Há uma única decisão correta para os casos difíceis?
Antônio Marcos de Paulo*
1 INTRODUÇÃO
Trata-se de questão ainda bastante atual nos campos da metodologia e da filosofia do direito. Antes de respondê-la, torna-se necessário primeiramente discorrer sobre as divergências entre as teses positivistas e pós-positivistas ou não positivistas.[1] Isso porque o tema da unidade de solução correta para os casos difíceis[2], que mantém estreita correlação com a discricionariedade e o reconhecimento da força normativa dos princípios, mostra-se muito relevante tanto para as doutrinas positivistas de Kelsen e Hart, que veem o sistema jurídico como um conjunto aberto apenas de regras, quanto para as pós-positivistas ou não positivistas, de Dworkin e Alexy, que reconhecem a existência, também, dos princípios como espécies de normas jurídicas.
2 TEORIAS POSITIVISTAS
De acordo com a teoria escalonada de Kelsen, a interpretação pode ser definida como uma operação mental caracterizada por uma sequência de validações. Nesse sentido, a aplicação do direito ocorre progressivamente dos níveis superiores do ordenamento jurídico em direção aos inferiores.[3] Esse processo é constituído por atos cognitivos (definição das possibilidades criadas pela moldura da norma) e atos volitivos (a opção por uma dessas possibilidades).[4]
Contudo, como as normas dos escalões superiores não conseguem vincular totalmente o ato de sua aplicação, esse procedimento hierarquizado é considerado relativamente indeterminado.[5] Desse modo, resta ao operador do direito uma margem maior ou menor de discricionariedade.[6]
Com base nessas considerações, Kelsen conclui que a interpretação de uma lei não produzirá, necessariamente, uma única solução correta. Possivelmente, conduzirá a uma pluralidade de respostas, cabendo ao aplicador da lei decidir discricionariamente.[7] Dessarte, segundo o autor vienense, além da natureza meramente declaratória, o processo decisório possui necessariamente um caráter constitutivo, criando o direito.[8] Assim, as decisões judiciais e as resoluções administrativas serão consideradas em conformidade com o direito se a interpretação que derem à formulação normativa estiver dentro da moldura estabelecida.[9]
Além de Kelsen, Hart também enfrentou a questão da discricionariedade judicial na resolução dos casos difíceis. Ao fazê-lo, procurou conciliar as correntes formalista e realista.[10] Nesse sentido, argumentou que, diversamente do defendido pela primeira, as decisões judiciais sujeitam-se a fatores políticos, ideológicos e psicológicos, afastando, assim, a tese de que é possível extrair uma única interpretação da lei. Por outro lado, no exame dos casos repetitivos, que não exigem uma ação intelectual do juiz, a decisão seria tomada de forma praticamente mecânica por meio da técnica da subsunção (texto e caso), sem grandes exercícios interpretativos, na linha defendida pela concepção formalista.[11]
Diversamente, nos casos difíceis, caracterizados pela existência de zonas de penumbra, o magistrado exerce a função de produção normativa.[12] Nesse sentido, a discricionariedade judicial consiste basicamente no poder de escolher um entre os vários sentidos passíveis de serem atribuídos ao enunciado normativo. A textura aberta das normas e a impossibilidade de a lei prever todas as combinações de circunstâncias futuras conferem ao juiz a possibilidade de decidir em um ou outro sentido, desde que atue dentro das fronteiras do sistema jurídico (leis, precedentes e dogmática).[13]
A partir dessas considerações, Hart diverge da ideia da única solução correta propugnada por Dworkin. Para os casos difíceis, detectados nas referidas zonas de penumbra, o autor, concordando com os realistas, admite que as decisões judiciais são discricionárias.[14] Tal discricionariedade, contudo, não pode ser confundida com arbitrariedade, uma vez que o juiz estará limitado pelo conjunto do sistema jurídico.[15]
3 TEORIAS NÃO POSITIVISTAS
Por outro lado, Dworkin, pioneiro ao lançar objeções contra o positivismo jurídico[16], discorda das teses de Kelsen e Hart de que, quando chamado a decidir um caso considerado difícil, o juiz teria o poder discricionário de resolvê-lo em favor de quaisquer das partes envolvidas no processo. De acordo com Dworkin, não é admissível que o juiz crie direitos com a finalidade de aplicá-los, retroativamente, em um caso concreto. Mesmo nos casos ditos difíceis, quando não há claramente uma resposta prevista pelo ordenamento, cabe ao magistrado encontrar no sistema jurídico os direitos das partes, sem aplicar direitos novos de forma retroativa.[17] Considerando que o direito está conformado por regras e princípios preexistentes às decisões judiciais que os reconhecem, não existe discricionariedade[18]. Não podem, portanto, os juízes atuar como legisladores.[19]
Detalhando a alternativa proposta, o autor traça as diferenças entre as estruturas lógicas das regras e dos princípios, espécies do gênero normas jurídicas. Afirma que as primeiras são aplicadas ao modo de um “tudo ou nada”. Preenchida a hipótese de incidência, ou a regra será válida e o seu efeito normativo deve ser aceito, ou será descartada diante da verificação de que os fatos sob exame a ela não se amoldam.[20] Nesse contexto, os conflitos entre regras devem ser solucionados por meio dos instrumentos clássicos de afastamento de antinomias: critérios hierárquico, cronológico e da especialidade.[21] Lado outro, os princípios não determinam uma decisão de forma absoluta. Contêm fundamentos que devem ser conjugados com outros extraídos dos princípios em rota de colisão. Envolvem algum tipo de ponderação e/ou balanceamento. Possuem, portanto, uma dimensão de peso. Assim, na hipótese de colisão entre eles, um pode se sobrepor ao outro sem ocasionar uma perda de validade.[22]
Embora menos importantes do que a distinção acima, as diferenças entre princípios e políticas também foram objeto de estudo por Dworkin. Estas se diferenciariam daqueles por serem padrões que estabelecem um objetivo a ser alcançado relativamente a algum aspecto econômico, político ou social da comunidade. Enquanto os princípios possuem caráter deontológico, as políticas têm um cariz teleológico.[23]
Desse modo, a tese dos direitos de Dworkin encontra-se fundamentada em uma teoria forte dos princípios, que garante a prevalência destes sempre que contrapostos às diretrizes políticas. Assim, cabe ao julgador encontrar a única resposta certa, inclusive para os denominados casos difíceis por meio de um procedimento argumentativo norteado, essencialmente, por essa tese forte dos princípios. Com a intenção de levar a cabo essa tarefa de extração da única resposta justa para todos os problemas práticos, Dworkin idealizou a figura do juiz Hércules, extremamente qualificado e dono de um alto grau de discernimento.[24]
Também se contrapondo às teorias positivistas, Alexy argumenta que elas defendem a tese da separação entre o direito e a moral. Esse conceito de direito depurado de termos morais, próprio do positivismo, adotaria, na visão do autor alemão, dois elementos essenciais em sua definição: a legalidade autoritativa e a eficácia social. Em sentido contrário, a teoria não positivista privilegia a pretensão de correção quanto ao conteúdo do direito. Defende, assim, a tese da conexão, pela qual, além dos mencionados elementos essenciais, o direito deve conter também valores morais.[25] Por isso, Alexy fala na existência da dupla natureza do direito, ligando a sua face institucional (típica do positivismo) à outra, ideal e crítica (característica do não positivismo ou pós-positivismo).[26]
Para refutar a tese da separação entre direito e moral, Alexy utiliza três argumentos: da correção, da injustiça e dos princípios.[27] O primeiro, que constitui a base da fundamentação adotada pelo autor alemão, é o da correção, segundo o qual o direito está necessariamente ligado a uma pretensão de justiça.[28] De acordo com esse argumento, tanto as decisões e as normas jurídicas isoladas quanto os sistemas jurídicos como um todo possuem uma pretensão de correção.[29]
Por sua vez, o argumento da injustiça tem, como variante mais conhecida, a fórmula de Radbruch. Em apertada síntese, essa fórmula afirma que, mesmo injusto, o direito positivo deve ser respeitado, exceto quando a injustiça alcançar um patamar inaceitável. Alexy esclarece que as normas isoladas que não satisfaçam a pretensão de correção são juridicamente defeituosas, mas não necessariamente inválidas. Assim, a perda da validade jurídica ocorreria na hipótese de a injustiça por elas veiculada transpor o limite extremo.[30]
Por fim, tem-se o argumento dos princípios, que se contrapõe-se à tese hartiana de que o sistema jurídico seria composto unicamente por regras e admitiria o exercício da discricionariedade. Adotando esse argumento como base da distinção entre regras e princípios, Alexy doutrina que, enquanto aquelas podem ser consideradas mandamentos definitivos, estes são mandatos de otimização. Em outras palavras, regras prescrevem uma consequência jurídica definitiva. Já os princípios, aplicados mediante ponderação, ordenam que algo seja feito na máxima medida possível diante de uma determinada realidade jurídica e fática.[31]
Desse modo, contrapondo-se novamente a Dworkin, Alexy não segue a teoria forte dos princípios, segundo a qual o sistema jurídico proporciona uma solução ajustada para todos os problemas práticos, principalmente os mais difíceis. Na opinião de Alexy, a tese da solução única somente poderia ser aceita se fosse possível desenvolver uma lista completa de todos os princípios integrantes do sistema jurídico, com a posterior fixação de todas as relações de prioridade abstratas e concretas. A partir dessa teoria forte, poderiam ser medidos os pesos e as intensidades de realização dos princípios em uma escala numérica, o que garantiria a obtenção da pretendida resposta única.[32]
Como essa teoria forte sucumbiria diante das dificuldades para o estabelecimento do peso e da intensidade de realização dos diferentes princípios, Alexy defende uma tese fraca ou mitigada, que ordenaria os princípios de acordo com três sistemas: de condições de prioridade; de estruturas de ponderação; e de prioridades prima facie.[33] A concepção de condições de prioridade enseja a elaboração de uma regra de colisão. Assim, fala-se na existência de um suposto de fato de uma regra que determinaria as consequências jurídicas da preponderância de um princípio sobre os demais, estabelecida a partir de condições previamente definidas. A partir das condições de prioridade e das correspondentes regras de precedência, seriam atribuídos pesos aos princípios. Apesar de não aplicáveis a todos os casos novos, essas condições criam uma possiblidade de procedimento de argumentação que não existiria sem elas.[34]
Acerca do sistema de estruturas de ponderação, este deve ser informado por uma lei de ponderação que leve em consideração a qualidade dos princípios enquanto mandados de otimização, segundo as condições fáticas (adequação e necessidade) e jurídicas (proporcionalidade stricto sensu).[35]
Por derradeiro, criando uma certa ordem no campo dos princípios, o sistema de prioridades prima facie estabelece cargas de argumentação. Dessa forma, para refutar um princípio que, à primeira vista, teria prioridade, exige-se uma carga argumentativa maior em prol do outro princípio em rota de colisão. Assim, a ordem de prioridade depende novamente da argumentação.[36]
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, em resposta ao questionamento proposto no título deste trabalho, tendo em vista as imperfeições da ordem jurídica, causadas, entre outros motivos[37], por problemas de interpretação da linguagem jurídica[38], ganha importância a tese da força normativa dos princípios defendida por Dworkin e Alexy. Assim, deve o intérprete se afastar das ideias positivistas na parte em que atribuem grande discricionariedade, quando não arbitrariedade, à atividade decisória. Da mesma forma, a tese da única resposta correta, defendida por Dworkin com base na teoria forte dos princípios, deve ser mitigada, passando a ser admitida, como defende Alexy, apenas como um ideal a ser alcançado mediante um procedimento argumentativo que assegure a racionalidade do discurso jurídico. Dessarte, em conclusão, como ponto de partida para a justificação das decisões judiciais, deve-se adotar a teoria da argumentação jurídica de Alexy, que objetiva tornar mais racional o processo decisório, permitindo, assim, sua maior controlabilidade, condição necessária à implementação dos direitos fundamentais, tão caros ao estado democrático de direito.