O presente artigo busca, de forma clara e concisa, trazer linhas gerais acerca do controle de convencionalidade das leis brasileiras, bem como avaliar, sob o prisma da constitucionalidade e da convencionalidade, a compatibilidade da Lei nº 14.230/21 e suas alterações à Lei de improbidade Administrativa Lei nº 8.429/92.
Para tanto, buscaremos fornecer breves explicações acerca dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos que visam combater a corrupção e como esses diplomas se aplicariam na aferição de validade das normas internas brasileiras, com ênfase na incidência dos diplomas internacionais e da Constituição Federal à Lei nº 14.230/21.
Após, faremos a análise dos dispositivos reformados da Lei de Improbidade Administrativa, trazendo à baila aqueles que reputamos incompatíveis com a ordem jurídico-constitucional, seja pela sua inconformidade com a Carta Magna, seja pela incompatibilidade com a ordem jurídica supranacional, esta devidamente incorporada ao Estado brasileiro. Ademais, iniciaremos vislumbrando os principais Tratados Internacionais contra a Corrupção dos quais o Brasil é signatário.
1. DAS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS E DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE NO BRASIL
A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, está em vigor desde 1978. Ela engloba 22 (vinte e dois) Estados-partes no continente americano, incluindo o Brasil, e integra o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH). Ela foi promulgada através do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992 (BRASIL, 1992).
O Brasil, no momento de sua adesão ao CADH, submeteu-se à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), obrigando-se a respeitar suas decisões. A competência da Corte IDH abrange todos os casos relativos à aplicação dessa e de outras convenções de direitos humanos no âmbito do SIDH.
Por outro lado, o SIDH tem dois objetivos na comunidade Interamericana: o avanço dos direitos humanos dentro dos Estados partes e a prevenção de retrocessos (CEIA, 2013). Porém, o que se tem observado são reiteradas condenações do Brasil, seguidas por constantes descumprimentos das sentenças emanadas da Corte IDH, por desrespeito às garantias judiciais e aos direitos de proteção judicial previstos na CADH (COIMBRA, 2014, p. 65).
A Constituição Federal de 1988 já previa a incorporação dos tratados internacionais à ordem jurídica interna em seu art. 5º. Vejamos:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Tal fenômeno é chamado de abertura constitucional, segundo o qual os tratados podem vir a ter status constitucional (PIOVESAN, 2013). Além disso, os tratados internacionais de direitos humanos têm aplicabilidade imediata, devendo ser aplicados por todas as autoridades nacionais, inclusive as já mencionadas, sem necessidade de prévia regulamentação:
Art. 5º [...]:
[...]
§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
Essa ideia é reforçada pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, promulgada por meio do Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009. No artigo 26, ela traz o princípio pacta sunt servanda, expressando a obrigatoriedade dos ajustes entre as partes no Direito Internacional.
Por outro lado, o Brasil adotou tanto o modelo norte americano, quanto austríaco de controle de constitucionalidade (MORAES, 2016). Assim, é possível o controle abstrato ou concentrado e o controle concreto ou difuso, este último realizado por todos os juízes, inclusive os magistrados de primeira instância.
A Corte Interamericana é a intérprete máxima da Convenção Interamericana e de todos os tratados interamericanos de direitos humanos. Portanto, o entendimento firmado pela Corte Interamericana deve ser reproduzido pelos tribunais nacionais e por todos os juízes de primeira instância.
No Sétimo Caderno de Jurisprudência sobre Controle de Convencionalidade, a Corte Interamericana delineou os contornos do referido instituto, buscando realçar sua obrigatoriedade e ampla aplicação (OEA, 2020):
Consiste em verificar a compatibilidade das normas e demais práticas internas com a CADH, a jurisprudência da Corte Interamericana e os demais tratados interamericanos dos quais o Estado é parte.
ii) Deve ser realizado ex officio por todas as autoridades públicas.
iii) O seu exercício é feito no âmbito da competência de cada autoridade. Portanto, sua execução pode implicar a supressão de normas contrárias à CADH ou sua interpretação de acordo com a CADH.
iv) A obrigação sempre presente após o controle de convencionalidade é a de realizar um exercício hermenêutico que compatibilize as obrigações do Estado com seus regulamentos internos.
v) Os regulamentos internacionais e a jurisprudência da Corte Interamericana, tanto contenciosa quanto consultiva, são padrões de convencionalidade.
vi) A obrigação de realizar o controle decorre dos princípios do direito internacional público e das próprias obrigações internacionais do Estado assumidas no momento de se tornar parte da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. [tradução livre]
Vê-se que o controle de convencionalidade também abrange a compatibilização das normas internas às obrigações internacionais assumidas. No Caso Almonacid Arellano e outros Vs. Chile, a Corte IDH esclareceu que o controle de convencionalidade pode implicar na expulsão das normas contrárias às convenções interamericanas ou sua interpretação de acordo com estas (OEA, 2019).
O próprio Supremo Tribunal Federal já vem realizando controle de convencionalidade, por exemplo, proibindo a aplicação de norma da própria Constituição Federal, claramente não convencional:
[...] diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na CF/1988, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da CF/1988 sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, LXVII) não foi revogada (...), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria (...). Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. (...) Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao PIDCP (art. 11) e à CADH -- Pacto de São José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5º, LXVII, da CF/1988, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel.
[RE 466.343, rel. min. Cezar Peluso, voto do min. Gilmar Mendes, P, j. 3-12-2008, DJE 104 de 5-6-2009, Tema 60.]
Porém, essa competência não se circunscreve apenas à Suprema Corte. O juiz de primeira instância também pode e deve controlar a convencionalidade das leis nacionais que violem os tratados interamericanos de direitos humanos. No Caso Cabrera García e Montiel Flores Vs. México, A Corte IDH assentou que
[...] a justiça em todos os níveis é obrigada a exercer ex officio um controle de convencionalidade entre as normas internas e a Convenção Americana [...]. Nessa tarefa, os juízes e órgãos vinculados à administração da justiça devem levar em conta não apenas o tratado, mas também a interpretação do mesmo feita pela Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana (OEA, 2019).
Em seu turno, o Princípio Pro Homine determina que seja aplicada a norma mais protetiva e mais garantidora dos direitos humanos, quando analisado o caso concreto. Em complemento, os tratados e convenções internacionais de direitos humanos estabelecem standards mínimos de proteção, que são complementados pelos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no sistema regional interamericano (AMORIM; TORRES, 2017, p. 1).
O controle de convencionalidade no Brasil, até bem pouco tempo, era assunto de conhecimento de poucos juristas. Conforme o tempo passa, novos entendimentos foram formados no âmbito dos Tribunais pátrios, sobretudo da mais alta Corte de Justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal, e uma nova concepção sobre o tema foi difundida no meio acadêmico e técnico.
Em se tratando do controle de convencionalidade, ou seja, do controle das normas infraconstitucionais brasileiras, tomando como parâmetro de aferição da validade Tratados Internacionais de Direitos Humanos, tal fenômeno ganhou propulsão a partir dos julgamentos dos HC 82.959 e RE 466.343, ambos julgados no seio do STF.
A partir desses julgados emblemáticos, foi construída a base do sistema da convencionalidade das normas. Tratados Internacionais de Direitos Humanos passaram a ocupar lugar de superioridade hierárquica em relação a todas as normas de nosso ordenamento jurídico, ressalvadas as de cunho constitucional, e passaram a ditar, ao lado da Carta Magna de 1988, a validade de todas as demais normas jurídicas.
Dessa forma, a legislação passa a ter um duplo controle de validade. Um que envolve sua compatibilidade com a Constituição (controle de constitucionalidade) e outro que diz respeito à sua conformidade com a normativa supranacional quando essa cuidar de Direitos Humanos (controle de convencionalidade).
No primeiro caso, do controle da constitucionalidade, essa análise pode ser feita de forma difusa, por todos os membros do Poder Judiciário desse país, ou se exercida de forma concentrada por determinadas Cortes, a exemplo do Supremo Tribunal Federal, quando a compatibilidade tiver por parâmetro a Constituição Federal, ou pelos Tribunais de Justiça, quando o parâmetro for uma Constituição Estadual.
No outro caso, o controle é exercido apenas na forma difusa, mesmo quando o julgamento ocorrer no STF. Cuidando a matéria da convencionalidade da legislação nacional de ponto incidental na matéria principal de mérito apreciada no caso concreto.
Tendo em vista esse marco jurídico de valoração das Normas Internacionais de Direitos Humanos, uma nova cultura jurídica passou a ser forjada no Brasil, mais focada na racionalidade e coerência das normas em um sistema global, do qual o Estado brasileiro é apenas mais um integrante.
Com base nessa nova forma de ver as leis internas de um país é que analisaremos as modificações implementadas pela Lei nº 14.230/21 e sua validade sob duas perspectivas distintas, a da convencionalidade e a da constitucionalidade.
O combate à corrupção é direito humano e fundamental, uma vez que é garantia do cumprimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
1.1. DOS TRATADOS INTERNACIONAIS CONTRA A CORRUPÇÃO
Desde 1996, a corrupção começou a ser mais detidamente enfrentada por acordos internacionais em diversos países, de modo que o tema ganhou tratamento coletivo na esfera internacional, transformando-se em foco de encontros bilaterais e fóruns promovidos pela Organização das Nações Unidas para jogar luzes em um assunto que tanto corrói o tecido social em diversas frentes.
Nesse tom, o Brasil já ratificou três grandes tratados sobre o tema. São eles:
a Convenção Interamericana contra a Corrupção, da Organização dos Estados Americanos OEA, adotada em 29 de março de 1996, em Caracas, e promulgada pelo Decreto nº 4.410 em 08 de outubro de 2002;
a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos OCDE, realizada em 17 de dezembro de 1997, em Paris, e internalizada no Brasil em 30 de novembro de 2000; e
a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003, assinada pelo Governo Brasileiro em 09 de dezembro de 2003 e promulgada por meio do Decreto n° 5.687, de 31 de janeiro de 2006.
Para fins de compreensão deste tópico, realizamos uma apreciação comparativa da nova Lei de Improbidade Administrativa em face da Convenção Interamericana contra a Corrupção e da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, tendo em vista que referidos normas são Tratados Internacionais de Direitos Humanos, com status de norma supralegal e, portanto, conformadoras da legislação aprovada em território nacional.
1.2. DA CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA A CORRUPÇÃO
Em primeiro lugar, cumpre destacar que a Convenção Interamericana contra a Corrupção foi o primeiro tratado internacional celebrado pela República Federativa do Brasil que cuidou da corrupção dos agentes públicos no âmbito interno dos países signatários, sendo incorporada ao nosso ordenamento jurídico no ano de 2002.[1]
Cumpre registrar que referido Tratado Internacional de Direitos Humanos TIDH, em seus considerandos, demonstra como a corrupção está diretamente relacionado a vasta gama de direitos fundamentais, visto que mostra ser um conjunto de práticas que degeneram as instituições e corroem o tecido social.
Nesse sentido, vejamos alguns considerandos daquele TIDH:
CONVENCIDOS de que a corrupção solapa a legitimidade das instituições públicas e atenta contra a sociedade, a ordem moral e a justiça, bem como contra o desenvolvimento integral dos povos;
CONSIDERANDO que a democracia representativa, condição indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região, exige, por sua própria natureza, o combate a toda forma de corrupção no exercício das funções públicas e aos atos de corrupção especificamente vinculados a seu exercício;
PERSUADIDOS de que o combate à corrupção reforça as instituições democráticas e evita distorções na economia, vícios na gestão pública e deterioração da moral social;
TENDO PRESENTE que, para combater a corrupção, é responsabilidade dos Estados erradicar a impunidade e que a cooperação entre eles é necessária para que sua ação neste campo seja efetiva; (grifos nossos)
Esses considerandos, por si sós, já deveriam ser suficientes para se questionar a validade da Lei nº 14.230/21, que terá adiante seus dispositivos analisados, ponto a ponto, aferindo sua compatibilidade com ordenamento jurídico contemporâneo.
Em seu corpo, a Convenção Interamericana contra a Corrupção fornece, em seu art. 3º, traz o dever de se criar medidas preventivas contra os atos de corrupção ocorridos dentro do território do Estado signatário. No item 1 do referido artigo, a Convenção informa o relevante papel na elaboração de normas que visem impedir a prática de atos de corrupção. Vejamos:
Para os fins estabelecidos no artigo II desta Convenção, os Estados Partes convêm em considerar a aplicabilidade de medidas, em seus próprios sistemas institucionais destinadas a criar, manter e fortalecer:
1. Normas de conduta para o desempenho correto, honrado e adequado das funções públicas. Estas normas deverão ter por finalidade prevenir conflitos de interesses, assegurar a guarda e uso adequado dos recursos confiados aos funcionários públicos no desempenho de suas funções e estabelecer medidas e sistemas para exigir dos funcionários públicos que informem as autoridades competentes dos atos de corrupção nas funções públicas de que tenham conhecimento. Tais medidas ajudarão a preservar a confiança na integridade dos funcionários públicos e na gestão pública.
Diante desse singelo dispositivo, resta evidenciado que os Estados aderentes ao diploma supranacional, que se comprometeram a combater atos de corrupção, devem adotar políticas voltadas à sua prevenção, de forma contínua e ininterrupta, sem soluços de retrocesso. Mediante compromisso voluntariamente firmado pelo Brasil, este se comprometeu em garantir fenômeno jurídico denominado efeito cliquet no enfrentamento da corrupção.
Segundo esse efeito, as modificações implementadas no ordenamento jurídico somente serão consideradas válidas se efetivamente promoverem o progresso, conforme ideologia anteriormente delineado pelo coletivo de Estados signatários. Assim, a legislação jamais pode regredir, de modo a permitir um tratamento mais brando da matéria.
Como exemplos desse fenômeno de vedação do retrocesso, podemos mencionar medidas voltadas à preservação ambiental, mecanismos de proteção dos Direitos Humanos e medidas de enfrentamento à corrupção. Com efeito, as manifestações emanadas pelo Estado-parte do Tratado Internacional não podem implicar retrocessos nesses campos, sob pena de invalidade da medida ou norma por ele tomada. O único caminho possível é no sentido de intensificação das medidas, nunca sua flexibilização.
Caso o Representante da nação signatária do pacto internacional queira instituir a flexibilização do combate à corrupção, promovendo a impunidade de gestores e políticos corruptos, deve, antes, em conformidade com o Tratado de Viena de 1969, oferecer denúncia[2] em relação a todas as Convenções contra a Corrupção das quais o Brasil faz parte.
Voltando-se para as modificações trazidas pela Lei nº 14.230/21, destacamos inicialmente a revogação do art. 4º da Lei de Improbidade Administrativa. Vejamos o teor do dispositivo mencionado:
Art. 4° Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos.
Provavelmente, a primeira indagação que todo jurista se faz ao analisar a Lei nº 14.230/21 é a seguinte: qual a razão da revogação do art. 4º da Lei de Improbidade Administrativa? Claramente se trata de um retrocesso normativo.
O que se espera do Administrador, conforme farta jurisprudência e doutrina sobre a matéria, é o respeito ao ordenamento jurídico, velando o agente público pelo zelo dos princípios basilares da Administração Pública, quais sejam, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência no desempenho de suas atribuições.
Diante do que foi dito até aqui, já é possível concluir que:
A Convenção Interamericana contra a Corrupção trouxe premissas vinculantes no combate constante e evolutivo contra a corrupção;
Diante dos temas intrinsecamente afetos à pessoa humana, esse Tratado Internacional possui natureza jurídica de Tratado Internacional de Direitos Humanos; e
-
Ante a incompatibilidade de qualquer norma interna posterior que conflite com esse diploma, tal dispositivo deve ser afastado em virtude de sua inconvencionalidade com o Tratado.
1.3. DA CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO
Após a ratificação e promulgação da Convenção Interamericana contra a Corrupção acima tratada, o Brasil cuidou, mais uma vez, de incorporar em seu ordenamento jurídico interno outro diploma internacional de combate à corrupção, dessa vez mais abrangente e envolvendo 188 países signatários[3].
Nosso país assinou referido tratado em 9 de dezembro de 2003, sendo esse TIDH efetivamente incorporado à ordem jurídica nacional em 31 de janeiro de 2006. Assim como a Convenção Interamericana, o Tratado celebrado nas Nações Unidas trouxe, em seus considerandos, relevantes aspectos que auxiliam na compreensão das suas diretrizes e objetivos. Vejamos alguns deles:
Preocupados com a gravidade dos problemas e com as ameaças decorrentes da corrupção, para a estabilidade e a segurança das sociedades, ao enfraquecer as instituições e os valores da democracia, da ética e da justiça e ao comprometer o desenvolvimento sustentável e o Estado de Direito;
Preocupados, ainda, pelos casos de corrupção que penetram diversos setores da sociedade, os quais podem comprometer uma proporção importante dos recursos dos Estados e que ameaçam a estabilidade política e o desenvolvimento sustentável dos mesmos;
Convencidos, também, de que se requer um enfoque amplo e multidisciplinar para prevenir e combater eficazmente a corrupção;
Reconhecendo os princípios fundamentais do devido processo nos processos penais e nos procedimentos civis ou administrativos sobre direitos de propriedade;
Tendo presente que a prevenção e a erradicação da corrupção são responsabilidades de todos os Estados e que estes devem cooperar entre si, com o apoio e a participação de pessoas e grupos que não pertencem ao setor público, como a sociedade civil, as organizações não-governamentais e as organizações de base comunitárias, para que seus esforços neste âmbito sejam eficazes; (grifos nossos)
É possível extrair desses considerandos, desde já, que a referida Convenção das Nações Unidas se mostra mais abrangente que a Interamericana, analisada no tópico anterior. Nesse ponto, cumpre ressaltar que aquela trata mais detidamente de outras matérias relacionadas à corrupção, inclusive de cunho não penal, ao passo que esta teve como foco o combate à corrupção pela via penal.
Além disso, desde seu primeiro artigo, a Convenção das Nações Unidas evidencia sua finalidade primordial, ao exigir dos Estados-partes não apenas a prevenção e o combate à corrupção, mas também o eficaz enfrentamento de tais práticas. Nessa toada, é pertinente trazer à baila o artigo 1 do mencionado tratado, o qual esclarece a finalidade da convenção:
Artigo 1
Finalidade
A finalidade da presente Convenção é:
a) Promover e fortalecer as medidas para prevenir e combater mais eficaz e eficientemente a corrupção; (grifos nossos)
Ao exigir a promoção e o fortalecimento das medidas para prevenir e combater mais eficaz e eficientemente a corrupção o dispositivo demonstra a intenção que subjaz o documento internacional, claramente informando que retrocessos no enfrentamento da corrupção não serão tolerados pela norma supranacional, posto que as medidas preventivas devem ser fortalecidas, mostrando-se indevidas quaisquer tentativas de enfraquecimento dos mecanismos anticorrupção.
Não bastasse isso, essa Convenção previu, em seu artigo 3º, medidas de prevenção, investigação, punição, além de outras aplicáveis aos agentes que pratiquem atos de corrupção. Esse dispositivo trouxe, no corpo da seu texto, a necessidade de se combater veementemente esses ilícitos. E isso só pode ocorrer se, por óbvio, não se permitir que haja retrocesso na legislação que trata do tema.
Nesse sentido, a par do art. 3º, outros dispositivos cuidam, também, de trazer o mandamento de vedação ao retrocesso em seu texto. Nesse tom, e para facilitar a compreensão da ideia de non cliquet e sua aplicação em se tratando da inconvencionalidade da Lei nº 14.230/21, vejamos os principiais dispositivos do Tratado que versam sobre essa proibição de recuo no combate à corrupção:
Artigo 3
Âmbito de aplicação
1. A presente Convenção se aplicará, de conformidade com suas disposições, à prevenção, à investigação e à instrução judicial da corrupção e do embargo preventivo, da apreensão, do confisco e da restituição do produto de delitos identificados de acordo com a presente Convenção.
Artigo 5
Políticas e práticas de prevenção da corrupção
1. Cada Estado Parte, de conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, formulará e aplicará ou manterá em vigor políticas coordenadas e eficazes contra a corrupção que promovam a participação da sociedade e reflitam os princípios do Estado de Direito, a devida gestão dos assuntos e bens públicos, a integridade, a transparência e a obrigação de render contas.
Artigo 8
Códigos de conduta para funcionários públicos
6. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar, em conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, medidas disciplinares ou de outra índole contra todo funcionário público que transgrida os códigos ou normas estabelecidos em conformidade com o presente Artigo.
Artigo 29
Prescrição
Cada Estado Parte estabelecerá, quando proceder, de acordo com sua legislação interna, um prazo de prescrição amplo para iniciar processos por quaisquer dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção e estabelecerá um prazo maior ou interromperá a prescrição quando o presumido delinqüente tenha evadido da administração da justiça.
Artigo 30
Processo, sentença e sanções
1. Cada Estado Parte punirá a prática dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção com sanções que tenham em conta a gravidade desses delitos.
Artigo 65
Aplicação da Convenção
1. Cada Estado Parte adotará, em conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, as medidas que sejam necessárias, incluídas medidas legislativas e administrativas, para garantir o cumprimento de suas obrigações de acordo com a presente Convenção.
2. Cada Estado Parte poderá adotar medidas mais estritas ou severas que as previstas na presente Convenção a fim de prevenir e combater a corrupção.
Da leitura desses dispositivos é possível depreender que a ideia adotada pela Convenção é de se combater a corrupção com toda rigidez necessária à sua erradicação. Por óbvio, essa é uma tarefa assaz difícil de ser concluída, o que exige o comprometimento dos Estados signatários em envidar esforços nesse sentido.
Em artigo intitulado Do Estudo da Convenção de Mérida e Seus Reflexos no Direito Brasileiro, publicado no XXVI Congresso Nacional do CONPEDI de Direito Internacional dos Direitos Humanos, Renata Pereira Nocera afirmou que:
Tratando-se de uma questão social, política e institucional, a corrupção é constante nas relações sociais e institucionais, tanto no âmbito público como privado. Em todo o mundo, há uma tendência crescente para tornar-se ciente de que a luta contra a corrupção é essencial para alcançar uma sociedade mais justa e eficiente.
Nossa legislação e jurisprudência, até bem pouco tempo, vinha caminhando nesse sentido de combate severo aos atos de corrupção praticados pelos agentes públicos. A punição exemplar de gestores por atos violadores de princípios da boa Administração e a atuação de membros do Ministério Público e agentes e delegados da Polícia Federal na operação Lava-Jato geraram a sensação no povo brasileiro de que a corrupção estava caminhando para a erradicação no Brasil.
Entretanto, nos últimos cinco anos o Brasil passou por sérios contratempos nessa seara, de modo que operações anticorrupção foram desmanteladas sob pretexto de excessos cometidos, bem como novas leis mais flexíveis para o administrador corrupto foram elaboradas.
Sendo o Brasil um dos 188 países signatários, houve, desde o ano de 2003, um comprometimento de nossa nação ao combate vigoroso contra esse mal que assola o Estado brasileiro. Não obstante, leis que contrariam a hierarquia desse Tratado encontram-se, atualmente, em processo de aprovação ou já aprovadas em nosso território, como é o caso da famigerada Lei nº 14.230/21, que afronta diretamente a supralegalidade desse TIDH.
A convenção da Nações Unidas contra a corrupção, tal qual a Convenção Interamericana contra a Corrupção, possui natureza jurídica de Tratado Internacional de Direitos Humanos. Nesse tom, conforme entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento dos HC 82.959 e RE 466.343, tais normas possuem status de supralegalidade, estando acima das leis (atos normativos primários) e abaixo da Constituição Federal.
Assim, uma vez que os TIDH encontram-se acima das espécies normativas promulgadas internamente e previstas no art. 59, incisos II a VII da Carta Magna, faz-se necessário, antes da aplicação irrestrita das Leis pelo Poder Judiciário, a análise conformativa de seus dispositivos em face dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos promulgados e em vigor nessa mesma ordem jurídica.
A imperatividade da Convenção em relação ao ordenamento jurídico interno infraconstitucional do país signatário é observável em alguns dispositivos do referido Tratado, haja vista a previsão expressa de termos que submetem as legislações aos preceitos normativos da Convenção. Vejamos algumas delas:
Artigo 7
Setor Público
2. Cada Estado Parte considerará também a possibilidade de adotar medidas legislativas e administrativas apropriadas, em consonância com os objetivos da presente Convenção e de conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, a fim de estabelecer critérios para a candidatura e eleição a cargos públicos.
3. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar medidas legislativas e administrativas apropriadas, em consonância com os objetivos da presente Convenção e de conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, para aumentar a transparência relativa ao financiamento de candidaturas a cargos públicos eletivos e, quando proceder, relativa ao financiamento de partidos políticos.
De tudo que foi exposto linhas acima, é possível extrair algumas conclusões:
Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos encontram-se em relação de superioridade hierárquica em relação às demais espécies normativas do ordenamento jurídico brasileiro, salvo as de natureza constitucional;
A Convenção Interamericana Contra a Corrupção e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, por resguardarem bens jurídicos extremamente sensíveis ao desenvolvimento saudável da sociedade, possuem natureza jurídica de Tratados Internacionais de Direitos Humanos;
Conforme preceitos constantes das Convenções aqui analisadas, o combate à corrupção nos países signatários dos Tratados deve ser contínuo, ininterrupto e progressivo, não comportando retrocessos; e
A legislação nacional que afronte os princípios e diretrizes dos TIDH deve ser considerada inconvencional, tendo o controle de convencionalidade o poder de suprimir, revogar ou suspender efeitos jurídicos de determinada norma de um país se houver afronta as Tratados Internacionais[4].
Feitas essas breves explanações, passaremos à análise pormenorizada dos dispositivos constantes da Lei nº 14.230/21 e sua (in)compatibilidade com as Convenções que tratam do combate à corrupção.