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Imputação penal objetiva

Agenda 01/02/2000 às 01:00

Em artigo publicado no Boletim IBCCrim, n.º 86, edição de janeiro de 2000, o Professor Damásio de Jesus nos propõe o seguinte problema: "Suponha-se a condenação à guilhotina de um autor de estupro seguido de morte. Frações de segundo antes de o carrasco puxar a alavanca, o pai da vítima, que havia sido convidado a assistir à execução, com um revólver, desfecha um tiro na cabeça do condenado, matando-o. Responde pela morte?" (1)

Nosso brilhante mestre, mais a frente, nos brinda com sua solução: "...há homicídio, desprezando-se o art. 13, caput, 2ª parte, do CP, cuja aplicação literal, por adoção da equivalência dos antecedentes e do método da eliminação hipotética, conduziria absurdamente à inexistência de crime" (2).

O Professor Damásio busca na Teoria da Imputação Objetiva sua solução: "...há imputação objetiva quando o resultado é causado materialmente por uma conduta produtora de um risco juridicamente proibido no mesmo instante em que o evento fatalmente teria ocorrido em face de outro perigo preexistente. O pai da vítima realizou uma conduta perigosa juridicamente proibida (atirar na vítima), materializando-se o risco na morte do condenado (resultado normativo), ainda que, fatalmente, o evento ocorreria em face da atuação do carrasco" (3).

Nada há que se contestar em relação à resposta dada pelo ilustre penalista. Não obstante, data maxima venia, em relação aos motivos que levaram o Professor Damásio à sua conclusão, me permito discordar: para chegar-se a tal solução, a) desnecessário é desprezar-se a 2ª parte do art. 13, do CP; b) não se aplica no caso em tela argumentos com base em aumento de risco proibido e, portanto, c) não estamos diante de situação que se resolva pela Teoria da Imputação Objetiva.

Comecemos do início. Como afirma nosso caro Professor, são características do crime, em seu aspecto formal, o Fato Típico e a Antijuridicidade (não nos cabe aqui discorrer sobre a necessidade ou não da Culpabilidade ser também um elemento do crime ou mero pressuposto de aplicação da pena, como quer nosso mestre).

O Fato Típico é composto dos seguintes elementos: a) conduta humana dolosa ou culposa; b) resultado (salvo nos crimes de mera conduta); c) nexo de causalidade entre a conduta e o resultado (salvo nos crimes formais e de mera conduta); e d) tipicidade, isto é, o enquadramento do fato material a uma norma penal incriminadora.

Assim, em uma primeira análise, o problema inicialmente proposto se resolve facilmente, uma vez que caracterizada está a conduta dolosa do pai da vítima (voluntariedade e consciência quando do disparo); o resultado morte; o nexo de causalidade existente entre o resultado morte e aquilo que lhe deu causa, isto é, o disparo da arma de fogo; e, finalmente, a subsunção do fato descrito a uma norma penal incriminadora existente, no caso o art. 121 do CP, "matar alguém".

Concentremos nosso foco na relação de causalidade existente entre o disparo da arma e o resultado morte. Adota o nosso CP a Teoria da Equivalência dos Antecedentes Causais (conditio sine qua non). Como revela o próprio Professor Damásio: "...(nosso CP) atribui relevância causal a todos os antecedentes do resultado, considerando que nenhum elemento, de que depende a sua produção, pode ser excluído da linha de desdobramento causal...Para se saber se uma ação é causa do resultado basta, mentalmente, excluí-la de série causal. Se com sua exclusão o resultado teria deixado de ocorrer, é causa. É o denominado procedimento hipotético de eliminação de Thyrén..." (4).

Voltemos, então, ao nosso problema: eliminado o disparo feito pelo pai da vítima, ainda assim teríamos o resultado morte? A resposta é afirmativa, pois o carrasco teria cumprido fielmente a sua missão. Teríamos a inexistência de crime. Continuemos.

Nossa análise, no entanto, não deverá ser tão simplista. Voltemos novamente ao nosso aclamado mestre: "o importante é fixar que excluindo-se determinado acontecimento o resultado não teria ocorrido "como ocorreu": a conduta é causa quando, suprimida mentalmente, o evento in concreto não teria ocorrido no momento em que ocorreu" (5). Claro está que, suprimido o disparo, o resultado morte não teria ocorrido da forma que ocorreu (morte provocada por disparo de arma de fogo), muito menos no momento em que ocorreu (e sim em um outro momento). Não há necessidade de se recorrer à Teoria da Imputação Objetiva (tendo como conseqüência o desprezo da 2ª parte do caput do art. 13 do CP). É a correta interpretação do CP que nos leva à resposta.

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Para melhor corroborar nossa hipótese, imaginemos que o tiro fosse disparado, pelo pai da vítima, no exato momento em que o meio utilizado pelo verdugo para cumprir a sentença de morte fosse posto em ação, e tendo este, o carrasco, sido comprovadamente responsável pela morte. Estaríamos diante de causa absolutamente independente da conduta do sujeito, provocadora do resultado morte, determinando a exclusão do nexo de causalidade entre o disparo do pai da vítima e o resultado, portanto não configurando o fato como típico; não existindo crime (conforme reza nosso já conhecido art. 13 do CP). Vamos agora inverter posições e nos aproximar da situação-problema exposta pelo Professor Damásio, isto é, vamos assumir que o meio utilizado para execução da pena capital não tenha sido a ação determinante para causar a morte do estuprador, tendo esta ocorrido comprovadamente em função do disparo da arma de fogo: restará alguma dúvida de que o pai da vítima responderá pelo crime? Suprimindo-se o disparo só teríamos necessariamente o resultado morte se a ação do carrasco fosse eficiente, na forma, e concomitante – ou posterior – no momento, ao tiro fatal.

Ao utilizar a Teoria da Imputação Objetiva, o nosso grande mestre peca na escolha de sua situação-problema. Vejamos: ao utilizarmos o procedimento hipotético de eliminação de Thyrén, lidamos com um fato real, levantando, em um primeiro momento, tudo aquilo que efetivamente ocorreu, sem nenhuma consideração sobre sua relação de causalidade com o resultado (em nossa situação-problema é o resultado morte do sentenciado e todos os fatos existentes anteriores ao resultado, como por exemplo o julgamento do réu, seu almoço antes do execução, a compra da arma pelo pai da vítima, o disparo feito, enfim, quaisquer que sejam - note-se que a ação do carrasco, para consumar a execução não ocorreu, portanto, logicamente, não será listada como evento ocorrido). Passemos, em um segundo momento, a um processo de eliminação mental, um a um, dos diversos eventos ocorridos anteriormente à produção do resultado. Para que o evento ocorrido não seja causa do resultado ocorrido, é necessário que, dada a sua supressão, o resultado se produza da mesma forma o no mesmo momento em que ocorreu (o julgamento do réu seria causa, pois, se suprimido, não teríamos a ocorrência do resultado efetivamente como se deu e quando se deu; porém, o almoço ingerido antes da execução, se eliminado, em nada alteraria a ocorrência do resultado, isto é, não haveria desvio no curso causal dos acontecimentos).

O que faz nosso caro mestre na justificação de sua solução é criar um hipotético curso causal, não ocorrido, mas sim suposto – morte da estuprador/assassino pela ação do carrasco – e nos fazer crer que a ação do pai da vítima, mesmo que suprimida (teríamos aqui uma outra suposição...), esse hipotético curso causal teria ocorrido daquela mesma forma e naquele mesmo momento. Assim, ao invés de eliminar mentalmente um evento ocorrido e analisar a viabilidade fática de ocorrência do mesmo resultado, nosso mestre sugere a eliminação de um evento ocorrido e analisa a viabilidade de ocorrência de um outro resultado (morte por ação do carrasco). Comprova-se, então, não a necessidade da ocorrência do mesmo resultado, mas sim a existência, hipoteticamente, de um outro curso causal (o que nos poderia levar a proposição de infinitas possibilidades de resultados). É aqui que nosso Professor nos coloca perante a idéia de risco, isto é, a possibilidade de ocorrência – ou não – de determinado evento negativo.

Vamos exemplificar melhor: suponha-se a necessidade de um procedimento de descontaminação de amostras de tecido humano em laboratórios de patologia clínica. Sabe-se, comprovadamente, que tal processo não garante a eliminação por completo dos vetores de transmissão de determinada doença. Suponhamos agora duas situações: a primeira, em que mesmo levado a cabo o procedimento haja contaminação por parte de algum funcionário do laboratório, que vem a falecer; uma segunda hipótese, onde o patologista responsável pelas medidas desinfetantes não as realiza, havendo, como conseqüência, a contaminação do funcionário e sua morte. Claro está que na primeira situação não haverá crime, pois o risco assumido pela manipulação de tecido humano contaminado, ainda que levado a cabo os procedimentos de descontaminação, é juridicamente aceitável, haja vista a sua não proibição pelo legislador: "... porque o legislador será o único a assumir o risco subsistente ainda que se observem todas as prescrições regulamentares; se tal risco era demasiado elevado, caber-lhe-ia proibir totalmente que se empregassem.. (tecidos humanos contaminados)" (6). No segundo caso teríamos a imputação da morte ao patologista responsável, uma vez que "...se alguém, afastando todas as precauções de segurança, cria um risco que ultrapassa esse limite de tolerância, não se vislumbra nenhuma razão para que não seja punido apenas porque, ainda que demonstrado um comportamento adequado, substitui um certo risco reduzido. A opinião que defende esta postura, dominante na doutrina e na jurisprudência, defronta-se com a absurda conseqüência de que se poderia prescindir impunemente de todo o cuidado em quaisquer ações que implicassem um risco – por mais que seja permitido -, mesmo procedendo conforme o prescrito...Face a este argumento, há que afirmar que a imputação do resultado apenas se exclui se a conduta do autor não acarreta um aumento do risco permitido..." (7).

          Voltemos a situação-problema proposta pelo Mestre Damásio. Nela, não há que se falar em "aumento do risco permitido"; sequer há de se falar em risco. Risco de que? O disparo da arma pelo pai da vítima do estupro não aumenta o risco do estuprador/assassino em face da execução da pena de morte, isto é, não aumentam as chances de se produzir a morte do condenado; na realidade é em função do tiro que se produz o resultado. Não há que se comparar as duas situações que em última instância causaram, ou causariam, a morte do condenado; classificá-las de acordo com as chances que cada uma possui para produzir o resultado negativo ("o risco que causam..."); constata-se que em função do tiro, morreu a vítima. Não há, portanto, após a produção do resultado, nada mais a se constatar.

Portanto, não obstante a coerência da resposta apresentada, a base teórica fornecida pelo ilustre Professor não se amolda logicamente à solução da situação-problema inicialmente descrita, seja pela necessidade ainda existente de maiores e mais profundos debates sobre a problemática da Teoria da Imputação Objetiva vis a vis a Teoria da Equivalência dos Antecedentes, seja pela não adequação da citada Teoria, como argumento justificante, ao problema sugerido.


NOTAS

          (1) Jesus, Damásio E. de.: Imputação Objetiva: O "Fugu Assassino" e o "Carrasco Frustrado". Boletim IBCCrim, Ano 7, n.º 86 – Janeiro/2000. Página 13.

(2) Ibid. (Nosso CP, em seu art. 13, assim coloca: "O resultado, de que depende a

existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido")

(3) Ibid.

(4) Jesus, Damásio E. de.: Direito Penal, 1º Volume – Parte Geral. Editora Saraiva. 20ª edição. 1997. São Paulo. Páginas 247-248.

(5) Ob. cit. Página 248.

(6) Roxin, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. Editora Coleção Vega
Universidade. 3ª edição. 1997. Lisboa, Portugal. Página 153 (com adaptações para o caso em tela).

(7) Ibid.

Sobre o autor
Bruno dos Santos Paranhos

servidor do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, acadêmico de Direito no UniCEUB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PARANHOS, Bruno Santos. Imputação penal objetiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 39, 1 fev. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/975. Acesso em: 5 nov. 2024.

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