O título deste artigo parece um contrassenso lógico, pois apresenta termos relacionados à relativização e universalização juntos. Contudo, conforme se verá, recentes decisões vêm demonstrando um novo olhar jurídico para o princípio da universalização do Sistema Único de Saúde (SUS).
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB88), por meio do seu artigo 196, informa que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Diante desse importante dispositivo inserto na Carta Magna brasileira, temos que o Legislador Constituinte de 1988 inseriu o princípio da universalização do sistema de saúde no Estado Brasileiro. Acerca desse princípio, o conceito doutrinário sobre a universalização da saúde informa que é um direito de cidadania de todas as pessoas e cabe ao Estado assegurar este direito, sendo que o acesso às ações e serviços deve ser garantido a todas as pessoas, independentemente de sexo, raça, ocupação ou outras características sociais ou pessoais[1].
Ocorre que não há direito absoluto, conforme o STF já, em inúmeras vezes, se pronunciou[2]. A lógica de que o acesso à saúde deve ser integral e universal, garantido a todas as pessoas, cobrindo todas moléstias e agravos, gera consequências que dificultam a manutenção de um sistema orçamentário hígido.
Nessa seara, o STF[3], ao julgar o RE 1165959/SP, proferiu a seguinte tese:
Cabe ao Estado fornecer, em termos excepcionais, medicamento que, embora não possua registro na Anvisa, tem a sua importação autorizada pela agência de vigilância sanitária, desde que comprovada a incapacidade econômica do paciente, a imprescindibilidade clínica do tratamento, e a impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção terapêutica do SUS.
Com relação a esse julgamento, é possível extrair a ilação de que o STF relativizou, expressamente, a universalização do SUS para o fornecimento, pelo Estado, de medicamento que não possua registro na Anvisa. Assim, conforme acima colacionado, um dos requisitos para que o Estado forneça esse medicamento é que seja comprovada a incapacidade econômica do paciente.
Sendo assim, o SUS, pelo menos quanto a medicamentos que não possuam registro na Anvisa, não mais ostenta a condição de absoluto acesso universal e igualitário. Tal ilação e inferência lógica do argumento de que, para que o Estado tenha o dever de fornecer medicamento sem registro na Anvisa, na visão do STF, faz-se necessário que o cidadão comprove a sua incapacidade econômica.
Como já foi aberta essa possibilidade de relativação do princípio da universalização do SUS, não podemos de deixar de trazer ao debate outras questões. Vamos imaginar que um cidadão seja acometido por uma doença extremamente rara, e que o custo do tratamento medicamentoso gere cifras acima de um milhão de dólares por semana. Deve o Estado fornecer esse tratamento?
É indubitável que a resposta para essa pergunta não é de fácil resolução. Não podemos olvidar que a CRFB88, em seu artigo 167, veda a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais. É de conhecimento notório que os recursos do Estado não são ilimitados. Nesses termos, apesar dos princípios e mandamentos expressos na Carta Magna brasileira, todas as normativas constitucionais devem ser interpretadas de maneira sistêmica com os demais dispositivos da Lei Maior. O princípio da unicidade da Constituição, nas palavras de Canotilho, obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar (ex: princípio do Estado de Direito e princípio democrático, princípio unitário e princípio de autonomia regional e local). Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios[4].
O STF já proferiu dizeres acerca da chamada Tragic Choices, também denominada teoria das escolhas trágicas, em que se discute a tensão entre os limites da execução orçamentária e o princípio da reserva do possível. O Ministro Relator Celso de Mello, na ADPF/45-DF, assim pontuou:
Essa relação dilemática, que se instaura na presente causa, conduz os Juízes deste Supremo Tribunal a proferir decisão que se projeta no contexto das denominadas escolhas trágicas (GUIDO CALABRESI e PHILIP BOBBITT, Tragic Choices, 1978, W. W. Norton & Company), que nada mais exprimem senão o estado de tensão dialética entre a necessidade estatal de tornar concretas e reais as ações e prestações de saúde em favor das pessoas, de um lado, e as dificuldades governamentais de viabilizar a alocação de recursos financeiros, sempre tão dramaticamente escassos, de outro. Mas, como precedentemente acentuado, a missão institucional desta Suprema Corte, como guardiã da superioridade da Constituição da República, impõe, aos seus Juízes, o compromisso de fazer prevalecer os direitos fundamentais da pessoa, dentre os quais avultam, por sua inegável precedência, o direito à vida e o direito à saúde.
No caso acima narrado, o STF se posicionou no sentido de que, no conflito entre dois princípios, deveria prevalecer os direitos fundamentais da pessoa, dentre os quais avultam, por sua inegável precedência, o direito à vida e o direito à saúde. Contudo, as circunstâncias fáticas estão em constante mudanças e, especialmente em razão das despesas criadas diante da superveniência da pandemia causada pela COVID-19, nunca antes foi tão importante a preservação dos recursos públicos e o controle das despesas - para enfrentar as futuras e eventuais situações emergenciais de nível global.
Diante da impossibilidade fática de que o Estado consiga arcar, financeiramente, com os custos de todas as doenças e agravos, deve o Poder Judiciário realizar verdadeiro juízo de ponderação nas decisões judiciais relativas ao direito à saúde. Saúde, segurança, educação e infra-estrutura são prestados (e preservados) pelo Estado por meio da aplicação de recursos financeiros. No plano plurianual, na lei de diretrizes orçamentárias e na lei orçamentária anual, após passar por todo um trâmite legislativo constitucionalmente previsto, são delimitadas, entre outros, a previsão da receita e a fixação da despesa. Decisões judiciais isoladas e alheias a esses estudos orçamentários e políticos possuem o condão de causar prejuízos socioeconômicos, a priori, incalculáveis.
Por óbvio que não se quer suprimir a garantia fundamental de todas as pessoas de buscar, pela via judicial, o seu direito constitucional à saúde integral. Ocorre que as limitações orçamentárias não podem ser desconsideradas quando o Poder Judiciário decide determinar o dever de fornecimento de tratamento ou medicamento, pelo Estado, a um cidadão, o qual possa comprometer todo o plano orçamentário previsto. Restringir do orçamento governamental verbas significativas, sem planejamento, causa, inexoravelmente, prejuízos político-sociais significativos, afetando a execução de programas governamentais que também visam a preservar direitos fundamentais e sociais.
Objetiva-se, com este artigo, alertar os operadores do Direito, especialmente aos membros do Poder Judiciário, na resolução de questões relacionadas a ações judicias envolvendo o direito à saúde. Nenhum direito ou princípio é absoluto e a reserva orçamentária não deve ser levianamente afastada. Com base nos argumentos acima perfilados, este artigo chega ao seu desfecho com esta retórica indagação: diante da já relativização do princípio da universalização do SUS, pelo STF, não seria dever do operador jurídico estender essa hermenêutica jurídica para todos casos em que haverá um comprometimento orçamentário extraordinário?
- https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/sus-estrutura-principios-e-como-funciona
- STF, DJ 12 mai. 2000, MS 23.452/RJ , Rel. Min. CELSO DE MELLO)
- Rext nº 1.165.959/SP, Min. Relator Marco Aurélio, Plenário STF, julgado em 21/06/2021.
- CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 5a edição, Coimbra, Portugal, Livraria Almedina. pág. 1207.