a letra fria da norma e a tradição administrativa não autorizariam o feito. Foi preciso espírito desbravador que visse os fins preconizados pelo ordenamento, para adequar-lhe os meios. [22]

Na mesma linha de inspiração anotou-se que "segundo proclamou o recente IX Congresso Mundial de Direito Processual, é em dispositivo do nosso CPC que se encontra a mais bela regra do atual Direito Processual, a saber, a insculpida no art. 244, onde se proclama que ‘quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade’" (STJ – RT 683/183). [23]

ECA X REALIDADE

Reportando-nos ao contexto histórico de surgimento do ECA, registremos que o mesmo, nascendo nos mesmos ventos democráticos que trouxeram a ‘Constituição Cidadã’, sucede e se contrapõe ao repressivo Código de Menores da ditadura militar. Neste, herdeiro da concepção de ‘situação irregular’ que predominou desde o início do século passado, eivado ainda pelo conceito de ‘segurança nacional’, o ‘menor’ pode ser tido como fonte de problemas e alvo de repressão institucionalizadora (abrigo-> FEBEM-> caserna). Somente atenuada pela ação humanista de decanos da Justiça do Menor como Dr. Alyrio Cavalieri.

A isso se contrapõe o conceito de ‘criança e adolescente’ como trazido pelo ECA: sujeitos de direitos, depositários do futuro da nação e, portanto, merecedores de proteção especial e integral, em face da natural fragilidade de sua condição de pessoas em formação.

Logo, é compreensível que os críticos da ação administrativo-jurisdicional de natureza especial exercitada pelo Juízo Menorista - particularmente quando se configura na forma de edição de Portarias normativas - receiem não só a possibilidade de quebra do princípio da legalidade, mas um retorno à conduta repressiva que a tantos estigmatizou, confinando à exclusão gerações de brasileiros institucionalizados em presídios mascarados.

Num país que fez uma República repleta de episódios de autoritarismo e exceção, não só é compreensível, como salutar, que haja atalaias que se ponham em prontidão contra qualquer regulação ou exercício de poder que lhes pareça autoritário e irrazoável. Mas, defendemos, não é o que ocorre na ação do Juiz da Infância, quando, dentro de certos parâmetros, edita portarias normativas, como veremos.

Às vezes, tal dilema filosófico-doutrinário parece querer pôr numa falsa confrontação os defensores de restrição aos poderes do Juiz da Infância no papel de progressistas defensores das liberdades e paladinos do legalismo democrático e os Juízes que baixam portarias direcionadas à defesa da infância como arautos do arbítrio e déspotas sequer ilustrados [24]. Nada mais falso.

Reposicionemo-nos no contexto. A Constituição se promulga em 1988. O ECA em 1990. Entre ambos, a queda do Muro de Berlim e a consolidação do modelo neoliberal, com maximização do lucro, precarização da mão de obra, informatização acelerada a serviço do capital e nefastas conseqüências, como exacerbação do individualismo e do ceticismo, erotização precoce da infância, etc.

Daí que aquele modelo de estado social, pactuado na letra mor da cidadania, não se viabiliza no mundo prático. O hedonismo sufoca a solidariedade. As liberdades democráticas alcançadas terminam por, aparelhadas, servir ao próprio capital que sustentara a ditadura.

Que livre escolha eleitoral se a máquina de manipulação (poder econômico, pesquisas, marqueteiros e ‘candidatos-sabonete’) nunca foi tão forte? Que direito de greve, se não há emprego? Que direito à educação, se botamos alunos na escola, mas esta foi aviltada? Que direito à saúde, se a privatizamos? Que respeito aos idosos, se arruinamos suas aposentadorias?

Não esqueçamos em que deu "o Brasil criança na alegria de se abraçar", jingle que, desde a campanha do Partido dos Trabalhadores em 1989, embalou todo um período vigoroso da história brasileira, para terminar em tempos de "valerioduto", como uma canção triste do passado.

Assim, leitores do ECA precisam lê-lo sem ingenuidade, trazendo-o não ao mundo imaginado em 1990, mas ao mundo real, que se deteriorou de forma ‘velox’, se nos permitem o trocadilho, levando de roldão as boas perspectivas estabelecidas em torno das políticas voltadas à infância.

Não se perdeu a guerra da mudança, mas as derrotas nas batalhas recomendam a alternância na tática. O apego à letra fria de uma norma, em interpretação equivocada, pode servir não aos progressistas, mas sim aos conservadores, romanistas no pior da expressão, dos que querem os indesejados, os defeituosos, os diferentes, os ‘desnecessários’ atirados aos esgotos do sistema.

Com tal leitura crítica e, a nosso ver, progressista, ver-se-á que é imprescindível a ação do Juiz da Infância, inclusive, com a edição de Portarias. Existe um equilíbrio social a ser conquistado, já que a balança, há 500 anos, pende para o lado do grande capital. Nos lixões catando comida, ou nos postos de gasolina vendendo seus corpos por um sanduíche, a nossa infância, no concreto, não vale uma pluma. Portanto, aquele Juiz de Menores, cuja ação se queria podar, como Juiz da Infância e da Juventude, nos quadrantes do ECA, passa a ser um elemento chave nessa luta anunciada.

Assim é que a jurisdição de natureza especial do Juiz da Infância impõe, em nome dos direitos da infância e da adolescência, a relativização de certos direitos da sociedade. Se, por exemplo, o Juiz se vê compelido a inibir alguma ação empresarial, e se isso pode ser inaceitável no corpo das relações jurídicas regulares [25], não o é na jurisdição menorista.

Ressalvados os papéis destacados dos Conselhos e do Ministério Público, fez-se do Juiz da Infância um depositário da defesa das gerações futuras. Atitude progressista é zelar para que nossas ações de hoje não destruam seu amanhã. A livre empresa hoje não se acha cingida pelo princípio do desenvolvimento sustentável? Igual incompreensão enfrentam, por vezes, os aplicadores da lei ambiental ao impedirem a fábrica que geraria empregos, em defesa de manter-se em pé a floresta que resguarda um ecossistema. Novos valores se consolidam sobre a relativização de velhas idéias. [26]

Da mesma forma que o progresso não deveria ser um fundamento absoluto para a ação humana, nem o princípio da inércia da jurisdição ou até mesmo as liberdades democráticas [27] deveriam ser tidas como permissivo completo, principalmente quando postas em confronto com os direitos da infância. Os fáceis desatinos ‘democratistas’ de hoje cobram preço impagável no amanhã. O progresso feito à custa das ontem inocentes queimadas, hoje se firma como gênese de desastres climáticos incontroláveis.

Recorramos novamente à perspicácia de BOBBIO, quando discorreu sobre os argumentos dos defensores do direito de propriedade, relativizados ante a emergência dos direitos sociais, para lembrar que o "fundamento absoluto não é apenas uma ilusão; em alguns casos, é também um pretexto para defender posições conservadoras" [28].

O ECA DEVE SER LIDO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO

A ação do Poder Judiciário para suprir lacunas normativas é um exercício, quando efetuado de forma tecnicamente sustentável, a que poucos se contrapõem. Até porque a lei veda ao Juiz a hipótese de abster-se de decidir sob alegação de "lacuna ou obscuridade" da lei. Deve recorrer, na ausência de norma específica, à "analogia, aos costumes e aos princípios gerais de Direito" [29].

Por noviço, o Direito da Infância e da Adolescência nos marcos postos pelo ECA, mais que todos os outros, se encontra em franco desenvolvimento. Do saber jurídico, aplicado com boa técnica e sensibilidade à prioridade social e preocupação humanitária que caracterizam as urgentes demandas do segmento, espera-se criatividade jurisprudencial e uma visão prospectiva, que se ponha à frente dos problemas que vitimam nossas crianças e jovens.

Na jurisdição da Infância e da Juventude o magistrado, cotidiana e necessariamente, atuará no preenchimento de lacuna. A própria Portaria é, freqüentemente, um preenchimento de lacuna, uma prestação jurisdicional de caráter especial que explicita uma norma e aplica um preceito a uma situação fática em que, na ausência de cobertura judicial, a criança ou adolescente estará exposta a situação indesejável à sua segurança ou à sua formação.

A Constituição Federal, como dissemos, é o projeto a ser consultado pelos executores da obra, sejam engenheiros, mestres de obras ou pedreiros. Daí a tese que prega a ‘constitucionalização do direito civil’, tendo a Carta Magna como norte e guia. Dessa leitura, não há como imaginar que o ECA proíba a edição de Portarias.

Qual é o valor mais relevante a ser defendido? A restrição ao Juiz, com a redução do princípio da legalidade a uma leitura estreita da lei menorista, no suposto nome das liberdades democráticas, ou a constitucionalmente determinada defesa da infância que, freqüentemente, estará ao relento sem a pronta ação desse mesmo juiz?

Achamos que, neste caso, não deveria haver muitas dúvidas. Propomos atenção, mesmo com restrições e discordâncias pontuais, ao espírito vibrante e ousado que instruiu o polêmico discurso com que o magistrado francês OSWALD BAUDOT [30], recebeu novos colegas juízes:

"(...) Em vossas funções, não deveis dar exagerada importância à lei, e de um modo geral, desprezai os costumes, as circulares, os decretos e a jurisprudência. Deveis ser mais sábios do que o Tribunal de Justiça, sempre que se apresentar uma ocasião. A justiça não é uma verdade estagnada em 1810. É uma criação perpétua. Ela deve ser feita por vós. Não espereis o sinal verde de um ministro, ou do legislador, ou das reformas sempre em expectativa. Fazei vós mesmos a reforma. Consultai o bom senso, a eqüidade, o amor do próximo antes da autoridade e da tradição. A lei se interpreta. Ela dirá o que quiserdes que ela diga. Sem mudar um til, pode-se, com os mais sólidos considerandos do mundo, dar razão a uma parte ou a outra, absolver ou condenar à pena máxima. Desse modo, que a lei não nos sirva de álibi. (...)

(...) Sede parciais. Para manter a balança entre o forte e o fraco, o rico e o pobre, que não têm o mesmo peso, é preciso que calqueis um pouco a mão do lado mais fraco da balança. Esta é a tradição capetiana. Examinai sempre onde estão o forte e o fraco, que não se confundem necessariamente com o delinqüente e sua vítima. Tende um preconceito favorável pela mulher contra o marido, pelo filho contra o pai, pelo devedor contra o credor, pelo operário contra o patrão, pelo vitimado contra a companhia de seguros, pelo enfermo contra a Previdência Social, pelo ladrão contra a polícia, pelo pleiteante contra a justiça (...)" (grifo nosso)

Sobre o autor
Denilson Cardoso de Araújo

Serventuário de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Escritor. Palestrante.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Denilson Cardoso. O edifício da proteção integral precisa de portaria.: Sobre a edição de portarias normativas pelo juiz da Infância e da Juventude. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1359, 22 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9632. Acesso em: 22 nov. 2024.

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