2. Direito à inviolabilidade do sigilo das correspondências
O direito ao sigilo das correspondências encontra previsão no título II, capítulo I da Constituição Federal, que, em seu art. 5º, inciso XII, preconiza:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
Trata-se de norma constitucional que enuncia direito fundamental de primeira dimensão, haja vista que relativo à liberdade do indivíduo, mais especificamente à sua intimidade e vida privada, exigindo-se, por parte do Estado, uma posição abstencionista, a fim de evitar indevida ingerência na esfera privada do sujeito. Além disso, pelo seu conteúdo, com base na classificação propugnada por José Afonso da Silva, é possível concluir que a norma em apreço possui eficácia contida - pelo menos quanto à sua parte final (sigilo das comunicações telefônicas), sendo sua aplicabilidade direta e imediata, porém restringível.
Isso porque, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, nas hipóteses que a lei estabelecer, é possível a violação do sigilo das comunicações telefônicas.
Sobre o dispositivo em comento, Mendes e Branco (2017, p. 254), com propriedade, advertem:
O sigilo das comunicações é não só um corolário da garantia da livre expressão de pensamento; exprime também aspecto tradicional do direito à privacidade e à intimidade.
A quebra da confidencialidade da comunicação significa frustrar o direito do emissor de escolher o destinatário do conteúdo da sua comunicação.
[...]
A leitura do preceito pode levar à conclusão de que apenas nos casos de comunicações telefônicas seria possível que o Poder Público quebrasse o sigilo e que seria impossível abrir ao seu conhecimento os dados constantes de correspondência postal, telegráfica ou de comunicações telemáticas.
(Grifou-se)
Correspondência, para o contexto, pode ser entendida como o instrumento ou canal, manuscrito ou datilografado, por meio do qual dois interlocutores (emitente e destinatário) se comunicam.
Adentrando especificamente no âmbito da execução penal, importante rememorar que a Constituição Federal vigente propugna que é dever do Estado assegurar que os presos tenham respeitada a sua integridade física e moral (art. 5º, inciso XLIX, da CF).
Seguindo essa linha, o Código Penal, em seu artigo 38, dispõe que o indivíduo que se encontra preso conserva todos os direitos não atingidos pelo cerceamento da liberdade, exigindo-se de todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.
Nesse particular, ao tratar dos direitos dos presos na Lei de Execução Penal, Marcão (2015, p. 65) afirma o seguinte:
Também em tema de direitos do preso, a interpretação que se deve buscar é a mais ampla, no sentido de que tudo aquilo que não constitui restrição legal, decorrente da particular condição do encarcerado, permanece como direito seu.
(Grifos do autor)
Outro dispositivo que merece destaque é o art. 233 do Código de Processo Penal, que proíbe a admissão em juízo, como meios de prova, de cartas particulares, que tenham sido interceptadas ou obtidas por meios criminosos. Em havendo uma dessas circunstâncias, a prova será considerada ilícita e não poderá servir de base para o convencimento do julgador no sentido de prejudicar o acusado.
Além disso, o Caderno Processual Penal preconiza, no artigo 240, § 1º, alínea f, combinado com o § 2º do mesmo dispositivo, que a busca será domiciliar ou pessoal e que esta será possível quando houver fundadas razões de que alguém oculte consigo (...) cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato.
A redação do artigo mencionado é anterior à Constituição Federal vigente e, conforme lições de Nucci (2017, p. 480), parcela da doutrina o entende como não recepcionado, haja vista que o art. 5º, inciso XII, da CF/88 tornou inviolável, sem ressalvas, o sigilo das correspondências, sejam elas destinadas ou não a indivíduos acusados de crimes. Por outro lado, parte dos estudiosos entende que o dispositivo não deve ser interpretado de forma restritiva, sendo permitida a quebra do sigilo das correspondências.
A violação de correspondências, inclusive, é tipificada pelo Código Penal como crime, sujeitando o autor à pena de detenção de 01 (um) a 06 (seis) meses ou multa. O núcleo do tipo penal é devassar, que significa, linha gerais, invadir, verificar, conhecer o conteúdo, e tem como elementar a correspondência fechada, ou seja, não estando a carta cerrada, o fato é atípico.
No tópico 1.6, abordou-se a problemática da restrição e da colisão de direitos fundamentais, apontando que estes, atualmente, não podem e nem devem ser considerados absolutos. Inegavelmente, o direito ao sigilo das correspondências se inclui nesse rol.
Nessa esteira, no plano infraconstitucional, a Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84) declara, no art. 41, inciso XV, que são direitos do apenado, além de outros ali elencados, o contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.
Por seu turno, o parágrafo único do dispositivo em comento apregoa que o supracitado direito poderá ser restringido mediante ato motivador do diretor do estabelecimento penal.
Vê-se, pois, que o direito do preso de se comunicar com o ambiente externo mediante carta (missiva) é garantido expressamente pela lei de execução penal, sendo que tal direito pode ser suspenso ou restringido por ato do diretor do estabelecimento prisional. Trata-se de restrição de direito fundamental perpetrada por legislação infraconstitucional, autorizando terceira pessoa a conhecer o conteúdo de correspondência que deveria ser mantida em sigilo.
Nesse contexto, citam-se mais uma vez as lições de Mendes e Branco (2017, p. 254), nestes termos:
[...] a restrição de direitos fundamentais pode ocorrer mesmo sem autorização expressa do constituinte, sempre que se fizer necessária a concretização do princípio da concordância prática entre ditames constitucionais. Não havendo direitos absolutos, também o sigilo de correspondência e o de comunicações telegráficas são passíveis de ser restringidos em casos recomendados pelo princípio da proporcionalidade.
No mesmo sentido, Nucci (2017, p. 71 e 72):
[...] em formato privado, existe a correspondência escrita, sempre dirigida (ou recebida) em relação a alguém específico. Nesta hipótese, admitimos a possibilidade de abertura da correspondência, com acompanhamento do seu teor, pois o emitente ou o destinatário está preso, logo, não tem total e completo acesso ao mundo exterior.
Não fosse assim e estaríamos privilegiando um direito absoluto, quando todos são relativos, merecendo harmonização com os demais.
Eis o ponto nevrálgico do tema: a constituição garante o sigilo das correspondências, erigindo-o à categoria de direito fundamental, contudo, a Lei de Execuções Penais e o Código de Processo Penal permitem que esse sigilo seja violado pelas autoridades competentes a depender do caso.
Expondo opinião favorável à violação das correspondências destinadas aos detentos, Nucci (2017, p. 482) pondera:
Segundo pensamos, nenhum direito ou garantia fundamental é absoluto. Fosse assim e haveríamos de impedir, terminantemente, que o diretor de um presídio violasse a correspondência dirigida a um preso, ainda que se tratasse de ardiloso plano de fuga, pois a inviolabilidade de correspondência seria taxativa e não comportaria exceção alguma na Constituição Federal. Nem mesmo poderia devassar a correspondência para saber se, no seu interior, há drogas, o que configura um despropósito.
Em sentido diametralmente oposto, Mirabette (2000, p. 320) assevera:
Proibida a violação de correspondência, ilícita também a sua interceptação ou apreensão. Apreendida a correspondência, é ela prova obtida ilicitamente, inadmissível no processo (item 8.1.5). A apreensão só é lícita se houver consentimento do acusado, quando se tratar do próprio objeto material do crime ou quando for ela obtida em circunstâncias que caracterizem uma causa excludente da ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa etc.).
Recentemente, foi sancionada pelo Presidente da República a Lei nº 13.913/2019 (o texto chegou a ser publicado no DOU, mas a mensagem do veto foi publicada em edição extra), que permitia a interceptação de correspondência de presos condenados ou provisórios para fins de investigação criminal ou de instrução processual penal. Referida norma alterava o artigo 41 da Lei de Execuções Penais, acrescentando-lhe dois parágrafos (2º e 3º) e estabelecendo o seguinte:
§2º A correspondência de presos condenados ou provisórios, a ser remetida ou recebida, poderá ser interceptada e analisada para fins de investigação criminal ou de instrução processual penal, e seu conteúdo será mantido sob sigilo, sob pena de responsabilização penal nos termos do art. 10, parte final, da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996.
§3º A interceptação e análise de correspondência deverá ser fundada nos requisitos previstos pelo art. 2º da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, e comunicada imediatamente ao órgão competente do Poder Judiciário, com as respectivas justificativas.
Conforme se depreende, o § 2º da lei em questão, embora permitisse a interceptação das correspondências de presos definitivos e provisórios, exigia que o conteúdo dessas fosse mantido em sigilo pela autoridade responsável pela violação, sob pena de responsabilização pelo delito capitulado no artigo 10 da Lei nº 9.296/96, que prevê:
Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, promover escuta ambiental ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
(Grifou-se).
Demais disso, o § 2º do diploma normativo estabelecia que o quebramento da confidencialidade das correspondências deveria ser realizado com fundamento nos requisitos elencados pelo artigo 2º da lei das interceptações telefônicas (Lei nº 9.296/96), que preconiza:
Art. 2° Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses:
I - não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal;
II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;
III - o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção.
Parágrafo único. Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada.
À vista de tais circunstâncias, verifica-se que a alteração legislativa condicionaria o quebramento do sigilo das correspondências ao preenchimento dos mencionados requisitos, o que, de certa maneira, dificultaria a ação da autoridade competente. Isso porque, com a redação anterior, a LEP somente enunciava que a correspondência dos detentos poderia ser interceptada pelo diretor do estabelecimento mediante ato motivado, não estabelecendo outras condições. Todavia, a alteração legislativa impunha o preenchimento dos requisitos insculpidos no art. 2º da Lei nº 9.296/96.
E foi justamente tal razão que levou o Presidente da República a vetar integralmente o texto da Lei nº 13.913/2019. Por meio da mensagem nº 616, de 25 de novembro de 2019, publicada no Diário Oficial da União DOU e enviada ao Congresso Nacional, o Chefe do Executivo nacional aduziu que o veto se dava em razão da contrariedade da norma ao interesse público e pela sua inconstitucionalidade.
Outrossim, apresentou as seguintes razões: a limitação das hipóteses de interceptação de correspondências de presos e o estabelecimento dos mesmos requisitos para a interceptação telefônica (Lei nº 9.296/96) causaria insegurança jurídica e conflito de normas, além do que e agravaria a crise no sistema penitenciário nacional, causando impacto negativo no sistema de segurança e na gestão dos presídios.
Por fim, alegou que o Supremo Tribunal Federal possui o entendimento de que a inviolabilidade do sigilo de correspondência dos presos não pode constituir instrumento para se permitir a prática de atos ilícitos.
Oportunamente, cabe ressaltar que a Corte Constitucional efetivamente já analisou a matéria, ainda que não definitivamente, quando do julgamento do Habeas Corpus 70814-5, de relatoria do Ministro Celso de Mello. Na oportunidade, a Corte fixou o entendimento de que:
A administração penitenciária, com fundamento em razoes de segurança pública, de disciplina prisional ou de preservação da ordem jurídica, pode, sempre excepcionalmente, e desde que respeitada a norma inscrita no art. 41, parágrafo único, da Lei n. 7.210/84, proceder a interceptação da correspondência remetida pelos sentenciados, eis que a clausula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas. - O reexame da prova produzida no processo penal condenatório não tem lugar na ação sumaríssima de habeas corpus.
No caso posto, o Supremo Tribunal Federal realizou ponderação de direitos fundamentais, admitindo que, por imperativos de segurança pública, de disciplina prisional ou para a preservação da ordem jurídica, fosse violado o sigilo das correspondências de presos.
3. Conclusão
A Constituição Federal elenca como direito fundamental do indivíduo o sigilo das correspondências (art. 5º, inciso XII). Por se tratar de direito não absoluto, o sigilo das correspondências, quando em colisão com outros direitos de igual envergadura, deve ser submetido à técnica da ponderação, a fim de que seja garantida a sua máxima efetividade. Ademais, a norma em questão tem eficácia contida, podendo sofrer restrições, sejam elas estabelecidas pela própria constituição ou pela legislação ordinária.
Tais restrições, inclusive, são encontradas no Código de Processo Penal (art. 240, § 1º, alínea f, c/c § 2º da mesma figura) - quando permite a busca pessoal de correspondência epistolar, aberta ou não, direcionada ao acusado ou que já esteja em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do conteúdo possa auxiliar na elucidação do fato delituoso - e na Lei de execução penal - quando, em seu art. 41, parágrafo único, autoriza o diretor do estabelecimento penal a violar correspondências enviadas ou recebidas pelos detentos a fim de que saiba o seu conteúdo, devendo, contudo, motivar sua ação.
Quanto à necessidade de autorização judicial, no primeiro caso, o art. 244 do CPP preconiza sua prescindibilidade no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de papéis que constituam corpo de delito. Na segunda hipótese, a legislação nada menciona sobre a obrigatoriedade de autorização judicial, até mesmo porque consta expressamente que o diretor do estabelecimento penal deve motivar a violação do sigilo.
Em relação à doutrina, verifica-se que esta se divide sobre o tema, havendo doutrinadores que entendem que o sigilo da correspondência não pode ser violado em nenhuma hipótese, por expressa vedação constitucional. Outros há, todavia, que entendem que, por questões de segurança pública e disciplina prisional, tal direito deve ser restringido, não havendo inconstitucionalidade no caso.
Por fim, o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário Nacional e Guardião da Constituição, conquanto ainda não tenha se manifestado definitivamente sobre o tema em ações do controle concentrado, entende que é possível a interceptação das correspondências de detentos, de forma excepcional e por razões de segurança pública, disciplina prisional e manutenção da ordem jurídica, respeitados os demais requisitos do art. 41 da Lei de Execuções Penais.
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.
BRASIL. Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.
BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal.
BRASIL. Lei n. 9.296, de 24 de julho de 1996. Regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5º da Constituição Federal.
MARCÃO, RENATO. Curso de Execução Penal. 13. ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. 376 p.
MENDES, GILMAR FERREIRA; BRANCO, PAULO GUSTAVO GONET. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. 1.762 p.
MIRABETE, JÚLIO FABBRINI. Processo Penal. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2000. 784 p.
NUCCI, GUILHERME DE SOUSA. Curso de Execução Penal. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. 254 p.
NUNES JÚNIOR, FLÁVIO MARTINS ALVES. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. 2.396 p.