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A (im) possibilidade de interceptação de correspondências de presos para fins de investigação criminal

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25/03/2022 às 16:10
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A Constituição desautoriza a violação do sigilo de correspondência, contudo, a legislação infraconstitucional a permite em determinadas hipóteses. O que diz a Justiça?

Resumo: O presente trabalho tem como tema a (im) possibilidade de interceptação de correspondências de presos para fins de investigação criminal. Discorreu-se, primeiramente, sobre a Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, apresentando a abordagem desses direitos em suas dimensões, a diferenciação entre Direitos Humanos e direitos fundamentais, bem como as distinções entre Direitos e Garantias Fundamentais. Examinaram-se, ainda, os sujeitos que podem titularizar os direitos e garantias fundamentais, as eficácias horizontal, vertical e diagonal desses direitos e, por fim, a problemática da colisão e da possibilidade de restrição dos Direitos Fundamentais. Na segunda parte, cuidou-se do sigilo das correspondências, analisando a sua previsão constitucional, as disposições da legislação ordinária, o entendimento da doutrina e do Supremo Tribunal Federal (STF). A pesquisa foi desenvolvida eminentemente com base no acervo bibliográfico que trata do tema, na legislação e no entendimento do STF.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Sigilo das correspondências.


Introdução

O presente estudo foi desenvolvido no campo dos Direitos Fundamentais, com foco no Direito ao sigilo das correspondências e na possibilidade de violação deste para fins de investigação criminal.

Em primeiro plano, fez-se uma análise da Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, das suas dimensões, das distinções em relação aos Direitos Humanos e no tocante às garantias fundamentais. Dando continuidade, discorreu-se acerca da titularidade dos Direitos Fundamentais, da eficácia destes e sobre a questão da colisão e da restrição dos Direitos em apreço. Em seguida, foram estudadas as regras afetas ao Direito do sigilo da correspondência e a possibilidade de sua violação, tratando dos direitos do preso na Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) e da possibilidade de violação das cartas pelo diretor do estabelecimento prisional. Ademais, analisaram-se as disposições do Código de Processo Penal acerca da interceptação da correspondência epistolar, apontando, inclusive, que a violação fora das hipóteses legais pode configurar o delito do art. 151 do Código Penal. Por derradeiro, foi exposto o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto.

A problemática consistiu em verificar se é possível a interceptação da correspondência de presos para fins de investigação criminal.

Como hipóteses, teve-se que, atualmente, a Constituição Federal desautoriza a violação do sigilo, contudo, a legislação infraconstitucional o permite em determinadas hipóteses, quando preenchidos alguns requisitos.

Nessa toada, com a pesquisa, objetivou-se analisar, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, a existência de regras em relação à quebra do sigilo de correspondência de detentos.

Os objetivos específicos compreenderam-se na apresentação da Teoria Geral dos Direitos fundamentais, tratando de dimensões, distinções com outros institutos e eficácia, bem como da solução em caso de colisão de direitos fundamentais e na possibilidade de restrição destes. Como desiderato, ainda, havia o exame do Direito ao sigilo da correspondência sob o ponto de vista da constituição, da legislação ordinária, do entendimento doutrinário e do Supremo Tribunal Federal.

A Constituição Federal veda a quebra do sigilo da correspondência, em qualquer hipótese, seja esta direcionada aos presos ou a qualquer outra pessoa. Todavia, na legislação ordinária, em especial na Lei de Execução Penal e no Código de Processo Penal, se tem dispositivos que autorizam a violação do sigilo do conteúdo das cartas.

Doutrinariamente, não há consenso sobre a possibilidade de tal violação e, no campo da jurisprudência, o entendimento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de ser cabível a violação, desde que baseada em imperativos de segurança pública, disciplina prisional e preservação da ordem jurídica.

Diante disso, revela-se nítida a utilidade prática do estudo, visto que a questão é corriqueira e não há consenso entre os estudiosos sobre a possibilidade de se violar ou não o direito fundamental ao sigilo das correspondências destinadas aos presos ou enviadas por estes, sobretudo porque, assim agindo, abrir-se-ia permissão para que direitos do detento, não alcançados pela pena, fossem indevidamente restringidos.

A metodologia aplicada foi predominantemente bibliográfica, com leituras, feitura de resumos e comparação dos entendimentos doutrinários.

Em arremate, no que toca aos autores, foram utilizadas as obras de Guilheme de Sousa Nucci, Júlio Fabrrini Mirabette, Flávio Martins, Renato Marcão e Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gonet Branco.


1. Teoria geral dos direitos fundamentais

Antes de analisar especificamente o direito ao sigilo das correspondências, afigura-se necessária breve incursão na seara da teoria geral dos direitos fundamentais, abordando as gerações/dimensões desses direitos, a diferença entre direitos humanos e direitos fundamentais, bem como as distinções entre direitos e garantias fundamentais. Demais disso, é pertinente examinar os sujeitos que podem ser titulares dos direitos e garantias fundamentais, as eficácias horizontal, vertical e diagonal desses direitos e, por fim, talvez mais importante para o presente trabalho, a problemática da colisão e da possibilidade de restrição dos direitos fundamentais.

1.1. Gerações/dimensões dos direitos fundamentais

A classificação dos direitos fundamentais em dimensões/gerações tem como ponto fundante o desenvolvimento histórico desses direitos.

Doutrinariamente existe divergência acerca do número de dimensões/gerações, contudo, prevalece o entendimento de que os direitos fundamentais se desenvolveram em três dimensões, cada uma baseada em um ideal da revolução francesa (1789): liberdade, igualdade e fraternidade.

Por oportuno, averbe-se que há doutrinadores que questionam a terminologia gerações, considerando mais adequado o uso da expressão dimensões. Conforme tais estudiosos, ao se utilizar a terminologia gerações, passa-se a ideia de sucessão, vale dizer, de que uma geração substituiria a anterior.

Nesse sentido, precisas são as lições de Mendes e Branco (2017, p. 128):

Essa distinção entre gerações dos direitos fundamentais é estabelecida apenas com o propósito de situar os diferentes momentos em que esses grupos de direitos surgem como reivindicações acolhidas pela ordem jurídica. Deve-se ter presente, entretanto, que falar em sucessão de gerações não significa dizer que os direitos previstos num momento tenham sido suplantados por aqueles surgidos em instante seguinte. Os direitos de cada geração persistem válidos juntamente com os direitos da nova geração, ainda que o significado de cada um sofra o influxo das concepções jurídicas e sociais prevalentes nos novos momentos.

(Grifou-se)

Nessa esteira, como visto, a doutrina majoritária indica a existência de três dimensões dos direitos fundamentais.

Na primeira dimensão, estabeleceram-se os chamados direitos de liberdade, assim considerados aqueles que exigem uma atuação negativa do Estado, prevalecendo a autonomia privada do indivíduo. Em tal dimensão, foi possibilitada ainda a participação do povo no cenário político do Estado. Daí dizer-se que a primeira dimensão preconiza os direitos civis e políticos.

Sobre o assunto, oportuno citar as ponderações de Mendes e Branco (2017, p. 128), nestes termos:

Outra perspectiva histórica situa a evolução dos direitos fundamentais em três gerações. A primeira delas abrange os direitos referidos nas Revoluções americana e francesa. São os primeiros a ser positivados, daí serem ditos de primeira geração. Pretendia -se, sobretudo, fixar uma esfera de autonomia pessoal refratária às expansões do Poder. Daí esses direitos traduzirem -se em postulados de abstenção dos governantes, criando obrigações de não fazer, de não intervir sobre aspectos da vida pessoal de cada indivíduo.

Por seu turno, a segunda dimensão, em direção oposta à anterior, estabeleceu rol de direitos que reclamam do Estado uma atuação positiva, intervencionista, haja vista que, na prevalência do individualismo da primeira dimensão, começaram a surgir situações de desigualdade, nas quais os sujeitos de maior poderio econômico sobrepujavam os de parcos recursos. Assim é que surgem os direitos sociais, culturais e econômicos, os quais objetivavam o alcance de uma igualdade substancial e não meramente formal.

Mais uma vez, pertinentes são os ensinamentos de Mendes e Branco (2017, p. 219):

O ideal absenteísta do Estado liberal não respondia, satisfatoriamente, às exigências do momento. Uma nova compreensão do relacionamento Estado/sociedade levou os Poderes Públicos a assumir o dever de operar para que a sociedade lograsse superar as suas angústias estruturais. Daí o progressivo estabelecimento pelos Estados de seguros sociais variados, importando intervenção intensa na vida econômica e a orientação das ações estatais por objetivos de justiça social. Como consequência, uma diferente pletora de direitos ganhou espaço no catálogo dos direitos fundamentais direitos que não mais correspondem a uma pretensão de abstenção do Estado, mas que o obrigam a prestações positivas. São os direitos de segunda geração, por meio dos quais se intenta estabelecer uma liberdade real e igual para todos, mediante a ação corretiva dos Poderes Públicos. Dizem respeito a assistência social, saúde, educação, trabalho, lazer etc. O princípio da igualdade de fato ganha realce nessa segunda geração dos direitos fundamentais, a ser atendido por direitos a prestação e pelo reconhecimento de liberdades sociais como a de sindicalização e o direito de greve.

Finalmente, a terceira geração de direitos fundamentais, surgida logo após a segunda grande guerra, se caracteriza por enunciar os chamados direitos difusos, isto é, direitos transindividuais, titularizados por todos, não sendo possível definir precisamente os sujeitos aos quais lhe assistem.

Nesse ponto, Mendes e Branco (2017, p. 129) asseveram:

Já os direitos chamados de terceira geração peculiarizam-se pela titularidade difusa ou coletiva, uma vez que são concebidos para a proteção não do homem isoladamente, mas de coletividades, de grupos. Tem -se, aqui, o direito à paz, ao desenvolvimento, à qualidade do meio ambiente, à conservação do patrimônio histórico e cultural.

Verifica-se, portanto, que as dimensões de direitos fundamentais, ao decorrer dos séculos, foram se complementando. Tal constatação fica bastante evidente quando se compara o direito à propriedade (1ª dimensão) com a função social da propriedade (2ª geração), não se podendo olvidar ainda a função socioambiental da propriedade, que conjuga direitos das três dimensões.

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Fixadas as premissas sobre as dimensões de direitos fundamentais, passa-se à análise das distinções entre direitos humanos e direitos fundamentais.

1.2. Direitos humanos e direitos fundamentais

A princípio, pode-se pensar que direitos humanos e direitos fundamentais são expressões sinônimas, que se confundem, entretanto, os termos são distintos, conforme se verá.

Para melhor compreensão do assunto, seguem as digressões de Martins (2019, p. 786):

Podemos afirmar que direitos humanos são os direitos previstos em tratados e demais documentos internacionais, que resguardam a pessoa humana de uma série de ingerências que podem ser praticadas pelo Estado ou por outras pessoas, bem como obrigam o Estado a realizar prestações mínimas que assegurem a todos existência digna (direitos sociais, econômicos, culturais).

[...]

Por sua vez, direitos fundamentais são aqueles direitos, normalmente direcionados à pessoa humana, que foram incorporados ao ordenamento jurídico de um país. Essa é a razão pela qual, na maioria das vezes, quando o estudioso se refere aos direitos previstos em tratados internacionais, fala direitos humanos e, quando estuda a Constituição de um país, refere-se a direitos fundamentais.

Vê-se, pois, que os direitos humanos estão ligados ao plano internacional, objetivando assegurar a concretização da dignidade da pessoa humana e a contenção do poder estatal, sendo que suas regras são supraestatais e encontram-se materializadas em tratados ou outros documentos internacionais. Já os direitos fundamentais, que, de igual modo, objetivam assegurar a dignidade da pessoa humana e limitar o poder do Estado, se diferenciam porque dizem respeito ao regramento interno de determinado ente soberano e são, via de regra, enunciados nas constituições.

Por derradeiro, importa destacar que, no Brasil, nos termos do § 3º do art. 5º da Constituição Federal de 1988 (CF/88), os tratados internacionais que versarem sobre direitos humanos e que forem aprovados, em cada uma das casas do Congresso Nacional, por 3/5 (três quintos) dos votos, em dois turnos de votação, terão envergadura constitucional, sendo equivalentes às emendas. Em outros termos, o tratado internacional sobre direitos humanos aprovado pelo Congresso Nacional com o quórum especial das emendas passa a ter supremacia em relação à legislação infraconstitucional.

1.3. Distinção entre direitos e garantias fundamentais

Outra importante distinção é a relativa aos direitos e às garantias fundamentais. Afinal, o que são direitos e o que são garantias fundamentais?

Para responder a tal questionamento, citam-se as lições de Martins (2019, p. 788):

Direitos fundamentais são normas de conteúdo declaratório, previstas na Constituição. São posições de vantagem conferidas pela lei. A Constituição assegura, por exemplo, o direito à vida (art. 5º, caput), à liberdade de manifestação do pensamento (art. 5º, IV), à liberdade de religião (art. 5º, VI), direito à honra (art. 5º, X), direito à informação (art. 5º, XIV), à liberdade de locomoção (art. 5º, XV) etc. Por sua vez as garantias fundamentais são normas de conteúdo assecuratório, previstas na Constituição. São instrumentos destinados a garantir, a assegurar os direitos previamente tutelados.

Em linhas gerais, baseado nas lições do respeitado doutrinador, é possível perceber que os direitos fundamentais são os próprios direitos em si, são os bens da vida considerados essenciais e indispensáveis a uma existência digna. Por outro lado, as garantias fundamentais são medidas que buscam assegurar o pleno e efetivo exercício desses direitos, havendo relação de acessoriedade destas em relação àqueles. Como exemplo, pode-se citar o direito à liberdade de locomoção (art. 5º, inciso XV, da CF/88), o qual, uma vez violado, pode ser salvaguardado pelo remédio constitucional do habeas corpus (art. 5º, inciso LXVIII, da CF/88). O primeiro constitui um direito fundamental, já o segundo constitui uma garantia fundamental.

1.4. Titularidade dos direitos fundamentais

Entre as características dos direitos e garantias fundamentais está a universalidade, segundo a qual tais instrumentos, por objetivarem concretizar a dignidade da pessoa humana, devem ser titularizados por todos os indivíduos.

Assim é que, no Brasil, a CF/88, em seu art. 5º, caput, assegura que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...].

Sobre o tema, já escreveram Mendes e Branco (2017, p. 158):

Há direitos que se asseguram a todos, independentemente da nacionalidade do indivíduo, porquanto são considerados emanações necessárias do princípio da dignidade da pessoa humana. Alguns direitos, porém, são dirigidos ao indivíduo enquanto cidadão, tendo em conta a situação peculiar que o liga ao País. Assim, os direitos políticos pressupõem exatamente a nacionalidade brasileira. Direitos sociais, como o direito ao trabalho, tendem a ser também compreendidos como não inclusivos dos estrangeiros sem residência no País. É no âmbito dos direitos chamados individuais que os direitos do estrangeiro não residente ganham maior significado.

Consoante se infere, guardadas as devidas distinções realizadas pelo próprio texto constitucional, os direitos e garantias fundamentais são assegurados tanto aos brasileiros como aos estrangeiros, sejam estes residentes ou que estejam de passagem no país.

1.5. Eficácia dos direitos fundamentais

Via de regra, os direitos fundamentais são mais incidentes nas relações travadas entre o Estado e o particular, estabelecendo-se um equilíbrio entre o poder estatal e as liberdades individuais e evitando-se abusos.

A essa relação dá-se o nome de eficácia vertical dos direitos fundamentais, pois parte da relação de supremacia do Estado em relação ao indivíduo.

Tratando do assunto, Martins (2019, p. 901) escreveu:

Historicamente, os direitos fundamentais surgiram e foram aplicados verticalmente, seja quando o texto constitucional impunha ao Estado uma obrigação de não fazer (de não interferir na esfera da individualidade das pessoas), seja quando impunha uma obrigação de fazer (como nos direitos sociais, por intermédio dos quais o Estado tem o dever de garantir moradia, educação etc.). Trata-se da eficácia vertical dos direitos fundamentais.

Conforme apontado pelo doutrinador, a eficácia vertical diz respeito aos deveres estatais de não fazer (abstenção) ou de fazer (prestação). Todavia, além dessa eficácia vertical, fala-se ainda em eficácia horizontal, a qual diz respeito às relações existentes entre particulares.

Como visto alhures, os direitos de primeira dimensão eram caracterizados por deveres de abstenção estatal, com prevalência do indivíduo. Ocorre que, com o decorrer do tempo, as desigualdades foram surgindo e, ainda que na relação entre particulares não existisse, a princípio, relação de supremacia entre as partes, havia uma desigualdade que necessitava ser debelada pelo Estado.

Nessa esteira, surge a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que apregoa a aplicação de tais direitos não mais só nas relações estado/indivíduo, mas também na relação indivíduo/indivíduo. Por essa razão, é possível verificar que até mesmo nos contratos regidos pelo Código Civil e nas questões relativas à propriedade, os direitos fundamentais passaram a incidir, mormente quando se fala de dignidade da pessoa humana e da função social (dos contratos e da propriedade).

Tratando do contexto brasileiro, Martins (2019, p. 902) afirma:

No Brasil, é pacífica a aceitação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais (a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas marido e esposa; empregado e empregador, fornecedor e cliente etc. Todavia, um alerta inicial deve ser feito: a eficácia horizontal deve ser aplicada com cautela, sob pena de ferir a autonomia da vontade, princípio que rege as relações privadas. Não há como aplicar às relações entre particulares os direitos fundamentais na mesma amplitude que nas relações que envolvem o Estado.

Por fim, a eficácia diagonal dos direitos fundamentais é aplicável às situações em que há a presença de particulares, sendo que um destes se encontra em posição de superioridade em relação ao outro, o que exige a atuação intervencionista do Estado. Exemplificando, é possível vislumbrar aplicação da tese da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações trabalhistas, em que, de um lado, tem-se o empregador/patrão e de outro o empregado, parte hipossuficiente, bem como nas relações de consumo, em que se tem, num dos polos, o fornecedor/fabricante, e, de outro, o consumidor, parte mais fraca da relação.

1.6. Restrição e colisão de direitos fundamentais

Originalmente, tinha-se o entendimento de que os direitos fundamentais eram absolutos, insuscetíveis de sofrer qualquer tipo de limitação. Sucede que tal ideia foi sendo transformada e, atualmente, prevalece o entendimento de que os direitos e garantias fundamentais são passíveis de limitação/restrições.

Para melhor entendimento da questão, colaciona-se excerto da doutrina de Martins (2019, p. 888):

Como vimos acima, quando tratamos da relatividade dos direitos fundamentais, os direitos não são absolutos, mas relativos. Considerar um direito como sendo absoluto é aceitar dois efeitos colaterais igualmente graves: a) sempre que houver um outro direito colidindo com esse direito tido como absoluto, será ele aprioristicamente descartado, desprezado, violado; b) se um direito é absoluto, provavelmente seus titulares abusarão de seu exercício (por exemplo, considerada absoluta a presunção de inocência, permitia que o réu condenado fizesse dezenas de recursos com o único objetivo de procrastinar o trânsito em julgado da sentença penal condenatória).

Efetivamente, admitir que um direito fundamental seja tido como absoluto traz significativas implicações, em especial quando ocorre colisão entre esses direitos. A primeira delas diz respeito ao exercício abusivo. Daí o entendimento de que os direitos fundamentais são relativos, haja vista que o exercício destes deve conter certas limitações, além do que, em havendo confronto entre dois direitos fundamentais, a técnica mais adequada é a ponderação e não o afastamento de um em detrimento do outro.

Feito isso, entramos no segundo assunto do presente tópico, afeto à problemática da colisão de direitos fundamentais.

Consoante exposto linhas atrás, os direitos fundamentais são instrumentos que objetivam concretizar o valor máximo do Estado democrático, qual seja, a dignidade da pessoa humana. Outrossim, tais direitos visam conter o absolutismo estatal, ora exigindo posturas negativas, ora exigindo prestações positivas, como no campo dos direitos sociais. Por tais razões, os direitos fundamentais são considerados os bens e valores essenciais à existência digna do ser humano, sendo que a resolução de situações de colisão de tais direitos não deve ser a mesma utilizada para os casos de conflitos de normas.

Nesse contexto, entre os princípios que regem o arcabouço dos direitos fundamentais está o princípio da concordância prática ou harmonização.

Sobre o referido princípio, precisas são as digressões de Martins (2019, p. 511):

Trata-se de um corolário do princípio da unidade, visto acima. O princípio da concordância prática ou harmonização visa a compatibilizar direitos fundamentais em conflito. É um princípio comumente utilizado, tendo em vista que os direitos fundamentais normalmente têm o formato de princípios, normas de conteúdo mais amplo, vago, indeterminado. Destarte, caberá ao intérprete tentar harmonizar os direitos em conflitos, visando à melhor solução.

E continua o autor (p. 512), citando as palavras do eminente José Joaquim Gomes Canotilho, nos seguintes termos:

[...] reduzido ao seu núcleo essencial, o princípio da concordância prática impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros. O campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos).

À vista disso, tratando-se de direitos considerados fundamentais, em havendo colisão, não deve haver o afastamento de um direito em detrimento do outro, em estrita observância ao postulado da concordância prática ou harmonização. Por certo, deve haver a harmonização ou a ponderação dos direitos colidentes a fim de se evitar a inaplicabilidade total de um direito. A título de exemplo, imagine-se uma matéria jornalística em que são divulgadas informações pessoais de determinado indivíduo. Ora, no caso posto, ainda que de forma superficial, é possível se constatar que existem direitos fundamentais em confronto: num extremo, a liberdade de imprensa e a liberdade de comunicação, no outro, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada de determinado sujeito.

Fixadas as premissas acerca da teoria geral dos direitos fundamentais, passa-se ao exame do direito à inviolabilidade do sigilo das correspondências.

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Sobre o autor
Júlio Ribeiro de Amorim Neto

Assessor de Magistrado no Tribunal de Justiça do Estado do Piauí. Graduado em Direito pela Faculdade Maurício de Nassau – Unidade Teresina. Pós-graduado em Ciências Criminais pela Escola Superior de Advocacia do Estado do Piauí - ESAPI. E-mail: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NETO, Júlio Ribeiro Amorim. A (im) possibilidade de interceptação de correspondências de presos para fins de investigação criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6841, 25 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96703. Acesso em: 19 abr. 2024.

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