V. Discriminação na contratação:
O e. Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região apreciou recentemente uma ação anulatória bem interessante. Trata-se da Ação Anulatória n.° 00560-2004-000-08-00-2, ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho contra o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção Leve e Pesada e do Mobiliário de Parauapebas, Canaã dos Carajás, Curionópolis e Água Azul do Norte – SINTICLEPEMP.
Analisaremos, a seguir, partes da ação, mais precisamente aquelas que tratam das cláusulas que previam critérios de "preferências" na contratação.
Entre outras cláusulas, estavam sendo impugnadas as seguintes:
CLÁUSULA DÉCIMA QUINTA - RECRUTAMENTO E CONTRATAÇÃO
No recrutamento e na contratação serão obedecidas as seguintes normas, no tocante a:
15.1 – Recrutamento – A empresa dará preferência ao trabalho sindicalizado, encaminhados através das agências de colocação mantidas pelas entidades indicais demandantes, com base territorial na área, nos termos inciso 1º do art. 544 da CLT e assegurado ao trabalhador contratado pela empresa fora do local de prestação de serviço transporte condigno, pousada e alimentação, desde o momento em que forem contratados no local de origem, sem qualquer ônus para o trabalhador não sendo os valores correspondentes incorporados aos salários;
15.2- A empresa se compromete a dar preferência à contratação de mão-de-obra local, desde que atenda aos pré-requisitos necessários para as funções, exigidas pela empresa no que concerne a capacitação e o processo seletivo das empresas;
O Tribunal concluiu pela nulidade da primeira (15.1) e pela validade da segunda (15.2).
Os fundamentos para considerar nula a primeira (15.1) foram os seguintes:
Ao assim estabelecer preferência ao trabalhador sindicalizado – obviamente, em detrimento do trabalhador não sindicalizado – a cláusula viola a liberdade sindical assegurada no artigo 8º da Constituição da República, porque impõe claramente uma discriminação negativa entre trabalhadores pelo simples fato de não ser sindicalizado. Essa condição, além de não ser razoável – porque impõe uma desvantagem ao trabalhador que exerce seu direito à liberdade sindical negativa –, é também injustificada porque não se assenta em um critério equânime de igualar uma desigualdade, sendo vinculada a interesse tipicamente corporativo. A leitura e interpretação mais atual da Consolidação das Leis do Trabalho não comportam inspiração corporativa. A propósito, o único redator sobrevivente da Consolidação, o respeitadíssimo Arnaldo Süssekind, não se cansa de negar, com toda ênfase, até mesmo uma alegada inspiração corporativa da legislação trabalhista brasileira.
Cláusulas dessa natureza, que estabelecem preferências – seja para admissão ou contratação – de trabalhadores sindicalizados, conhecidas na literatura como preferencial shop, violam direta e abertamente a liberdade sindical negativa, pois pretendem obrigar os trabalhadores a filiar-se aos sindicatos para assim ter acesso ao mercado de trabalho, que é livre a todos, respeitadas apenas as condições importas por lei às profissões regulamentadas (art. 5°, XIII, da Constituição da República).
Por tais fundamentos, declara-se a nulidade da seção secundária 15.1 da cláusula décima quinta do acordo coletivo de trabalho (folha 12), com efeitos retroativos (ex tunc).
Em face da aplicação dessa cláusula, de nulidade manifesta, alguns trabalhadores podem ter sido preteridos e, desse modo, discriminados injustamente, o que pode ter causado dano moral.
Se o fundamento para a negativa de contratação foi única e exclusivamente à não filiação do trabalhador ao sindicato respectivo, é evidente o dano moral, pois esse está sendo privando de um bem altamente valioso nos dias atuais, que é o trabalho/emprego, de forma inconstitucional e sem qualquer razoabilidade.
Além disso, pode ter comprometido o sustento próprio e de sua família por uma cláusula abusiva e inconstitucional, o que se mostra inaceitável e, sem dúvida, causa dano moral. Assim, possível o ajuizamento da ação de indenização nessa hipótese.
Mais uma vez estamos diante de uma atuação lamentável da entidade sindical, que subordina a oferta de empregos à filiação dos trabalhadores.
Já em relação à segunda (15.2), o Tribunal concluiu pela sua validade com base nos seguintes fundamentos:
O princípio da isonomia impede tratamento discriminatório, exigindo que os iguais sejam tratados com igualdade e os desiguais com desigualdade. Por isso mesmo têm sido admitidos, com vigor cada vez maior, as assim chamadas discriminações positivas – certas medidas que o Estado pode adotar e que visam compensar a discriminação generalizada e histórica sofrida por determinados grupos (...), medidas [que] são adotadas em caráter temporário, até que as condições básicas dos vários grupos estejam equilibradas, de modo a permitir a justa competição pelas oportunidades – e suas correspondentes ações afirmativas – estratégia de política social ou institucional voltada para alcançar a igualdade de oportunidades entre as pessoas, distinguindo e beneficiando grupos afetados por mecanismos discriminatórios com ações empreendidas em um tempo determinado, com o objetivo de alterar positivamente a situação de desvantagem desses grupos –, das quais as mais conhecidas são as cotas.
Assim, nem toda discriminação é ilegal, inconstitucional ou inaceitável. Algumas delas são consagradas no próprio texto constitucional. Quando o legislador constituinte inscreveu entre os objetivos fundamentais da República a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, II, da Constituição da República) e criou, no âmbito da Administração Pública, as Regiões (art. 43), impôs ao legislador infraconstitucional – e, por extensão, a todos os operadores do direito – a obrigação de favorecer as regiões desfavorecidas com um tratamento discriminatório positivo, pela via de incentivos regionais. Nessa mesma direção e sentido é a discriminação positiva em favor das empresas de pequeno porte (art. 170, IX, da Constituição da República).
Um dos mais graves problemas do desenvolvimento regional e local é exatamente a ausência de efeitos positivos para os habitantes das regiões onde se instalam grandes projetos, e esse é precisamente o caso dos Municípios da área de abrangência do sindicato, em especial o de Parauapebas, no Estado do Pará, um dos que integram a Província Mineral de Carajás, uma das maiores do planeta. Discriminar positivamente as populações locais significa também lhe garantir acesso aos empregos – que não são muitos – gerados no Projeto Carajás e seu entorno. Note-se que, nos termos em que está redigida a cláusula (folhas 12), a preferência pela mão-de-obra local é apenas um critério de desempate, a ser aplicado depois de atendidos os pré-requisitos necessários para a função (sic, folhas 12, cláusula décima quinta, 15.1). Isto é, estando dois trabalhadores concorrendo a uma mesma vaga, dando-lhes igual oportunidade no tocante ao atendimento desses pré-requisitos, dar-se-á preferência àquele que morar no local.
A discriminação, nessas circunstâncias, será discriminação positiva, tanto quanto o são as cotas raciais, por exemplo, ou tantas outras das assim chamadas ações afirmativas em favor de grupos sociais minoritários ou tradicionalmente discriminados (pessoas portadoras de necessidades especiais, idosos, crianças, jovens, indígenas, mulheres, trabalhadores com menor formação etc). Em rigor, a cláusula veicula um critério de desempate de conteúdo discriminatório positivo, o que é inteiramente aceitável, pelas circunstâncias e peculiaridades regionais atuais.
A discriminação positiva estipulada no acordo coletivo guarda semelhança, portanto, com tantas outras estipuladas no texto constitucional e na legislação infraconstitucional, de que são exemplos o tratamento favorecido aos portadores de necessidades especiais, no Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis da União (art. 5º, §2º, da Lei nº 8.112/90) e na Lei das Licitações e Contratos da Administração Pública (art. 24, XX, da Lei nº 8.666/93), bem como às mulheres, na legislação eleitoral e partidária (Leis nos 9.100/95 e 9.504/97). Essas leis, tanto quanto o acordo coletivo, estão em harmonia e guardam congruência jurídica com o texto constitucional, pelo que é possível extrair, neste passo, uma conclusão intermediária, qual seja, a constitucionalidade da discriminação positiva e das ações afirmativas.
Algumas dessas leis resultam exatamente da aplicação da Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil em 1965, cuja implementação resultou no Programa Brasil, Gênero e Raça, como bem o esclarece a Juíza do Trabalho Dorotéia Silva de Azevedo.
E bem a propósito, como relembra TRINDADE, citando CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA, a primeira ordem executiva federal que concretizou a ação afirmativa nos Estados Unidos, em 1965, determinava que as empresas empreiteiras contratadas pelas entidades públicas ficavam obrigadas a uma ‘ação afirmativa’ para aumentar a contratação dos grupos minoritários da população (Cf. CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA, ob. cit., p. 87). Os trabalhadores que vivem – ou tentam fazê-lo – no entorno do Projeto Carajás formam, exatamente, um desses grupos minoritários da população, aos quais, via de regra, se lhes nega acesso aos escassos empregos ali gerados pela extração de minérios.
O momento atual é de expansão de tais ações afirmativas, para alcançar outros grupos sociais, inclusive – por exemplo – pessoas obesas, objeto de uma das teses aprovadas no recentíssimo 12º Congresso Nacional de Magistrados da Justiça do Trabalho – CONAMAT.
Assim, ao contrário do que sustenta o autor, essa cláusula está em inteira harmonia com os princípios e preceitos constitucionais, inclusive o da isonomia, pois é isso o que se busca tratando desigualmente os desiguais. Trata-se, enfim, de ações afirmativas em busca de igualdade, e não o seu contrário, como pareceu ao Ministério Público.
Em suma, não é nula a cláusula de norma coletiva que, assegurando a igualdade de oportunidade e o tratamento desigual aos desiguais, estabelece discriminação positiva em favor da mão-de-obra local, por ocasião de recrutamento de trabalhadores em área amazônica sob a influência de grandes projetos.
Concordamos com a tese apresentada pelo Tribunal, uma vez que a cláusula prevê critério razoável e proporcional aos fins almejados. Entretanto, o fato de o Tribunal ter considerado a clausula válida não impede que algum trabalhador que tenha se sentido preterido e discriminado em face da sua aplicação ajuíze a competente ação de indenização por dano moral, tendo em vista que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (art. 5°, XXXV, da CF). Nesse caso, os argumentos apresentados em relação à cláusula anterior também poderão ser usados em favor do trabalhador.
No tocante a segunda cláusula, cumpre alertar que a sua inserção em negociações coletivas deve ser feita com bastante cautela e prudência, observando os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, bem como a realidade local, sob pena de nulidade.
VI. Redução da garantia de emprego da gestante:
Em relação à redução da garantia de emprego da gestante, encontramos o seguinte julgado, "in verbis":
AÇÃO ANULATÓRIA – CLÁUSULA DE CONVENÇÃO COLETIVA – GARANTIAS CONSTITUCIONAIS – OBSERVÂNCIA – NECESSIDADE – 1. A autodeterminação coletiva tem como limite as garantias mínimas estabelecidas na Constituição Federal, as quais, inclusive, se constituem em cláusulas pétreas, ex VI do art. 60, § 4º, IV, da Carta da República. 2. As convenções e acordos coletivos só podem reduzir direitos constitucionais nas hipóteses autorizadas pela própria Constituição Federal, como é o caso da "irredutibilidade salarial". 3. O prazo da garantia de emprego da gestante encontra-se expressamente fixado na Constituição da República e não pode ser reduzido por negociação coletiva, seja porque a Lei Maior não autoriza tal negociação, seja porque a regra objetiva assegurar higidez física e mental da obreira e do nascituro, não retratando direito disponível. 4. Precedente específico do Supremo Tribunal Federal. 5. Ação anulatória julgada procedente. (TRT 24ª R. – AD 0038/2003-000-24-00-2 – Rel. Juiz Amaury Rodrigues Pinto Júnior – J. 29.10.2003)
O artigo 10, inciso II, alínea "b", do ADCT estabelece que:
Art. 10. Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o artigo 7º, I, da Constituição:
(...)
II - fica vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa:
(...)
b) da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto.
A garantia de emprego (ou estabilidade provisória) assegurada à gestante pelo dispositivo não pode ser objeto de negociação coletiva. É, portanto, imperativa e de ordem pública.
Conforme consta na ementa do julgado, "o prazo dessa garantia de emprego encontra-se expressamente fixado na Constituição da República e não pode ser reduzido por negociação coletiva, seja porque a Lei Maior não autoriza tal negociação, seja porque a regra objetiva assegurar higidez física e mental da obreira e do nascituro, não retratando direito disponível".
Desse modo, considerando que essa estabilidade no emprego visa a tutela do nascituro e à proteção da maternidade (não apenas da mulher empregada), é evidente que a sua redução por norma coletiva pode causar dano moral.
Uma hipótese de dano moral seria a dispensa da empregada antes de completar cinco meses do parto, usando o empregador como fundamento uma cláusula de norma coletiva (acordo ou convenção) assegurando a redução do período de estabilidade.
Nesse período (5 meses após o parto), é bom registrar, a empregada encontra-se um pouco debilitada física e psicologicamente, o que dificultará muito a procura de um novo emprego. Além disso, nesse período a criança precisa ser amamentada e não é aconselhável que seja submetida a situações de stress (que fatalmente decorre do desemprego).
Assim, ocorrendo a dispensa da empregada e estando a mesma um pouco debilitada para procurar e conseguir um novo emprego, é evidente e presumida a dor psicológica que a mesma sofrerá, pois poderá ser privada de recursos suficientes para dar o adequado tratamento ao seu filho (remédio, alimentação, higiene, etc.), bem como dar o carinho necessário.
Nessa hipótese também poderá existir o dano moral e o ajuizamento da ação indenizatória.