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A questão da maconha

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Agenda 21/07/2022 às 09:50

Apesar de a ANVISA, em 2019, ter aprovado o ingresso de medicamentos derivados da cannabis para uso medicinal no mercado brasileiro, a decisão favorece apenas o mercado farmacêutico e pacientes de maior poder aquisitivo.

Histórico

Pela primeira vez desde o início da pandemia de covid-19, a marcha da maconha volta às ruas do Brasil. Reivindicando a legalização não só da cannabis, mas também de outras drogas, pessoas de todas as idades vão às ruas, pelos mais variados motivos, defender suas posições em relação ao proibicionismo vigente.

No Brasil o debate sobre legalização é contaminado por aspectos morais e religiosos, além de uma herança preconceituosa em relação ao consumo de drogas, principalmente no que toca o histórico brasileiro com a maconha.

Muito antes de se falar em guerra às drogas, pelo menos até a década de 1930, no Brasil se vendia tranquilamente maconha em herbários, na então capital da República. Embora sua venda ocorresse normalmente em meados de 1930, é necessário retrocedermos mais 100 anos para compreendermos um pouco do contexto brasileiro em relação à cannabis sativa.

Poderíamos retomar a história de um ponto muito anterior, mas vamos voltar apenas ao histórico brasileiro e contextos mundiais mais recentes, que refletiram diretamente por aqui, visto que se formos contar toda a história da maconha no mundo seria necessário um livro inteiro, e não apenas essa pequena contribuição para um mínimo de esclarecimento sobre o assunto. Assim, de forma resumida em relação ao resto da história no mundo, deixo o seguinte parágrafo:

O primeiro registro histórico da cannabis para fins medicinais aconteceu por volta de 2.700 a.C., no livro chinês Pen Tsao. No Egito antigo, ela era usada para fabricação de papiros. Nos primórdios da civilização romana, sua aplicação era principalmente para velas de barcos e vestuários. Na Índia, a utilização da planta está descrita no livro sagrado Atharvaveda. Na obra, além do uso medicinal, a cannabis é considerada um presente de Shiva para a humanidade. (The Green Hub, 2020)

Voltando ao contexto brasileiro, sabe-se que a maconha possivelmente chegou ao Brasil através do tráfico de pessoas escravizadas trazidas da África. Inicialmente, o consumo da erva era tradicionalmente ligado a costumes desses povos. Os escravos africanos traziam-na escondida na barra dos vestidos e das tangas, para que fossem usadas em rituais de Candomblé. Outra possibilidade é que fora trazida por marinheiros portugueses que adquiriam o hábito de fumar a planta durante viagens à Índia.[1]

Ainda assim, durante parte do tempo, a coroa portuguesa incentivou o uso da planta, enxergando no cânhamo seu potencial comercial. No século XIX, a maconha era recomendada por médicos para o tratamento de bronquite, insônia e asma.[2]

A planta começou a se popularizar, principalmente, entre povos indígenas e negros, e, nesse contexto, é que a primeira norma penalizando usuários aparece. O parágrafo 7º, do Código de Posturas de 1830, da então capital do Império, a cidade do Rio de Janeiro, trazia a seguinte redação:

É proibida a venda e o uso do Pito do Pango, bem como a conservação dele em casas públicas: os contraventores serão multados, a saber, o vendedor em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dele usarem, em três dias de cadeia. (MOURA, 2021)

O interessante dessa norma é o quão revelador pode ser quando analisamos as penalidades infligidas às pessoas ligadas a planta. O vendedor, de que trata a lei, não é o traficante comum dos dias de hoje, o pobre, preto, periférico, trata-se do Botânico, o branco, dono de estabelecimento que comercializava a erva.

Note que o escravizado e o usuário sofreram já no início uma maior criminalização, mas não em virtude da gravidade de seu ato, o de consumir droga. A reprovação liga-se à fatores alheios a conduta criminosa, que podemos considerar uma espécie de autolesão. A raça, cor e as condições sociais foram determinantes para uma maior reprovação do ato do usuário do que a conduta do traficante original, já que de um lado o vendedor paga apenas multa, e de outro, os usuários têm sua liberdade restringida. Danila Moura observa que:

Criada em um momento de instabilidade política com a vinda da corte portuguesa ao país, aumento do tráfico escravagista e de revoltas da população escravizada, a norma de proibição da maconha estava inserida em um contexto de controle social perante os meios de trabalho e o raro lazer da classe oprimida. (MOURA, 2021)

O código de posturas, considerado por alguns a primeira norma no mundo criminalizando o uso da maconha[3], nos aponta apenas o início do caminho que seguimos até o que hoje é considerada a política de drogas no Brasil, mas como já mencionamos, até a década de 1930 era comum encontrar herbanários do Pito do Pango.

A grande reviravolta no proibicionismo mundial, como aponta Valois, começou com a proibição do álcool nos EUA[4], afetando posteriormente a política de drogas no mundo todo, incluindo o Brasil.

Sobre a eficácia da proibição do álcool nos EUA, impõe-se considerar que, sabe-se hoje, a proibição deu origem não só a uma nova espécie de crime organizado, do qual surgiu uma das figuras mais notáveis e folclóricas, o gangster Al Capone, como também alterou os costumes com relação ao consumo das bebidas. Se antes nos EUA a cerveja era a bebida alcoólica mais consumida, com a proibição, a preferência de consumo migrou para bebidas mais pesadas. Sobre isso Valois comenta:

O tráfico ilegal sempre procurará concentrar a droga, tornando-a mais forte e aumentando a sua potencialidade de dano, porque a proibição e a repressão fazem com que o comerciante ilegal tenha que transportar a droga clandestinamente e, por isso, em embalagens menores. E foi assim que o consumo de cerveja diminuiu e o consumo de whisky aumentou durante a proibição, pois este é compacto e fácil de esconder (VALOIS, 2021, p. 107)

Um dos grandes nomes por trás do combate ao tráfico de bebidas alcoólicas nos EUA, e que viria a surgir contra as demais drogas futuramente, é Harry Anslinger. Parte da motivação para que a lei seca viesse a existir nos EUA na década de 20 vinha de um imaginário religioso radical, além de intolerância racial e religiosa[5]. E, foi trabalhando dentro desse contexto, que Anslinger desenvolve uma cruzada pessoal. Como explica Valois (2021), Anslinger era defensor ferrenho da ideia de que a questão do uso de drogas deveria ser resolvida atacando-se a oferta e não a demanda.

O argumento moral por traz da proibição do álcool só foi vencido com uma grande necessidade de arrecadação por parte do Estado, que, após a crise de 29, precisava elevar de alguma maneira o saldo dos cofres públicos. Diante da conveniência, o discurso econômico se tornou mais importante que o moral, e a proibição do álcool, portanto, caiu.

Mas a cruzada pessoal de Anslinger seria direcionada à outras drogas a partir de então. Como líder do Departamento Federal de Narcóticos - FBN, ele exerceu papel fundamental na proibição da maconha nos EUA. Embora as justificativas para a inclusão da cannabis como droga perigosa permeassem novamente aspectos morais, é importante considerar a ligação de Aslinger com setores interessados economicamente na criminalização da planta. Como aponta o portal The Green Hub:

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Anslinger era casado com a sobrinha de Andrew W. Mellon, dono da gigante petrolífera Gulf Oil e um dos principais investidores da igualmente gigante DuPont. Nos anos 1920, a empresa estava desenvolvendo vários produtos a partir do petróleo: aditivos para combustíveis, plásticos, fibras sintéticas como o náilon e processos químicos para a fabricação de papel feito de madeira. Esses produtos tinham uma coisa em comum: disputavam mercado com o cânhamo. (The Green Hub, 2020)

Nos EUA o elemento de discriminação racial com relação a cannabis ligava-se a população de origem mexicana. O chefe da FBN se aproveitou desse elemento para tornar a droga ilegal através da Divisão de Controle Estrangeiro, do Comitê de Proibição. Anslinger assumiria protagonismo mundial na Guerra às Drogas, e o reflexo da política dos EUA no começo dos anos 30 refletiu por aqui.

Embora no Brasil já houvesse um histórico em relação a repressão do uso de cannabis, a partir de 1930, 100 anos após a Lei do Pito do Pango, influenciado pela política de drogas aplicada nos EUA, começamos a reprimir o uso e associar a planta ao preconceito racial mais fortemente. Pela primeira vez no Brasil, em 1938, a droga é proibida nacionalmente através da Lei de Fiscalização de Entorpecentes, da ditadura Vargas.

Daí em diante o que vimos na história da Guerra às Drogas é uma sucessão de erros que a tornam uma cruzada eterna e sem solução. Da década de 60 em diante houve um endurecimento ainda maior, e uma busca incansável por narcotraficantes, colocando a questão das drogas no centro do debate sobre a segurança pública. Tal qual ocorreu com a Lei Seca, novas modalidades de crime organizado passaram a surgir, e, em um sistema cíclico e retroalimentado, o Estado passou a exercer mais força. De um lado o Estado aumenta seu aparato de repressão, de outro o crime se reorganiza a fim de manter o poder e de satisfazer a demanda por narcóticos.

Atualidade

A necessidade de descriminalização ou legalização da maconha hoje no Brasil é um debate travado, embora não se restrinja mais ao uso recreativo da droga, abordando também o uso medicinal, mas ainda assim encontra uma forte barreira moral a ser vencida.

Por si, a falta de regulamentação do uso medicinal da cannabis não encontra lógica alguma, vez que é de interesse público, de fácil acesso e cultivo. Apesar de a Agencia Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, em 2019, ter aprovado o ingresso de medicamentos derivados da cannabis para uso medicinal no mercado brasileiro[6], a decisão da agência favorece apenas o mercado farmacêutico e pacientes de maior poder aquisitivo, quando de fato qualquer pessoa poderia estar plantando e produzindo seus remédios livremente dentro de suas casas.

Sempre que o debate vem à tona no Congresso, o processo de regulamentação passa por ataques de setores conservadores baseados em discurso moral, induzindo a opinião pública ao pânico. Enquanto o debate não avança, famílias que necessitam dos medicamentos, quando os encontram disponíveis para venda, não dispõem de condições para pagar o valor exigido e têm recorrido aos tribunais[7] para garantir o direito de plantar e produzir em seus lares.

Houvesse regulamentação vigente, doenças graves como Epilepsia, Câncer, Parkinson e Esclerose Múltipla poderiam ser tratadas com remédios à base da planta produzidos artesanalmente. Trata-se aqui de direitos constitucionais garantidos no caput dos artigos 5° e 6°, da Constituição Federal. O Estado ao se omitir fere diretamente o direito a saúde dessas pessoas, e o próprio direito a vida.

Embora os tribunais estaduais venham reiteradamente decidindo a favor do direito ao cultivo medicinal, o Superior Tribunal de Justiça - STJ, quando do julgamento do Habeas Corpus nº 123.402 - RS, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, negou provimento ao pedido do autor para que pudesse importar sementes para cultivar a planta a fim de extrair o óleo para tratamento de quadro grave de Epilepsia Refratária, Hiperecplexia e Síndrome de Ehler Danos (SED), visto que já havia tido êxito na Anvisa em obter autorização para importação do remédio, mas o procedimento apresentava-se demorado e muito oneroso, essa decisão fez outros tribunais mudarem seus posicionamentos[8].

O tema ainda não encontrou uniformidade de decisões, mais recentemente, a Sexta Turma do STJ, votou de forma unânime por conceder salvo conduto para o plantio e produção do óleo da cannabis para fins medicinais no julgamento de dois pedidos que correm em segredo de justiça. O relator, Ministro Rogério Schietti, durante o julgamento destacou ainda o dever do Estado em amparar essas pessoas, que, na busca pelo direito a saúde, correm o risco de serem enquadrados em condutas criminosas, reiterando ainda que o papel de proteção não deve se restringir ao Executivo, mas também ao Judiciário e ao Legislativo.[9]

O Ministro Sebastião Reis Junior acrescentou ainda que o tratamento atual dispensado a pacientes que necessitam de medicamentos derivados da planta cria uma segregação entre os doentes que podem custeá-lo, importando os medicamentos à base de canabidiol, e os que não podem[10]. A decisão é recente e positiva, mas apenas o tempo irá dizer como refletirá nos demais tribunais.

Outra faceta da questão canábica no Brasil é o usuário, embora tenha ocorrido a despenalização da conduta, podemos dizer que ela se encontra plenamente criminalizada e prevista no artigo 28, da Lei nº 11.343/06 Lei de Drogas. O grande problema do mencionado artigo é a sua semelhança com o crime de tráfico, previsto no artigo 33 da mesma lei, visto que na lista de condutas previstas em ambos podemos encontrar adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trouxer consigo, e o que diferencia a conduta do traficante para o usuário é que, no artigo 28, após a descrição das condutas aparece a seguinte sentença: para consumo pessoal.

Uma frase de elevado caráter subjetivo decide se a pessoa flagrada adquirindo, guardando, trazendo consigo etc., terá uma pena de 5 a 15 anos e multa, ou sofrerá simples advertência, prestação de serviços ou medida educativa. O legislador, ao redigir a lei, tentou especificar de alguma forma quesitos que pudessem ser usados para diferenciar entre um e outro, observamos essa tentativa no §2º do art. 28, da Lei de Drogas.

A tentativa do legislador, no entanto, não reduziu o grau de subjetividade estampado no caput do artigo, na realidade, o que observamos após 16 anos de vigência da lei é que ela contribuiu para que passássemos a ter uma das maiores populações carcerárias do planeta. O aumento exponencial da massa carcerária se deve a confusão que se faz ao determinar a diferença entre o traficante e o usuário. A lei estabeleceu como critério que o juiz analisará à natureza e à quantidade da substância apreendida, o local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e os antecedentes do agente.

Ao aprovar essa lei, com histórico do tratamento dispensado às drogas no Brasil e no mundo, sempre direcionando a repressão estatal a alvos determinados, mencionar que deva ser observada as condições sociais e pessoais, e o local em que se desenvolveram os fatos, na prática coloca-se a mira voltada à uma parcela da sociedade já desfavorecida e excluída, alvo de preconceitos, no caso, o cliente preferencial do sistema penal: o preto, pobre e periférico.

Não são raros casos em que a apreensão de quantidades ínfimas de qualquer tipo de droga enseja uma condenação por tráfico, e a problemática disso é que estamos enviando pessoas usuárias, que, na pior das hipóteses, necessitam apenas de tratamento médico, para prisão em contato com criminosos perigosos, com a possibilidade de serem aliciados dentro dos próprios presídios por organizações criminosas, para retornarem à sociedade como seus soldados.

Neste caso, a legalização da maconha para uso recreativo não só reduziria as fileiras do crime organizado em geral, como também enfraqueceria o narcotráfico. No entanto, o que ocorre na relação simbiótica entre Estado e Crime Organizado encaixa-se perfeitamente no modelo proposto por Stanley Cohen para os Pânicos Morais:

Uma condição, um episódio, uma pessoa ou um grupo de pessoas aparece e é definido como uma ameaça aos valores e interesses da sociedade; nos meios de comunicação de massa sua natureza é apresentada de forma estilizada e estereotipada; editores, bispos, políticos e outros formadores de opinião se encarregam de erguer barricadas morais; são consultados especialistas reconhecidos que emitem seus diagnósticos e soluções; formas de lidar com a situação são elaboradas ou (mais frequentemente) utilizadas; então a condição inicial desaparece, diminui ou deteriora-se e torna-se mais visível. Às vezes, o objeto do pânico é bastante novo, e outras vezes, já existe há muito tempo, mas de repente aparece no centro das atenções. Às vezes o pânico passa e cai no esquecimento, exceto na memória popular e coletiva; outros, tem repercussões mais graves e duradouras, podendo levar a mudanças nas políticas legais e sociais ou mesmo na forma como a sociedade se concebe. (COHEN, 2017) (tradução nossa)

Diante dessa constatação, a forma mais adequada de analisar a situação de descriminalização ou legalização da cannabis no Brasil é procurar afastar os elementos geradores de pânico para obter clareza sobre o potencial de ameaça da droga para a sociedade.

A primeira justificativa que se encontrará em qualquer livro de direito penal que verse sobre o tema, é que a Saúde Pública é o bem jurídico protegido pelos crimes relacionados na Lei de Drogas. Se esse é o fato, existem diversas compilações de dados interessantes a serem observados, dos quais apresento alguns:

A partir de uma simples pesquisa no Google, é possível constatar que, se tratando de Saúde Pública, a maconha está longe de configurar o nosso maior problema, e talvez sua legalização possa ser uma solução para arrecadação aos cofres públicos, tal qual ocorreu nos EUA com o fim da Lei Seca.

Os dados apontam que o nosso maior inimigo quando se trata de drogas é, na verdade, o consumo de bebida alcoólica, uma droga legalizada, regulamentada e que tem cadeia produtiva em grande escala e variedade em nosso país. Mesmo quando se trata da relação entre drogas e violência, na maioria dos casos reportados o álcool estará presente.

Isso não quer dizer que devemos restringir, e criminalizar o uso e a venda da substância, um mínimo argumento nesse sentido causaria com toda certeza uma comoção nacional. Observamos, portando, que se nos atentarmos aos dados e compararmos a droga legalizada com a ilegal, pouco sobra para se justificar a criminalização de uma planta vez que, como citado anteriormente, o próprio crime organizado se beneficia da proibição.

Para além de uma pesquisa superficial que qualquer pessoa pode fazer no Google para se inteirar do assunto, um nome que tem se destacado ao longo dos anos no combate à desinformação relacionado ao consumo de drogas em geral é o neurocientista, professor da Universidade de Columbia, Nova Iorque - EUA, Carl Hart.

O cientista defende que as drogas em si não são a causa da violência urbana, mas apenas um bode expiatório de governos que não investem em políticas sociais, de geração de bem estar e redução de desigualdade[16]. Dedicando sua vida a pesquisa dos efeitos do consumo de drogas, ele conclui ainda que é perfeitamente possível o consumo saudável de drogas, e, por último, ele aponta que nos EUA, onde a cannabis agora está legalmente disponível para uso adulto, a maioria dos usuários consome a droga de maneira segura e não problemática. Esse é o caso de todas as drogas mais procuradas[17].

Diante de todo esse contexto, temos ainda a questão jurídica do usuário. A principal delas, no que se refere ao artigo 28 da Lei de Drogas, é que o Direito Penal não pune, ou não deveria punir, a autolesão. Baseado no Princípio da Alteridade, nossa legislação deveria se resguardar de punir condutas imorais, amorais, pecaminosas e que não lesionem bens jurídicos de terceiros.

No Brasil de 2022, onde tanto se invoca o direito à liberdade, muita das vezes sem o menor sentido, nada se fala da liberdade de inclusive se auto prejudicar. Desde que a conduta do indivíduo não interfira em bem jurídicos de terceiros, o Estado não deveria tutelar o comportamento do cidadão na sua vida privada, no máximo, investir em informação e educação sobre os efeitos nocivos da droga tal qual se faz com o tabaco.

Por fim, apesar de existirem outros projetos, a situação jurídica que se encontra a questão da cannabis atualmente pode ser resumida em 2 pontos: o julgamento do RE 635.659SP, rel. Min Gilmar Mendes e o PL nº 7270/2014 de autoria de Jean Wyllys. Estes, ao meu ver, podem proporcionar uma virada de página na situação brasileira em relação a droga.

O RE 635.659 trata sobre a constitucionalidade do artigo 28 da lei de drogas, vez que como mencionamos anteriormente trata-se de uma violação a intimidade da vida privada estabelecida no artigo 5º inciso X da Constituição Federal. Tal julgamento encontra-se carente de decisão a pelo menos 10 anos, sempre encontrando entraves em barricadas morais que acabam por influenciar a decisão de colocá-lo em pauta.

A influência das barricadas morais ganhou mais força no Supremo Tribunal Federal - STF com a chegada da TV Justiça, o que hoje gera críticas da comunidade jurídica como, por exemplo, em relação ao tamanho dos votos dos ministros em comparação com a época em que a emissora inexistia. É o que comenta o advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho:

Um ministro ou ministra do STF é, assim como nós, um ser humano normal: uma pessoa que comete erros, acertos, tem falhas, virtudes, medos, vaidades, insegurança. Com toda essa gama de peculiaridades individuais, um membro da mais alta corte de justiça do Brasil também se deixa levar e influenciar por sentimentos comezinhos sentimentos que afetam todos nós. Pra você ter uma ideia, faz diferença para um ministro ou ministra do STF ser aplaudido ou vaiado na pizzaria aos domingos. (BOTELHO, 2021, p.15)

Embora a função elementar do juiz, e, portanto, de um ministro do STF, seja decidir conforme preconiza a lei e as teorias do direto, e não conforme os anseios da população ou de determinada parte dela, o resultado dos empreendimentos morais exercendo pressão sobre decisões judiciais tem sido cada vez mais eficazes. Como menciona Becker, as pessoas a frente das cruzadas morais geralmente acreditam tipicamente que sua missão é sagrada[18], essas pessoas pouco se importam com a laicidade do Estado, senão com sua própria missão messiânica.

Cruzados morais conseguem mobilizar a opinião pública com o auxílio da Mídia, e essa pressão é que pode, por exemplo, influenciar as pautas a serem discutidas nos tribunais, bem como referendar a ação letal da polícia no contexto da Guerra as Drogas. Desvincular os tribunais desse tipo de exposição é essencial para uma justiça eficaz e imparcial, e hoje observamos que é muito provável que o julgamento do RE 635.659 esteja aguardando um momento mais favorável, para evitar a indisposição dos ministros em relação a população.

Outra possibilidade de solução é via Congresso, nesse caso temos o Projeto de Lei nº 7270/2014, de autoria de Jean Wyllys, que trata tanto da legalização a nível industrial, quanto define a produção caseira para consumo próprio recreativo ou medicinal. Apesar de promissor, o projeto não avança desde o ano de sua propositura, e mais uma vez o que corrobora a morosidade é o elemento moral presente nas bancadas do Congresso.

É justo que diversas parcelas da sociedade tenham sua representação no Congresso, e, portanto, a divisão das bancadas será naturalmente por afinidade de valores defendidos pelos representantes do povo. Mas para além disso, o discurso moral tem dominado a maior parte das bancadas, e como reflexo, pautas progressistas têm sido sistematicamente barradas, até mesmo no caso de projetos promissores em que teríamos uma situação de ganha-ganha, como no caso do projeto supramencionado, que fomentaria a economia nacional dos produtos derivados, impactaria na segurança, saúde e mesmo no lazer da população regulamentando o plantio doméstico.

A população se vê apegada ao discurso apresentado pela parte que mais se aproxima das suas crenças pessoais, esquecendo-se do bem estar comum, esquecendo-se também que seus valores necessariamente não são os mesmos valores de outros cidadãos. A simples contaminação do assunto impede que possamos debater a questão de maneira adequada e desapaixonada, o que favorece inclusive os criminosos.

A reflexão que resta é a seguinte: a quem beneficia a ilegalidade de uma droga cuja regulamentação, de diversos modos, poderia trazer tantos benefícios para a sociedade em geral, senão aquele que vive em lucrar com ilegalidade?

Sobre o autor
Renan Mariano da Silva

Estudante de Direito Pela Universidade Cruzeiro do Sul Estagiário da Defensoria Pública do Estado de São Paulo - Execução Criminal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Renan Mariano. A questão da maconha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6959, 21 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98693. Acesso em: 21 nov. 2024.

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