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A capacidade civil da pessoa com deficiência : reflexões acerca das modificações trazidas pela lei 13.146/2015

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Agenda 05/05/2022 às 15:48

 

A CAPACIDADE CIVIL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA: 

REFLEXÕES ACERCA DAS MODIFICAÇÕES TRAZIDAS PELO NOVO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA.

 

 

 

 

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador(a): Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras

 

 

 

 

 

 

 

NATAL

2021

 

RESUMO

O presente trabalho tem por característica mais notável, a presença de uma análise material no que diz respeito à temática da capacidade civil no âmbito da pessoa com deficiência, buscando tecer um posicionamento crítico reflexivo acerca do fenômeno jurídico inaugurado pelo estabelecimento de novos paradigmas trazidos pelo novo estatuto da pessoa com deficiência. Ao longo do corpo da pesquisa, serão observados pontos de destaque trazidos pela doutrina e comparados com o fenômeno jurídico em questão, que buscarão elucidar os diversos questionamentos a respeito das problemáticas que serão apresentadas. Traremos um comparativo crítico entre a normativa trazida pelo documento acima citado, com alguns dos princípios mais básicos do direito brasileiro, como a adequação da norma ao fato social, assim como a da adequação dos princípios constitucionais aos fatos sociais, princípios esses que encontram sua  formulação nas teorias de autores de grande relevância para a nossa doutrina. Uma teoria que será de uma grande valia para esse estudo é a teoria tridimensional do direito, sendo amplamente utilizada para as análises a ela pertinentes.

Em suma, o presente trabalho estabelece uma nova visão a respeito das modificações trazidas pelo estatuto da pessoa com deficiência no que tange ao instituto da capacidade civil, trazendo um viés objetivo e prático das contundentes consequências desse fenômeno atual.

Palavras-chave: Capacidade civil. Pessoa com deficiência. Capacidade relativa. Fato social. Análise normativa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ABSTRACT

The most notable feature of this work is the presence of a material analysis with regard to the theme of civil capacity in the context of people with disabilities, seeking to weave a reflective critical stance on the legal phenomenon inaugurated by the establishment of new paradigms brought about by the new status of the person with a disability. Throughout the body of the research, highlighted points brought by the doctrine and compared with the legal phenomenon in question will be observed, which will seek to elucidate the various questions regarding the issues that will be presented. We will bring a critical comparison between the normative brought by the aforementioned document, with some of the most basic principles of Brazilian law, such as the adequacy of the norm to the social fact, as well as the adequacy of constitutional principles to social facts, principles that find its formulation in the theories of authors of great relevance to our doctrine. A theory that will be of great value to this study is the three-dimensional theory of law, which is widely used for the analyzes relevant to it.

In short, the present work establishes a new vision regarding the changes brought about by the statute of the person with disability regarding the institute of civil capacity, bringing an objective and practical bias of the striking consequences of this current phenomenon.

Keywords: Civil capacity. Disabled person. Relative capacity. Social fact. normative analysis

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 5

2 A PROMULGAÇÃO DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E AS LACUNAS CONSTITUCIONAIS 8

3 TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO AVALIADA SOB A PERSPECTIVA Da nova capacidade civil da pessoa com deficiência.

4 INCLUSÃO SOCIAL X DESAMPARO MATERIAL    15

5 COMPARATIVA ENTRE A INCAPACIDADE ABSOLUTA DO MENOR DE 16 ANOS E A NOVA CAPACIDADE CIVIL DO DEFICIÊNTE MENTAL 20

8 CONCLUSÃO 26

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 30

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


1 INTRODUÇÃO

 

Desde a promulgação da constituição federal de 1988, todo o ordenamento jurídico brasileiro tem passado por profundas reformulações nos mais variados âmbitos jurídicos, sofrendo transformações significativas nas mais diversas searas, transformações essas que buscam um alinhamento maior de toda a legislação infra constitucional aos novos princípios celebrados pela carta maior em voga.

   

Dessa maneira, os princípios constitucionais da nova carta magna, que buscavam um alinhamento direto com os princípios que regem a declaração universal dos direitos humanos, promulgada em 1948, traziam à tona um arcabouço de diretrizes baseadas na inclusão, no respeito às diversidades, buscando aprimorar valores como equidade e isonomia, e sobretudo enaltecendo a dignidade humana como seu princípio constitutivo nuclear e primordial.

 

Tais princípios constitucionais, tinham o claro objetivo de trazer ao campo do direito positivo, as chamadas garantias individuais, no intuito de fazer com que toda e qualquer ameaça a bens jurídicos tão caros fosse frontalmente repelida.

   

O caráter meramente programático que permeava a essência das constituições ao longo de boa parte do período em que surgiram e vigoraram paralelamente às normas legais dos mais variados códigos civis e criminais , foi superado pelo caráter da aplicabilidade, que se traduzia pela capacidade das normativas consititucionais serem efetivamente colocadas em prática.

 

Surgem dessa forma os conceitos de normas constitucionais de eficácia plena, que como o nome sugere, têm sua aplicabilidade direta, imediata e integral, não dependendo de normativa infra constitucional para lhe dar ensejo, o que as difere das normas constitucionais de eficácia contida e/ou limitada, essas últimas, ao contrário das primeiras, detém uma especificidade tal, que se faz necessária uma regulamentação mais minuciosa, mais detalhada, para que os efeitos desejados pelo dispositivo constitucional possam atingir toda a sua plenitude.

Pois foi com essa última característica que surgiram os chamados estatutos especiais, possuindo a característica de trazer ao seio da legalidade, a normativa complexa e minuciosa, da qual a carta magna necessitava para cumprir os anseios constitucionais para os interesses coletivos dos mais variados grupos específicos.

 

Os chamados sistemas especiais, que se traduzem como sendo um agrupamento de normativas que visam a tratar com singular complexidade temáticas específicas, surgem para suprir essa lacuna e dar efetividade às normas constitucionais de eficácia contida e/ou limitada.

 

No nosso ordenamento jurídico podemos trazer vários exemplos desses sistemas especiais, como o estatuto do idoso, o estatuto da criança e do adolescente e, aquele ao qual vamos nos deter um pouco mais neste trabalho, o estatuto da pessoa com deficiência.

 

Em virtude das novas modificações trazidas pelo novo estatuto da pessoa com

deficiência, que teve sua vigência estabelecida pela lei n° 13.146, foram estabelecidas

algumas alterações de relevante impacto para o direito civil brasileiro, principalmente

no tocante aos ditames que regem o instituto da capacidade civil. Tais modificações

representaram uma nova categorização dentro da chamada incapacidade absoluta,

assim como também dentro da incapacidade relativa, assim como no instituto da

representação.

 

Tais modificações, no entando, ensejam uma série de reflexões a respeito das

problemáticas que surgiram como efeitos de impacto direto ou indireto das normas

oriundas do referido documento.

Uma das modificações mais impactantes que surgiram dentro dessa normativa, foi

exatamente o estabelecimento de uma nova categorização no tocante ao instituto da

capacidade civil, realizando a transferência da pessoa com deficiência ( em sua

totalidade ) de dentro do rol dos absolutamente incapazes, para o rol dos relativamente

incapazes, gerando com isso, uma série de impactos dentro da fenomenologia jurídica

do direito civil, trazendo com eles a problemática da inadequação fática a que tais

determinações vieram trazer.

 

Em virtude da principiologia que rege tal diploma legal, fez - se estabelecer

normativas que possuem efeito modificador direto para os jurisdicionados tutelados

por ele, os quais são exatamente as pessoas com deficiência. Tais efeitos geraram uma

inadequação dentro das relações da vida civil, o que em muitos casos acarreta em um

efeito contraproducente, trazendo um movimento inverso ao desejado pela própria

principiologia constitucional.

Em muitos casos, as novas categorizações e diretivas trazidas pelo estatuto da pessoa

com deficiência, trazem frontais rupturas com o princípio da adequação fática da

norma, assim como trazem um desalinhamento com princípios maiores que regem a

nossa constituição, como o próprio princípio da equidade. O que se traduz em uma

busca voraz por uma inclusão desmedida e descalibrada, tirando assim a referida

normativa do trilho determinado pela égide constitucional vigente.

 

2. A PROMULGAÇÃO DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E AS LACUNAS CONSTITUCIONAIS.

 

O estatuto da pessoa com deficiência surge em meados de 2015 com a lei n° 13.146 e vem suprir exatamente essa lacuna, trazida pela carta magna, em que a necessidade de se estabelecer a representatividade das pessoas com deficiência, tornou - se imperativa, surgindo com o intuito de estabelecer as medidas necessárias para tornar os aspectos da vivência das pessoas com deficiência em sociedade mais receptivos, buscando correções legais que ainda se faziam necessárias para o devido desenvolvimento social e pessoal dessas pessoas. Como podemos observar :

 

 

A primeira referência de peso à inclusão na legislação é bastante antiga: a nossa Constituição de 1988. Lá estão descritos alguns dos deveres mais básicos do Estado. Oferecer transporte acessível, uma educação especializada no ensino regular e garantir a proteção das pessoas com deficiência, por exemplo. A natureza genérica desses deveres foi sendo complementada pouco a pouco com outras leis mais específicas. Mesmo assim a evolução ocorreu a passos lentos. As regras para atendimento prioritário, por exemplo, só foram definidas em 2000 e a Libras (Língua Brasileira de Sinais) só foi considerada uma língua no Brasil em 2002.

O grande avanço do Estatuto da Pessoa com Deficiência foi alterar outras leis (como a CLT e o Código Eleitoral) para deixá-las em conformidade com a Convenção Internacional da ONU. Apesar do progresso, a LBI passou pelo mesmo problema da lei de Libras. A legislação demorou a ser criada e o cumprimento das regras é um grande problema até hoje. A primeira versão do texto foi apresentada no ano 2000, mas sua aprovação e publicação ocorreram só em 2015! ( BOGAS, 2017 ).

 

Podemos constatar a real morosidade do nosso ordenamento jurídico para com as pautas de inclusividade relativas à pessoa com deficiência, sendo necessárias mais de duas décadas e meia para a real efetivação dessa normativa.

 

Daí podemos depreender que além das naturais imposições constitucionais de alinhamento para com suas principiologias, as necessidades proeminentes em se buscar as reformulações necessárias, tenham sido de sobremaneira afetadas pelo lapso temporal decorrido entre a promulgação da referida constituição, e a promulgação do estatuto da pessoa com deficiência, impondo ao legislador um caráter incisivo, no tocante aos dispositivos que surgiriam através do processo legislativo, e que dariam origem ao estatuto em questão.

Em outras palavras, é possível inferir que em decorrência do trancurso de um período considerável de tempo, pelo qual a pessoa com deficiência vivenciou uma lacunosidade representativa, uma pujante força móbil, instigou o legislador a produzir um cabedal de normativas de caráter inclusivo, no anseio de se reparar distorções sociais ainda, à época, vivenciadas por esse grupo de pessoas.

Todo esse anseio modificador, tornou o estatuto da pessoa com deficiência uma produção substancial, não completa, porém em alguns pontos bastante impactante e efetivamente reformadora. Em que pese seja comumente alvo de críticas que buscam apontar determinados dispositivos de pouca efetividade, com alguns conjuntos de normas frias e indistintas do código civil.

 

Tendo realizado essa análise contextual do estatuto da pessoa com deficiência, e observando pontos em que o texto normativo especial foi substancialmente modificador, podemos chegar a uma análise sobre um dos pontos de maior destaque de toda a legislação em comento, que é o da modificação de alguns aspectos referentes ao entendimento no que diz respeito à responsabilidade civil da pessoa com deficiência, alterando características que antes eram tidas como naturalmente inerentes aos deficientes, como a incapacidade absoluta em alguns casos por exemplo, realizando, em um movimento de inclusão, a relativização da capacidade civil da pessoa com deficiência, excluindo - os do rol dos absolutamente incapazes. Interessante ponto a observar a seguir :

 

 

O que se sustenta, portanto, é que a deficiência psíquica e/ou intelectual de per si não é mais determinante para a atribuição de incapacidade civil, presumindo-se a capacidade da pessoa com deficiência. Isso não significa que o discernimento da pessoa, concretamente, não deva ser avaliado no momento da realização de negócios jurídicos ou tomadas de decisão por parte daquelas pessoas deficientes psíquicas ou intelectuais. Mas a presunção será sempre a de pleno discernimento e capacidade de exercício. Segundo Joyceane Bezerra de Menezes, () o discernimento é a baliza que orienta o exercício dessa capacidade, especialmente, quando as escolhas que se pode fazer trazem efeitos jurídicos para a esfera pessoal ou de terceiros. O foco, porém, está no discernimento necessário e não no diagnóstico médico de uma deficiência psíquica ou intelectual per si.18 Não se confunde a deficiência psíquica ou intelectual com o conceito de doença mental, por não se tratar de transtorno médico. Muda-se assim a perspectiva para a análise da (in)capacidade civil: a regra passa a ser a capacidade da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual, presumindo-se que ela possui discernimento necessário para a prática de certos atos civis, na medida da possibilidade de expressão de sua vontade. Ou seja, a pessoa com deficiência psíquica ou intelectual é, a princípio, presumidamente e para todos os fins, possuidora de discernimento e, portanto, capaz de fato. ( MULHOLLAND, 2017 ).

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Podemos observar ao ler o exposto acima, que há uma modificação no entendimento dentro da esfera da presunção do discernimento de atos da vida jurídica por parte de pessoas com limitações cognitivas, havendo uma notória preocupação em distinguir pessoas com notáveis limitações de capacidade cognitiva, para pessoas acometidas por patologias de ordem mental. As primeiras, em situação de discernimento presumido, as segundas, em tese, não sendo classificadas com o mesmo efeito jurídico.

Sendo a interrupção da capacidade cognitiva em virtude de affecção mental encarada de maneira ligeiramente diversa da deficiência intelectual propriamente dita, oriunda do nascimento.

3. TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO ANALISADA SOB A PERSPECTIVA DA NOVA CAPACIDADE CIVIL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

      Uma das maiores contribuições teóricas para o direito brasileiro, que obteve alcance inclusive a nível global, foi a consagrada teoria tridimensional do direito, proposta pelo jurista brasileiro Miguel Reale. Tal teoria, já amplamente conhecida pelo nosso sistema jurídico, tem como condão primordial, o estabelecimento de uma ligação necessária entre as três faces as quais compõem o direito . Tal ligação se dá em caráter de estrita necessidade, pois deverá haver, sempre, um nexo causal entre uma normativa criada, um fato social que enseja e serve de fonte primária do processo de nomogênese, e por fim, deverá haver uma ligação, também necessária, entre a norma e seu posicionamento valorativo perante o corpo jurisdicionado para o qual se dirige, em outras palavras, a própria coletividade. Sendo assim, uma norma deverá sempre realizar um diálogo com os princípios e valores que norteiam a coletividade a qual a referida norma terá por propósito, regulamentar e produzir efeitos, assim como, de maneira primordial, o dispositivo deverá buscar sempre o diálogo com o contexto fático social, com a ambientação concreta do sistema para o qual está sendo direcionada, em outras palavras, a norma terá ( necessariamente ) que possuir uma relação umbilical com a realidade.

        Assim sendo, a teoria tridimensional do direito tem uma fundamental importância no processo de elaboração de toda e qualquer normativa, e no caso em análise, temos igualmente a necessidade de tecer reflexões a respeito de como o novo posicionamento da capacidade civil da pessoa com deficiência afeta na prática a tutela dos direitos dessa classe de jurisdicionados, levando em consideração suas particularidades, bem como realizando a comparativa entre o público a qual se destina a referida norma, e outros públicos os quais também possuem características similares o suficiente para compartilhar os efeitos da mesma normativa.

       Dessa maneira, se faz necessário até mesmo com um certo rigor, que a teoria tridimensional seja analisada nesse trabalho, sobretudo para que possamos tecer um ponto de vista crítico a respeito dos efeitos materiais e reais os quais serão levados a cabo pela instituição de uma nova perspectiva a respeito da capacidade civil do deficiente. Como exemplos dessa urgente necessidade de análise, temos a problemática da efetiva tutela jurisdicional das pessoas com necessidades especiais, sobretudo as que possuem limitações mais severas, as quais possuem características contundentes de uma incapacidade civil absoluta e que estão sendo alçadas pela nova normativa para um estado civil de incapacidade relativa. Temos a problemática a respeito das questões que envolvem o discernimento e sua intrínseca relação com a capacidade civil, entre outras questões que serão discutidas ao longo desse trabalho.

      Em suma, a teoria tridimensional do direito, estabelece que toda e qualquer normativa, seja ela destinada a produzir qualquer efeito na vida cotidiana, deve passar por uma análise que se assemelha a uma linha de produção em uma lógica fabril, consistindo na primeira etapa sendo a verificação de um fato social que seja coerente com o corpo semântico da norma, ou seja, o sentido que a norma traz em seu texto, sua intenção e seus propósitos. Em outras palavras, o primeiro momento no processo de busca da legitimidade da nova normativa consiste em estabelecer um reflexo entre fato social e norma, assim como consiste em verificar se realmente existe uma correspondência material dentro do mundo concreto que justifique a existência daquela norma que estará em vias de ser elaborada, em seguida, tem - se o estabelecimento de uma relação valorativa e principiológica, tanto do fato social, quanto da normativa que o pretende regulamentar, é nesse segundo momento que ( em tese ) deveria se buscar um arranjo com a ordem jurídica vigente e com todo o seu arcabouço diretivo, a fim de que o novo dispositivo seja costurado de maneira adequada e venha a de fato corrigir falhas e lacunas no tecido jurídico - social.

Assim sendo, se faz necessário um vislumbre conceitual a respeito da teoria tridimensional do direito, sob a perspectiva do próprio Miguel Reale expressa por pesquisadores e estudiosos do tema :

Ensina o professor Miguel Reale1 que é lícito conjecturar que o homem tenha vivido o Direito como experiência, realizando-o como fato social, sempre relacionado à religião e aos mitos de determinada cultura, pois o Direito é fenômeno ligado à vida social do homem. Inicialmente, portanto, não havia consciência clara e distinta dos fatos jurídicos que habilitassem o Direito a tornar-se uma ciência autônoma. A ordem do cosmos o homem relacionava a ordem de seu próprio mundo, de suas próprias relações sociais, de seus atos, de seus comportamentos. O momento decisivo, segundo o professor Reale, surge quando os Fatos começam a ter significado percebido no plano da consciência. Antes desse primeiro momento importantíssimo para a habilitação do Direito à categoria de ciência, este possuía seu conteúdo fático obliterado por aquilo que o professor Miguel Reale denomina Direito como conteúdo de estimativa, ou seja, Direito ligado ao sentimento do justo, 1 REALE, Miguel. Filosofia do direito, pp. 499 e ss. ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO 4 revelado em expressões irracionais.2 A segunda intuição do homem, com relação ao plano fático, seria a da ordem social em que o Direito estaria inserido, ainda carente de formação organizada do Poder, permeada de valores os mais diversos possíveis, inseparáveis da moral social. A esses valores, o homem reagiria de modo a hipostasiá-los, ou seja, projetá-los para fora de si e transformá-los em entidades por si subsistentes.3 Como fato, o Direito só será investigado metodicamente na época moderna, genericamente com os trabalhos de Maquiavel, Jean Bodin, Thomas Hobbes, Montesquieu e, mais especificamente, com os trabalhos sociológicos e históricos do século XX. O terceiro momento de percepção do fenômeno jurídico é aquele que o professor Miguel Reale designa por Intuição Normativa do Direito.4 Nessa fase, o Direito teria sido visto como norma, como lex, momento influenciado principalmente pelo Direito Romano5 que a seu tempo constrói o Direito como ordem normativa, como indagação da experiência concreta do justo.6 Exemplo disso, o brocardo ex fato oritur jus, deve ser interpretado, na lição do professor Miguel Reale, como o encontro ideal do justo com o fato concreto, que lhe é condição. Essa ligação de justo com fato, de Justiça e Direito, que perfaziam o todo da experiência jurídica, era designado com a expressão regula juris, medida de ligação. Da palavra Regula herda-se hoje duas outras palavras igualmente esclarecedoras desse liame fato, valor e norma: régua, como segmento de direção no plano físico; e regra. ( ÁLVARO, 2017 )

Assim sendo, é escorreito observarmos que no que tange ao conceito central da teoria tridimensional do direito, proposta e elaborada por Miguel Reale, que como vimos, consiste em uma sincronia entre três faces, um diálogo entre três lados de um prisma que resulta na adequada criação da norma jurídica que visa a regulamentação valorada de fatos e fenômenos sociais, ocorre que se faz possível observar uma plena e eficaz obediência da já referida inovação legal trazida pelo estatuto da pessoa com deficiência, com as diretrizes estabelecidas pela teoria tridimensional do direito.

Essa análise que afirma um certo grau de incongruência entre a norma e o fato social pode ser observada exatamente pelo fato de não existir uma inovação fenomenológica que consiga atuar como substrato jurídico que justifique a existência da mesma, em outras palavras, a modificação trazida pelo estatuto da pessoa com deficiência no tocante à responsabilidade civil, não encontra uma justificativa para existir, as motivações alegadas para a promoção do instituto são baseadas em representatividade e inclusão social, o que de fato são valores estabelecidos constitucionalmente e que devem permear todo o ordenamento, servindo de base principiológica para toda e qualquer norma vigente, contudo, ao contrário do que podemos observar em normas que visam a acessibilidade e representatividade para os deficientes, que de fato obedecem aos princípios constitucionais, e que se encontram em abundância no novo estatuto, as normas que determinam a modificação e o reposicionamento do deficiente em relação à capacidade civil não atende aos ditames principiológicos da representatividade e tampouco, ao contrário do argumento que se utiliza para justificar tal medida, possui um viés inclusivo, tendo apenas a efetivação de uma inclusão aparente, desprovida de uma inclusão material, assim como desprovida de equidade e de equilíbrio jurídico.

É fundamental destacarmos que o princípio da equidade visa exatamente o estabelecimento de uma correção, um calço jurídico, que venha a reparar desníveis materiais provocados pelas intempéries sociais, que em muitos casos se apresentam como limitações físicas, mentais, de discernimento e cognição, além de diversas outras situações e concretudes que porventura venham a diferenciar de maneira substancial um cidadão entendido como normal de outro entendido como especial. As correções se traduzem por medidas legais que venham estabelecer o equilíbrio social, garantindo uma satisfatória redução dessas diferenças, permitindo a proteção e a integridade de todos os bens jurídicos tutelados pelo estado.

Como citamos anteriormente, o já citado estatuto da pessoa com deficiência trouxe à tona discussões de primária relevância no tocante aos interesses da pessoa com deficiência, como questões de acessibilidade, questões de tratamento especial em estabelecimentos públicos, vagas em cargos públicos destinadas preferencialmente à pessoa com deficiência, entre outras discussões de substancial importância para a efetiva concretização da tutela dos direitos dos especialmente necessitados.

Assim sendo, é de fácil compreensão que o diploma em comento surge como um garantidor de que todas as medidas cabíveis, possíveis e necessárias para a realização das correções sociais sejam efetivamente tomadas pelo estado. Contudo, é possível destacar alguns pontos na legislação que rege os direitos da pessoa com deficiência, que precisam ser melhor discutidos para que não acabem por causar danos aos próprios direitos da pessoa com deficiência, gerando assim um efeito contraproducente, e é nesse exato ponto que consiste o nosso estudo a respeito da capacidade civil da pessoa com deficiência, e da evidente importância de se pousar o olhar para essa questão com muito cuidado, analisando detalhadamente os pontos mais críticos desse instituto e concluindo ao final, se realmente ele vem para ser mais uma ferramenta de proteção e efetiva correção equitativa, ou se na prática, ele acaba por se tornar um elemento contraproducente, gerador de um efeito inverso ao qual seria usualmente desejado, e que deverá ser repensado dentro da ordem jurídica atual.

Toda essa discussão acerca da qual estamos nos debruçando neste capítulo, visa a compreensão sobre o que é a teoria tridimensional do direito, como ela se aplica em termos de nomogênese, qual seu raciocínio jurídico, e enfim, a comparativa com a legislação em análise, sobretudo com o instituto da capacidade civil e de sua inovação trazida pelo novo estatuto.

 

4. INCLUSÃO SOCIAL E DESAMPARO MATERIAL : ANÁLISE A RESPEITO DAS EVENTUAIS LESÕES A DIREITO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA CAUSADAS PELO NOVO POSICIONAMENTO REFERENTE À CAPACIDADE CIVIL.

 

Aqui chegamos a um dos pontos mais centrais desse estudo, que é de fato a questão das problemáticas concretas geradas pela nova ordem estabelecida pela lei do novo estatuto da pessoa com deficiência. Neste tópico traremos quais são de fato os problemas mais proeminentes e contundentes que podem ser estabelecidos por essa nova concepção a respeito da capacidade civil.

Em primeiro lugar, se faz necessário estabelecer um referencial que possa servir de bússola para enxergarmos o que de fato mudou. Estabelecer uma comparativa entre como era antes do estatuto e como ficou depois de sua promulgação e vigência.

Sendo assim, notamos :

Diversas são as críticas feitas a tal mudança. Alguns sugerem que essa mudança agregou grandes benefícios de maneira que o sistema de incapacidades deixou de ter um modelo rígido, passando a ser mais maleável, pensado a partir das circunstâncias do caso concreto e em prol da inclusão das pessoas com deficiência, tutelando a sua dignidade e a sua interação social. Porém, também gerou grandes perdas de proteção. Como exemplo podemos citar a suspenção do prazo de prescrição, art. 198, I CC; as hipóteses de suspenção da prescrição aplicadas a usucapião, art.1244, CC e nulidade absoluta para negócios jurídicos, art. 166, CC  ( KHALEK, 2017.)

      Como podemos observar acima, diversos institutos referentes à capacidade civil, na esfera jurídica positivada, como por exemplo, a questão da contagem do prazo prescricional, que antes da referida mudança, não corria contra o deficiente mental grave, e agora passa a correr, outro ponto de destaque que foi modificado pela nova normativa foi a da responsabilidade patrimonial da pessoa com deficiência, que anteriormente nas situações mais extremas, tais bens só responderiam de maneira subsidiária, com o novo regramento, o patrimônio de um deficiente mental poderá ser atingido diretamente, em uma lógica de responsabilidade solidária.

      O ponto de maior preocupação quando nos deparamos com a problemática do novo posicionamento da pessoa com deficiência referente à capacidade civil, é exatamente na esfera que diz respeito aos impactos lesivos aos bens jurídicos ligados à pessoa com deficiência, como vimos acima, o patrimônio, sua integridade moral e física entre outros bens jurídicos que como veremos a seguir podem ser afetados de sobremaneira pela execução de práticas da vida civil, realizadas por pessoas absolutamente incapazes, ainda que em certo grau e em certas ocasiões, realizadas com assistência.

     Dito isso, é importante que tenhamos em mente que a razão pela qual todo o problema se desenvolve, está intrinsecamente ligada ao quesito do discernimento cognitivo do ser humano, e como essa faculdade funciona não apenas como a base, o fundamento, o alicerce, mas também como a estrutura da capacidade civil como um todo. O discernimento é a matriz que sustenta todo o instituto da capacidade civil, assim como o da responsabilidade civil subjetiva, não há que se falar em capacidade ou responsabilidade civil, quando não se tem discernimento cognitivo a respeito da própria existência e das relações humanas, e quando se fala em deficiência mental, se fala diretamente em limitação de discernimento cognitivo. Evidentemente, as causas que geram limitações de ordem cognitiva são as mais variadas possíveis, afetando a cognição humana nos mais variados graus de limitação, que vão desde um simples embotamento, até limitações profundas na esfera do discernimento, a um ponto em que o indivíduo não seja capaz sequer de se atentar para a sua própria existência. Falaremos mais a respeito do discernimento como estrutura fundamental de sustentação da capacidade civil, no capítulo posterior, em que faremos a comparativa entre a capacidade civil do deficiente com o menor de dezesseis anos.

       No entanto, os princípios constitucionais que são trazidos e celebrados pela atual constituição brasileira, que como vimos, são norteados pela declaração universal dos direitos humanos de 1948, trazem preocupações referentes aos grupos chamados minoritários, e isso se refletiu diretamente dentro dos micro sistemas legais que temos atualmente dentro da nossa ordem jurídica, contudo, como vimos em alguns pontos desse trabalho, o processo de garantias e proteção de bens jurídicos, assim como o processo de representação dos interesses e do movimento de inclusão dessas minorias, precisa ser realizado de maneira analítica, objetiva, de forma a não observarmos um movimento normativo que tenha como característica essencial, a desnaturalização da proteção especial a qual deveria ser a razão da existência de tais conjuntos de normas.

     Assim sendo, abordaremos mais alguns pontos que terão como objetivo, comparar os efeitos que o estatuto da pessoa com deficiência gerou com a sua inovação relativa à capacidade civil da pessoa com deficiência, efeitos esses em que se faz possível verificar pontos críticos, que merecem um olhar mais detido para que possam ser efetivamente compreendidos dentro da sua função principiológica. Em outros termos, traremos mais comparativas entre o antes e o depois da norma e abordaremos os efeitos colaterais gerados pela ação do legislador.

      É certo se observar que toda e qualquer norma tem em sua forma e materialidade uma pretensão de se tornar válida dentro do ordenamento jurídico, obedecendo a ditames constitucionais, se alinhando à ordem jurídica, assim como ser compreendida e ter seus comandos obedecidos pela coletividade a que se dirigem. Portanto, com a norma trazida pelo novo estatuto da pessoa com deficiência não é diferente, a norma produz efeitos na vida cotidiana e a esses efeitos caberão o cumprimento do alinhamento da norma não apenas aos preceitos, premissas e diretrizes consitucionais, mas também, como vimos no capítulo anterior, do alinhamento aos fatos sociais os quais reclamam sua normatividade.

     Assim sendo, a partir deste ponto no nosso trabalho, passaremos a observar ponto a ponto assinalado pela modificação trazida pelo estatuto da pessoa com deficiência no que tange ao novo posicionamento referente à capacidade civil da pessoa com deficiência, buscando verificar os efeitos dessa normativa e como tais efeitos dialogam com a estrutura e principiologia constitucional vigente.

     Para que se possa analisar a problemática com mais nitidez, é importante destacar quais as principais diferenças entre as condições de incapacidade absoluta e incapacidade relativa como vemos no código civil :

 

a) Incapacidade absoluta: O sujeito necessita estar representado por pessoa com a capacidade civil plena. Aqui a figura do incapaz é refletida por meio de um representante; e 

b) Incapacidade relativa: O sujeito de direitos assistido por pessoa com capacidade civil plena. Os assistentes possuem o papel de assegurar a regularidade dos atos praticados ou negócios celebrados pelo assistido. 

O Código Civil, cuida em seu artigo 3º da incapacidade absoluta o qual dispõe que: São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.  

Já o artigo 4º se encarregou de tratar das hipóteses em que o sujeito é relativamente incapaz, são elas:  

a) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos (impúbere); 

b) os ébrios habituais e os viciados em tóxico, ou seja, as pessoas alcoólatras ou viciadas em alguma substância tóxica (drogas), ao ponto de não conseguirem exercer determinado ato ou atividade; 

c) aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade: como por exemplo as pessoas que, devido a alguém acidente, encontram-se em coma; 

d) os pródigos: aqueles que são incapazes de controlar seus gastos a ponto de perder de tudo e ficar em uma situação de pobreza devido a isso. (BRASIL, 2002).

Como podemos observar, as pessoas portadoras de algum tipo de deficiência mental sequer constavam no rol dos relativamente incapazes, uma vez que à época da promulgação do código civil, a pessoa com deficiência era considerada como absolutamente incapaz, como sabemos, hoje há a previsão da incapacidade relativa trazida pelo estatuto da pessoa com deficiência.

Assim sendo, o deficiente mental hoje não necessita mais de um representante legal que possua capacidade civil plena para executar atos da vida civil em seu nome, por sua vez, hoje basta que uma pessoa com capacidade civil plena a assista em seus atos, para que tais atos sejam considerados como válidos. Aqui, encontramos dois pontos que merecem destaque especial, o primeiro deles diz respeito aos efeitos colaterais decorrentes dos atos da vida civil que recaem sobre bens jurídicos que orbitam a pessoa com deficiência, como patrimônio, como responsabilidades processuais e fenômenos jurídicos dentro da esfera do direito das obrigações como prescrição e decadência, é relativamente claro tais efeitos prejudiciais ao deficiente que surgem com a sua migração para a esfera da capacidade relativa. Em suma, tanto na responsabilidade dos bens patrimoniais, quanto na esfera processual, em termos de prescrição e responsabilidade ativa, nota - se um proeminente ônus, de alto relevo, que emerge em contrapartida ao bônus da capacidade relativa.

O outro ponto que merece destaque dentro desta análise, é exatamente o que diz respeito ao fenômeno da inclusão social, fenômeno esse que tem sua origem no cabedal principiológico da constituição federal como vimos em capítulos anteriores, influencia e determina todas as diretrizes da nossa ordem jurídica atual. O estatuto da pessoa com deficiência, por sua vez, como vimos, não foge a essa influência e se coloca como um instrumento para a efetivação da inclusão social da pessoa com deficiência, assim como um dos principais instrumentos para o fim do preconceito e das lesões associadas à discriminação da pessoa com necessidade especial.

Contudo, muito embora os incontáveis benefícios inaugurados pelo diploma especial, como as leis sobre acessibilidade para deficientes físicos, que modificaram de sobremaneira a forma com a qual as pessoas, físicas e jurídicas, encaram as necessidades especiais, em um movimento gerador de reflexões sociais a respeito da importância da equidade na vida cotidiana, as leis de inclusão referentes às cotas em certames públicos, que tinham o viés de permitia ao deficiente o ingresso no mercado de trabalho através do serviço público, etc. Todo esse movimento foi de uma inegável importância para a efetivação do direito, para a tutela dos bens jurídicos da pessoa com deficiência, assim como da manifesta efetivação do princípio da equidade. Contudo, quando a questão se voltou para a esfera da capacidade civil, os princípios constitucionais de inclusão acabaram por não gerar o efeito desejado e que vinha sendo experimentado pelas outras normativas elencadas acima. Isso é de fácil percepção quando se tem uma leve diferença entre a prática dos atos da vida civil realizados pela pessoa com deficiência, ora, se anteriormente à promulgação do estatuto da pessoa com deficiência, os atos da vida civil inerentes ao deficiente deveriam ser praticados por representante legal com plena capacidade civil, com a modificação trazida pelo estatuto, essa representação apenas se modificou para a assistência, não retirando a figura de um  terceiro envolvido no processo de realização do ato, o que nos faz refletir sobre o efetivo e material resultado concreto que tenha por objetivo a inclusão social do deficiente mental. Em outras palavras, não há uma transformação substancial no fenômeno da inclusão da pessoa com deficiência nas práticas da vida civil, apenas, formalmente, houve a previsão de um  assistente, não mais de um representante, para compor a relação jurídica ativa. O deficiente continua necessitando de uma terceira pessoa para auxilia - lo, ainda que em grau diverso do que anteriormente existia, não possuindo um pleno sentimento de liberdade que seria fundamental para o seu processo de amadurecimento e inclusão, por outro lado seus bens jurídicos como patrimônio por exemplo, passam  a ser expostos, e responderem e serem atingidos civilmente.

Ainda nesse contexto, podemos ainda destacar o caráter de validade dos atos da vida civil praticados pela pessoa com deficiência, em que pese, os referidos atos estão eivados da mesma característica que generaliza a condição de relativamente incapaz da pessoa com deficiência, em outras palavras, a prática da vida civil realizada pela pessoa  com deficiência são caracterizados como anuláveis, e não como nulos ou inexistentes, uma vez que a depender do grau de lesão cognitiva os atos deveriam  ser gradativamente classificados, como anuláveis, nulos ou inexistentes, como podemos observar a seguir :

 Euclides de Oliveira concorda. No que se refere à invalidade de atos praticados por deficiente grave, por exemplo, pode-se entender que não seriam meramente anuláveis, mas até mesmo inexistentes, um nada jurídico, pela absoluta falta de vontade do agente, 

   Equipara - se assim, a expressão dúbia e abstrata de um deficiente grave, com  uma inexpressão,  traduzindo a incapacidade material de expressão da vontade em  uma inexpressão propriamente dita,  o que de fato se traduziria de maneira reflexa e congruente.

5. COMPARAÇÕES ENTRE OS FUNDAMENTOS DA INCAPACIDADE ABSOLUTA DO MENOR DE 16 ANOS E A INCAPACIDADE RELATIVA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA COGNITIVA.

 

Ao realizarmos uma análise mais detalhada sobre toda a principiologia constitucional a respeito das modificações no posicionamento de diversos grupos considerados minoritários, podemos considerar que houveram movimentos notadamente inclusivos, de força modificadora considerável, que realizaram uma inovação substancial de inclusão.

 

Porém, diante de todo esse exposto, diante de toda essa análise a respeito desses movimentos inclusivos, é possível observar que em algumas circunstâncias específicas, algumas modificações que foram realizadas na esfera da inclusão podem ter sido realizadas de uma maneira excessivamente incisiva, e em alguns pontos essa intensa incisividade ocasionou algumas inadequações de ordem interpretativa, fundamentadas no movimento principiológico de inclusão.

A seguir vamos tecer algumas análises a respeito dessas inadequações, mostrando que em alguns pontos é possível verificar que se faz necessário um reposicionamento de alguns pontos que foram trazidos pela legislação especial.

 

Uma análise importante a ser feita no que diz respeito ao novo posicionamento da pessoa com deficiência no que tange ao instituto da responsabilidade civil, é que se faz necessário ressaltar, que uma análise sobre a responsabilidade civil da pessoa com deficiência passa diretamente por uma análise comparativa sobre a responsabilidade civil da pessoa menor de dezesseis anos, é fundamentalmente importante realizar esse paralelo, essa análise comparativa sobre os fundamentos que justificam o posicionamento de um grupo e do outro. A seguir, poderemos ver os conceitos de pessoa com deficiência, assim como o entendimento a respeito das balizas que compreendem os limites da responsabilidade civil, segundo o entendimento da doutrina e do perfil da norma jurídica :

 

Pois bem, para os fins da lei, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (artigo 2º).  

Na esfera civil, estabeleceu-se que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I - casar-se e constituir união estável; II - exercer direitos sexuais e reprodutivos; III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas (artigo 6º).

Parte-se da premissa que a deficiência não é, em princípio, causadora de limitações à capacidade civil[1]. Diante desse panorama, o EPD irá revogar expressamente os incisos II e III do artigo 3º do Código Civil. Doravante haverá apenas uma causa de incapacidade absoluta, qual seja, ser a pessoa menor de 16 anos. Não serão mais considerados absolutamente incapazes os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos e os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. ( CORREIA, 2015 ).

Temos aqui, uma clara observação da doutrina de que as balizas que delimitam a capacidade civil de um cidadão, são definidas pelo discernimento, esse é o ponto central da discussão a respeito desses limites, portanto, um comparativo entre a incapacidade absoluta dos menores de dezesseis anos, e a capacidade relativa da pessoa com deficiência mental, é um movimento de caráter fundamentalmente lógico a se fazer.

   Assim, salientamos que a lacuna legal que passou a existir em virtude das novas modificações trazidas pela inovação legal do estatuto da pessoa com deficiência, trouxe certas inadequações de ordem fática, gerando uma falha responsiva do sistema representativo, como podemos observar :

 

A Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, chamada de inclusão da pessoa com deficiência, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, no seu artigo 114, deu nova redação ao artigo terceiro do Código Civil ficando estabelecido que os absolutamente incapazes para os atos da vida civil são apenas os menores de dezesseis anos, revogando os incisos I a III, que previam a incapacidade absoluta para os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos e os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Os aplicadores do direito, no foro, passaram a afirmar que deixou de existir a incapacidade absoluta decorrente da condição física ou de saúde. Alguns passaram a entender, inclusive, a necessidade de ser feita revisão de sentenças de interdição, mesmo de ofício, sob a justificativa de se adequar as situações de fato ao novo Estatuto. Pretendemos demonstrar que a incapacidade absoluta para os atos da vida civil existe de fato, embora tenha deixado de existir de direito, para específicas condições de saúde, o que implica em uma inadequação da alteração legal que distanciou a norma da realidade, deixando um vazio legislativo que (esperamos) o bom senso da hermenêutica possa suprir no decorrer do tempo e da prática forense. ( CERQUEIRA, 2017 ).

Acabamos de nos deparar com uma análise bastante elucidativa a respeito da problemática em questão, todo o avanço que a representatividade e inclusão das pessoas com deficiência representou ao longo dos últimos cinco anos, é de suma importância e pertinência para as efetivas aplicações equitativas dos princípios constitucionais.

Contudo, não é raro encontrarmos na doutrina e na própria jurisprudência, elementos que apontam para lapsos normativos que se geraram com a promulgação do referido documento. A problemática da capacidade civil da pessoa com deficiência se gerou no momento em que determinou as balizas criteriosas para a delimitação da capacidade de se realizar atos da vida civil. Tais balizas são caracterizadas em sua quase totalidade na capacidade de discernimento de cada um dos agentes da vida civil.

Quando nos deparamos com o artigo 3° incisos do código civil de 2002 podemos constatar que diante do rol dos incapazes, tanto as pessoas com deficiência mental, quanto o das pessoas com idade menor a dezesseis anos, estavam elencadas, como podemos observar in verbis :

 

Art. 3° São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
 

I - os menores de dezesseis anos;
 

II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;
 

III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. ( BRASIL, 2002 ).

 

Pode - se depreender a acurácia do referido dispositivo legal, se utilizando de balizas com coerência e alinhamento aos fatos sociais.

Quando utilizamos o estatuto da pessoa com deficiência como referencial comparativo, vemos que na legislação especial ocorre uma preocupação excessiva do legislador em incluir socialmente a pessoa com deficiência, colocando - a em condições muito próximas de pessoas que não possuem necessidades especiais, no que se refere ao cumprimento e gozo da sua capacidade plena para realização de atos da vida jurídica. Acarretando em uma sensível afronta ao princípio da equidade.

   O que não ocorre no antigo dispositivo, por ora revogado, do código civil de 2002, em que pese sua cronologia mais primeva, contava com uma preocupação fática mais substancial, ao determinar que as balizas da capacidade civil seria o discernimento, sendo ele total ou parcial, determinando a capacidade civil plena ou relativa. O que determina uma melhor posicionamento do dispositivo para sua representação nos reflexos sociais.

 

Em suma, ao utilizarmos as balizas criteriosas que estabelecem que o discernimento como o fator determinante para plenitude ou relatividade da capacidade civil, não podemos incluir, de maneira objetiva e sumária, as pessoas com deficiência mental, e nesta análise se faz necessária a reiteração ao termo objetiva e sumária para podermos tecer análises mais precisas sobre o instituto da capacidade civil para deficientes mentais. Isso se faz estritamente necessário pelo fato de existir uma gradação proeminente relativa ao nível de afetação cognitiva do deficiente.

  

Um exemplo bem claro dessa gradação é o de um deficiente cognitivo de baixa afetação intelectual, que possui um nível de autonomia relativamente alto, e em que pese sua limitação, este poderia sim, ser enquadrado em uma situação de capacidade relativa de sua vida civil, enquanto que uma pessoa em estado vegetativo ou em um quadro de doença mental profunda, não teria condição alguma de exercer qualquer tipo de manifestação de sua vontade, por incapacidade física absoluta. Assim podemos verificar :

 

É preciso que se comece aqui afirmando o óbvio: existem pessoas cuja condição física e/ou mental não as capacitam a tomar quaisquer decisões sobre suas vidas. Essa condição de que falamos pode comprometer os cuidados básicos com a subsistência e até a higiene pessoal, que precisa ser feita por terceiros, sem mencionar aquelas que estão em estado profundo de inconsciência o chamado estado de coma.

Se a realidade vivenciada revela uma incapacidade do exercício pleno da consciência (vale dizer em termos jurídicos: a capacidade de discernir de compreender, de se determinar de acordo com essa compreensão, a percepção do eu, etc.), é preciso que a norma jurídica preveja de forma clara e precisa essa condição humana. ( CERQUEIRA, 2017 ).

Não restam dúvidas a respeito das condições de incapacidade absoluta de alguns tipos de pessoas com deficiência. Assim como não restam dúvidas a respeito da falta de coerência e coesão legislativas, para com as determinações instauradas pelos dispositivos legais, trazidos pela normativa especial.

Em mais um exemplo de que as balizas que determinam a capacidade civil aplicam - se de maneira ambivalente, é o exemplo da instauração da incapacidade civil aos menores de dezesseis anos.

As fundamentações principiológicas que norteiam e são utilizadas de maneira estrutural para justificar a imposição da incapacidade civil para os menores de dezesseis anos são as de que nesse período da vida social, o indivíduo ainda não está plenamente capaz de realizar atos da vida civil de uma maneira autônoma, exatamente pelo fato de não ter desenvolvido sua capacidade crítica e analógica da realidade que o cerca, implicando assim em uma ausência de experiências cognitivas que permitam ao indivíduo nessa faixa etária um acúmulo de situações geradoras de uma hipertrofia discernitiva.

Em outras palavras, o indivíduo não possui discernimento suficiente para realizar atos da sua vida civil.

Ora se não é o mesmo caso dos deficientes, sob um prisma diferente, mas ainda sim, o mesmo critério. Em suma, se um menor de dezesseis anos não possui discernimento suficiente para sequer manifestar relativamente sua capacidade, ele está na mesma situação de uma pessoa com certo grau de deficiencia mental.

Na verdade, não é a deficiencia mental em si mesma que constitui a incapacidade civil, nisso o estatuto da pessoa com deficiência acerta com muita pertinência, porém, é a deficiência de discernimento que se constitui no fato gerador do comprometimento do uso e gozo da capacidade civil plena.

6. CONCLUSÃO

Portanto, conclui - se que a incapacidade civil não é uma exclusividade das pessoas menores de dezesseis anos, como também, ao menos na prática da vida real, inerente à pessoa com deficiência, em determinadas faixas de limitação cognitiva, de igual forma.

Se faz salutar reiterar que a contribuição a que esse trabalho intenta gerar, se dá no âmbito do entendimento a respeito do raciocínio jurídico utilizado pelo construtor da norma, e o respectivo alinhamento desse raciocínio com a ordem jurídica vigente e com sua matiz diretiva. Em outras palavras, visa - se a compreensão dos fenômenos que determinam a caracterização de uma norma jurídica, assim como quais serão seus efeitos na prática da vida cotidiana, nesse caso em específico, os impactos, positivos e negativos, gerados pelas normas em estudo ao bem estar e a representação da pessoa com deficiência. Bem como o entendimento a respeito dos fundamentos pelos quais se construiu toda a norma, por fim quais princípios a ela foram determinantes para a sua elaboração.

Foi possível verificar que ao longo de todo o processo de criação e desenvolvimento do micro sistema de proteção às garantias individuais da pessoa com deficiência, houve uma forte influência de uma visão de mundo que tem por base as garantias de direitos e o progresso em relação à topografia representativa dessa minoria, que desde a criação do nosso estado nação se encontrava em estado de lacunosidade.

Vimos ao longo do trabalho, que em virtude do longo histórico de lacunas legais com o condão de representar os direitos da pessoa com deficiência,resultou em uma carência normativa significante, e alinhando - se a essa conjuntura com os princípios emanados pela constituição, culminou com uma força motriz legiferante capaz de realizar transformações materiais relevantes e de grande impacto. Transformações essas que de tanto efetivarem um avanço material e promoverem um substancial aumento nas circunstâncias representativas da pessoa com deficiência, promoveu por consequência, a criação de alguns pontos correlatos que por ventura vieram a efetivar um resultado não reflexo com os ditames constitucionais, realizando assim, algumas mudanças que não trouxeram uma efetiva melhoria representativa, funcionando como efeitos colaterais de impacto negativo comparados às conquistas implementadas pelos avanços conquistados.

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