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O PODER-DEVER DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA

O presente artigo científico tem como escopo a análise teórica do papel do Delegado de Polícia dentro do contexto introduzido pela Constituição Federal de 1988, demonstrando que ele possui o poder-dever de aplicar o princípio da insignificância.

O PODER-DEVER DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA

THE POLICE OFFICER'S DUTY TO APPLY THE PRINCIPLE OF INSIGNIFICANCE

 

                                                                                                            Rafael Henrique Ayres Venâncio [1]

                                                                                                                             Tarsis Barreto Oliveira[2]

 

RESUMO

O presente artigo científico tem como escopo a análise teórica do papel do delegado de polícia dentro do contexto introduzido pela Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, a partir de análise do ordenamento jurídico pátrio, aliada a pesquisa bibliográfica de doutrinadores constitucionalistas, processualistas penais e penalistas, o trabalho demonstra como a Constituição cidadã atribuiu ao delegado de polícia um papel de relevância no âmbito da primeira fase da persecutio criminis, devendo atuar como verdadeiro garantidor dos direitos individuais dos cidadãos. Ainda mais, são analisados os importantes avanços trazidos pela Lei 12.830/2013, que, a partir de uma interpretação constitucional, concedeu importantes substratos legais para a atuação constitucional da autoridade policial, de forma a desempenhar o papel de primeiro garantidor da legalidade, justiça e direitos individuais. A partir desses fundamentos, o presente artigo, mediante o modelo de revisão bibliográfica, demonstra que o delegado de polícia possui o poder-dever de aplicar o princípio da insignificância na seara extrajudicial.

Palavras-chaves: Delegado; princípio da insignificância; dever; poder.

ABSTRACT

The scope of this scientific article is a theoretical analysis of the role of the police chief within the context introduced by the Federal Constitution of 1988. In this sense, from the analysis of the Brazilian legal system, together with the bibliographical research of constitutional, criminal procedure and penal doctrinaires, the work demonstrates how the citizen Constitution assigned to the police officer a relevant role in the first phase of the persecutio criminis, acting as a true guarantor of individual rights of citizens. Furthermore, the important advances brought by Law 12.830/2013 are analyzed, which, from a constitutional interpretation, granted important legal substrates for the constitutional performance of the police authority, in order to play the role of first guarantor of legality, justice and individual rights. Based on these foundations, this article, through a literature review model, demonstrates that the police chief has the power and duty to apply the principle of insignificance in the extrajudicial sphere.

Keywords: Police chief; principle of insignificance; duty; power.

 

  1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo analisar o poder-dever do Delegado de Polícia em aplicar o princípio da insignificância de forma direta, em conformidade com o ordenamento jurídico-processual penal e em compasso com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no que concerne, especialmente, ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Primeiramente, teceremos considerações acerca do caráter subsidiário, fragmentário e garantista no qual se reveste o Direito Penal brasileiro em compasso com a Constituição Cidadã. Essa traz em seu bojo direitos de primeira geração, ou seja, direitos negativos do Estado para com o cidadão, sendo o Delegado de Polícia o primeiro garantidor das garantias constitucionais, da legalidade e da justiça.

Ainda, serão abordadas, de forma detalhada, as prerrogativas técnico-jurídicas das quais o cargo da Autoridade Policial se reveste, especialmente após a edição da Lei 12.830/2013, que fulminou a corrente minoritária que divergia da natureza jurídica do cargo de Delegado de Polícia.

Por conseguinte, será exposto como os tribunais superiores e a doutrina moderna de polícia judiciária vêm interpretando o poder-dever de aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia.

Por fim, será demonstrado que urge de todo o ordenamento jurídico pátrio não apenas o poder, mas o dever do Delegado de Polícia, ao se deparar com um fato formalmente típico, porém materialmente atípico, aplicar, de pronto, o princípio da insignificância ainda em sede extrajudicial. Será evidenciado que entendimento contrário a este é inconstitucional, haja vista a violação de inúmeros princípios caros à Constituição Federal (CF), como o princípio da razoabilidade, da não culpabilidade, constituindo ainda lesão ao direito fundamental à liberdade.

Dentro deste contexto, este trabalho propõe contribuição na área da doutrina de polícia judiciária que abarca o Direito Constitucional, Penal e Processual Penal, de forma a trazer pontos de vista que demonstram que quando o fato é atípico para a autoridade judiciária, também o será para o Delegado de Polícia.

 

2 O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

2.1 Conceito e natureza jurídica

De acordo com Bitencourt (2012, p. 108), o princípio da insignificância foi cunhado pela primeira vez por Claus Roxin em 1964. Contudo, surgiu inicialmente no Direito Romano, limitando-se ao direito privado, invocando o brocado de minimus non curat praetor, ou seja, os juízes não devem se ocupar de assuntos irrelevantes (MASSON, 2017, p. 27).

O princípio da insignificância ou bagatela sustenta a não atuação penal do Estado quando a conduta não for capaz de lesar, ou, no mínimo, colocar em perigo o bem jurídico tutelado pela norma penal (MASSON, 2017, p. 27). Ainda mais, esse princípio surge a partir da evolução e da demanda criada pelo moderno Estado Democrático de Direito, onde se defendia a intervenção mínima do direito penal que legitima a atuação do ius puniendi do Estado.

Desta forma, percebe-se o papel mitigador dos efeitos deletérios da desatualização do Código Penal, há muito criticada pela doutrina. Diante desta realidade, de forma a respeitar e seguir os anseios da doutrina da intervenção mínima, contornando a visão paternalista e hipertrofiada do direito penal no Brasil, a doutrina apontou para a retirada do manto da tutela estatal sobre as condutas consideradas insignificantes (NUCCI, 2015, p. 218).

Conforme ensina Nucci (2015, p. 193), o princípio da insignificância é o reconhecimento da inexistência de infração penal, quando detectada a insignificância da ofensa ao bem jurídico tutelado. Nesse sentido, tem-se que insignificante representa algo de valor desprezível ou algo sem nenhum valor. Para Bitencourt (2012, p. 109), o referido princípio demanda a análise da proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Sendo assim, o crime de bagatela abrange condutas que se amoldam formalmente ao tipo penal, porém não possuem nenhuma relevância material, por não ofenderem significativamente o bem jurídico tutelado, afastando-se o crime.

Para Greco (2022, p. 130), o princípio da insignificância busca auxiliar os operadores do Direito na árdua tarefa da subsunção típica de condutas irrelevantes e que, por esta característica, não merecem a sanção da última e mais violenta arma que possui o Estado.

Segundo o mesmo autor, essa subsunção realizada tem como substrato uma interpretação teleológica do direito penal, isso porque ele possui natureza eminentemente subsidiária, só devendo atuar quando não exista nenhuma alternativa, ou quando seja extremamente necessário.

Em lição sobre o tema, Busato (2020, p. 48) exemplifica e diferencia determinadas condutas que agridem, sobejamente, determinado bem jurídico, e outras que não merecem a aplicação do direito penal, dado o caráter subsidiário e fragmentário deste. Vejamos:

 

Assim, o que deve ser tomado em consideração é precisamente o valor do bem jurídico atingido para o desenvolvimento da vítima no contexto social.

A primeira coisa a ser observada é se o bem jurídico em questão inscreve-se entre aqueles cuja proteção é fundamental para o desenvolvimento social do indivíduo, como por exemplo, a vida, o patrimônio ou a liberdade sexual. Não seriam fundamentais, e nem suscetíveis de incriminação, por exemplo, as ofensas ao senso estético ou a dissensão de opinião.

A existência de uma ofensa a um bem jurídico fundamental, porém, não basta. Entra aqui o segundo requisito: esse bem jurídico fundamental deve ter sofrido um ataque grave o suficiente, ou seja, intolerável. Por exemplo, o patrimônio que é bem jurídico fundamental pode ser atacado tanto por um roubo quanto pelo inadimplemento de um contrato de aluguel. A diferença é que no primeiro, o ataque é abrupto e violento, não podendo ser suportado por outras instâncias de controle social, jurídico ou não. Ao contrário, no segundo, um contrato e as regras de direito civil são capazes de dar resposta satisfatória ao locador.

Portanto, é nesse sentido que o princípio bagatelar funciona: como um grande auxiliador dos operadores do Direito, de modo a facilitar e otimizar a escorreita aplicação constitucional do Direito Penal como ultima ratio (TOLEDO, 2012, p. 133).

Com o fito de explicar o princípio da insignificância, Bruno (1978, p. 56) faz um paralelo entre o quase crime ou crime impossível e o crime insignificante. De acordo com o doutrinador, as duas hipóteses tratam de condutas carentes de tipo. Destarte, o crime impossível, bem como o crime de bagatela, não são crimes, justamente por não ofenderem ou não terem a capacidade de ofender os bens jurídicos tutelados.

Destarte, a partir da aplicação do princípio da intervenção mínima, o Direito Penal deve ser utilizado como verdadeiro soldado de reserva, sendo subsidiário (ultima ratio). Não deve, portanto, cuidar de ofensas mínimas aos bens jurídicos tutelados, deixando tais ofensas aos demais domínios do Direito.

Portanto, para se considerar determinada conduta como criminosa, não basta que esta possua correspondência típica formal em lei penal. Será necessário, ainda, que seja causadora de relevante lesão, ou perigo de lesão, ao bem jurídico protegido. Somente assim referida conduta será considerada como criminosa, materialmente. Assim sendo, caso determinada conduta seja materialmente atípica, estaremos diante de hipótese em que deverá ser aplicado o princípio da insignificância.

Nas palavras de Bitencourt (2012, p. 109):

A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio de bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado.

Sendo assim, o crime bagatelar é uma conduta tipicamente formal, pois se amolda perfeitamente ao tipo objetivado pelo legislador. Entretanto, tal conduta não possui efetivamente a capacidade de ofender o bem jurídico tutelado, de forma a afastar a tipicidade material do delito e, por consequência, o crime.

2.1.1 Lesão insignificante ao bem jurídico.

Sabe-se que, ao menos no Brasil, não existe legislação que dispõe sobre o princípio da insignificância, de forma que tal princípio bebe de fontes majoritariamente doutrinárias, sendo acolhido pela jurisprudência. Desta forma, a doutrina tem papel fundamental na delimitação e na evolução da aplicação prática referente ao tema.

Assim, os pensadores do Direito voltaram-se ao debate para, ao menos, tentar definir como seria aplicado o princípio da insignificância, seus requisitos e as formas de valorar os bens jurídicos.

De acordo com Nucci (2022, p. 162), é necessário cumprir três regras para a aplicação do princípio da insignificância.

A primeira é a consideração do valor do bem jurídico em termos concretos significando que o valor do bem jurídico deve ser avaliado sob o ponto de vista do agressor, da vítima e da sociedade.

Sendo assim, há determinados bens jurídicos que possuem valor ínfimo sob qualquer ponto de vista, como, por exemplo, um clipe subtraído de uma folha de papel. De outra banda, quando estamos diante de uma louça furtada de uma pessoa hipossuficiente, por óbvio que o bem possui relevante valor para o ofendido, embora desprezível para o agressor, de modo a impedir a aplicação do princípio da insignificância.

Ainda conforme o autor, a segunda regra trata-se da consideração da lesão ao bem jurídico em visão global, desta forma:

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A avaliação do bem necessita ser realizada em visão panorâmica e não concentrada, afinal, não pode haver excessiva quantidade de um produto, unitariamente considerado insignificante, pois o total da subtração é capaz de atingir valor elevado (ex.: subtrair de um supermercado várias mercadorias, em diversas ocasiões, pode figurar um crime de bagatela numa ótica individualizada da conduta, porém, visualizando-se o total dos bens, atinge-se valor relevante).

Além disso, deve-se considerar a pessoa do autor, pois o princípio da insignificância não pode representar um incentivo ao crime, nem tampouco constituir uma autêntica imunidade ao criminoso habitual. O réu reincidente, com vários antecedentes, mormente se forem considerados específicos, não pode receber o benefício da atipicidade por bagatela. Seria contraproducente e dissociado do fundamento da pena, que é a ressocialização do agente. A reiteração delituosa, especialmente dolosa, não pode contar com o beneplácito estatal (NUCCI, 2022, p. 162).

A terceira e última regra é a consideração particular aos bens jurídicos imateriais de expressivo valor social. O referido autor reservou a esta regra o tratamento dos bens jurídicos espiritualizados. Apesar da crítica existente em determinada parcela da doutrina, neste ponto o enfoque é de conceder especial destaque a estes bens jurídicos.

Desta forma, os bens jurídicos transindividuais, como a moralidade administrativa e o meio ambiente, não permitem a aplicação do princípio da insignificância. Assim, o valor percebido pelo policial, ou por qualquer agente público, para atuar de forma a se desvirtuar do cumprimento íntegro de seu dever de ofício, não será relevante no caso em concreto, bem como não dará ensejo à aplicação do princípio da insignificância.

2.2 Requisitos exigidos pela Suprema Corte para sua aplicação

O Supremo Tribunal Federal (STF) já pacificou o entendimento sobre a possibilidade de aplicação do referido princípio nos delitos patrimoniais cometidos sem violência. Para tanto, o Pretório Excelso definiu a necessidade da presença, no caso concreto, de quatro vetores de aplicação, para permitir a exclusão da tipicidade material da conduta.

Nesse sentido, os vetores definidos são: a mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Vejamos alguns exemplos da aplicação pelos Tribunais Superiores:

O princípio da insignificância que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. [...] Tal postulado que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. (HC n. 84.412-0/SP, STF, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 19/11/2004.) No tocante à inexpressividade da lesão jurídica provocada, esta Corte Superior firmou o entendimento segundo o qual, para fins de incidência do princípio da bagatela, o valor que se atribui, mediante avaliação, à coisa furtada não pode ser superior a 10% do valor correspondente ao salário mínimo vigente à época do fato apresentado como delituoso (STJ, HC 421.330/AC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª T., DJe 30/05/2018).

Por outro lado, também há entendimento pacífico na jurisprudência pátria da impossibilidade da aplicação do referido princípio baseado nas espécies de crimes e de acordo com os antecedentes do agente:

STF: Não tem pertinência o princípio da insignificância se o crime de furto é praticado mediante ingresso sub-reptício na residência da vítima, com violação da privacidade e tranquilidade pessoal desta. A existência de registros criminais pretéritos obsta a aplicação do princípio da insignificância, consoante jurisprudência consolidada da Primeira Turma desta Suprema Corte (v.g.: HC 109.739/SP, rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 14.02.2012; HC 110.951, rel. Min. Dias Toffoli, DJe 27.02.2012; HC 108.696 rel. Min. Dias Toffoli, DJe 20.10.2011; e HC 107.674, rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 14.09.2011). Ressalva de entendimento pessoal da Ministra Relatora (HC 114289 RS, 1.ª T., rel. Rosa Weber, 21.05.2013, v.u.).

De acordo com o Superior Tribunal de Justiça (STJ), também não é possível a aplicação quando da prática de tráfico ilícito de drogas ou consumo pessoal:

STJ: 1. Independentemente da quantidade de drogas apreendidas, não se aplica o princípio da insignificância aos delitos de porte de substância entorpecente para consumo próprio e de tráfico de drogas, sob pena de se ter a própria revogação, contra legem, da norma penal incriminadora. Precedentes. 2. O objeto jurídico tutelado pela norma do artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é a saúde pública, e não apenas a do usuário, visto que sua conduta atinge não somente a sua esfera pessoal, mas toda a coletividade, diante da potencialidade ofensiva do delito de porte de entorpecentes. 3. Para a caracterização do delito descrito no artigo 28 da Lei n. 11.343/2006, não se faz necessária a ocorrência de efetiva lesão ao bem jurídico protegido, bastando a realização da conduta proibida para que se presuma o perigo ao bem tutelado. Isso porque, ao adquirir droga para seu consumo, o usuário realimenta o comércio nefasto, pondo em risco a saúde pública e sendo fator decisivo na difusão dos tóxicos. 4. A reduzida quantidade de drogas integra a própria essência do crime de porte de substância entorpecente para consumo próprio, visto que, do contrário, poder-se-ia estar diante da hipótese do delito de tráfico de drogas, previsto no artigo 33 da Lei n. 11.343/2006. 5. Recurso em habeas corpus não provido (RHC 37.094/MG, 6.ª T., rel. Rogerio Schietti Cruz, j. 04.11.2014, DJe 17.11.2014).

Além disso, a Súmula 599 do STJ anuncia a inaplicabilidade do referido princípio nos crimes contra a Administração Pública. Também, ainda de acordo com o STJ, não é admitida a sua aplicação aos crimes cometidos mediante violência ou grave ameaça à pessoa, como por exemplo no crime de roubo. Vejamos:

Súmula 599 O princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a administração pública. (Súmula 599, CORTE ESPECIAL, julgado em 20/11/2017, DJe 27/11/2017).

Nos termos da jurisprudência pacífica desta Corte, o princípio da insignificância não se aplica aos delitos cometidos mediante violência ou grave ameaça à pessoa, como é o caso do crime de roubo. Precedentes (STJ, AgRg no AREsp 1.450.515 / PI, Rel. Min. Nefi Cordeiro, 6ª T., DJe 24/10/2019).

 

3. DA NECESSIDADE DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM SEDE EXTRAJUDICIAL

3.1 O delegado de polícia como primeiro garantidor da legalidade e da justiça

O Delegado de Polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça. Essa foi a frase proferida pelo Ministro Celso de Melo em seu voto no HC 84548/SP, que se tornou um símbolo e sintetiza, de forma ímpar, as funções e deveres da Autoridade Policial, no modelo constitucional brasileiro.

De acordo com Brito et al. (2015), o objetivo do delegado de polícia, no momento pré-processual, é apurar a veracidade dos fatos ocorridos, dando resposta à sociedade de um fato que, em tese, está tipificado na lei penal. Sendo assim, tais elementos devem ser confiáveis para impedir a instauração de ações penais de forma temerária que exponham, injustificadamente, qualquer cidadão ao tormento de um processo arbitrário.

Há muito, permeou-se pelo Brasil uma visão distorcida sobre as funções do Delegado de Polícia, atribuindo-se ao cargo o estigma de instrumento de repressão autoritária do Estado. Nesse sentido, o inquérito policial foi largamente conceituado pela doutrina e jurisprudência majoritárias como sendo um procedimento administrativo, sigiloso e escrito, destinado a colher indícios de autoria e materialidade para que o Ministério Público (MP) possa oferecer a ação penal, ou seja, dotado de natureza jurídica unicamente instrumental.

Entretanto, apesar de certo atraso, caminha a passos largos o desenvolvimento de uma forte corrente doutrinária reinterpretando o inquérito policial à luz da Constituição Federal. Assim, o conceito e a função do Inquérito Policial têm se coadunado com o que foi determinado pela CF.

Após a sobrevinda da Constituição Cidadã e, mais recentemente, com a promulgação da Lei 12.830/2013, foi instaurado um novo modelo para as práticas investigativas policiais. Dessa forma, o presidente do inquérito policial possui, como sua bússola, os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, dignos de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, leciona Xavier (2019, p. 95)

Sendo feita a devida constitucionalização releitura da investigação policial, sob as lentes da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, fica evidente que toda a atividade de investigação deve sempre observar os princípios e valores constitucionais, sendo totalmente retrógrada a visão no sentido de que os direitos constitucionais do conduzido/indiciado somente seriam plenos na fase judicial. Como bem afirma Lênio Streck, a Constituição representa o topos hermenêutico que conformará a interpretação jurídica do restante do sistema270, devendo dessa forma a investigação policial e a função do Delegado de Polícia serem vistas como instrumentos de efetivação de garantias constitucionais, sendo certo que as novas democracias constitucionais, como a do Brasil, devem ter uma política criminal que tenha a função de assegurar a plenitude dos direitos fundamentais nos casos concretos.

Sabe-se que a persecutio criminis é fragmentada em três fases, sendo elas: a investigação preliminar, a ação penal e a execução penal. O delegado de polícia cumpre seu papel principal exercendo o comando discricionário da investigação preliminar. Nesse sentido, cabe a este conduzir a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade.

De mais a mais, modernamente, diz-se que o inquérito policial possui uma função garantidora, com o claro papel de evitar a instauração de uma persecução penal infundada por parte do Ministério Público diante do fundamento do processo penal, que é a instrumentalidade e o garantismo penal (RANGEL, 2021, p. 101).

O garantismo penal, por sua vez, aparece como a busca para evitar o custo para o sujeito passivo e para o Estado de um processo desnecessário (LOPES Jr., 2001. p. 41). Esse custo não necessariamente se refere ao gasto financeiro, mas também ao custo emocional ao cidadão que se encontra no polo passivo da persecução penal sofrendo um atentado, sobretudo, contra seu status dignitatis, tão vilipendiado em uma investigação penal injusta.

Nesse sentido, Lopes Jr. e Gloeckner (2014) afirmam que a investigação preliminar no processo penal não se limita a uma função instrumentadora, mas também atende a um patente interesse de eficácia de direitos fundamentais, com o fito de evitar as acusações e os processos infundados.

Lopes Jr. e Gloeckner, ao citarem Carnelutti (2014, p. 100), afirmam que a função do procedimento de investigação preliminar não deve ser entendida no sentido de uma preparação do processo penal, mas sim como um obstáculo a superar antes de se poder abrir o procedimento judicial, com um ânimo verdadeiro de servir como uma garantia ao investigado.

Desta forma, são delimitados três pilares básicos da investigação preliminar: a busca do fato oculto, a função simbólica e a busca de se evitar acusações infundadas. Nesse sentido, a função de evitar acusações infundadas é o principal fundamento da investigação preliminar. Isso porque, uma vez evitada determinada investigação infrutífera, o fato oculto será esclarecido e, com isso, assegura-se que o Estado não atuará de forma abusiva, mas sim respeitando as garantias constitucionais dos indivíduos. Por fim, arrematam os autores: Se a impunidade causa uma grave intranquilidade social, não menos grave é o mal causado por se processar um inocente (LOPES JR. e GLOECKNER, 2014, p. 208).

Sendo assim, o delegado de polícia exerce papel fulcral na primeira fase da persecução penal, possuindo liberdade de interpretar os fatos de forma técnico-jurídica.

Assim, ensina Khaled Jr e Rosa (2014):

De fato, a sobreposição de funções e a confusão de papéis é nociva ao Estado Democrático de Direito. Mas certamente não é disso que se trata aqui. Os Delegados não estão de modo algum reivindicando função que não é sua. Pelo contrário: como no Brasil a investigação preliminar é chefiada pela autoridade policial, cabe a ela a dimensão de controle e de garantia de preservação dos direitos fundamentais do sujeito passivo da investigação, como aponta André Nicolitt. Sem falar que estamos falando aqui de um visível emprego racional dos recursos escassos de que a autoridade policial possui para fazer seu trabalho. Não só os Delegados podem como DEVEM analisar os casos de acordo com o princípio da insignificância. Merecem aplauso e incentivo os Delegados que agem dessa forma, pois estão cientes do papel que lhes cabe na investigação preliminar, atuando como filtros de contenção da irracionalidade potencial do sistema penal.

Destarte, do mesmo modo que é vedado ao parquet denunciar um indivíduo que cometeu determinada conduta atípica, também será vedado, nesse caso, ao delegado de polícia proceder à lavratura do auto de prisão em flagrante.

A conduta atípica para o Ministério Público também o será para o delegado de polícia, não havendo razão em se proceder de modo diverso, sob pena de incorrer o MP e o delegado de polícia, em tese, em crime de abuso de autoridade.

Nesse sentido, ensina Neto (2003):

O delegado de polícia, que possui a mesma formação jurídica do promotor público e do juiz de direito, do defensor público, e que também é imbuído de um munus público, tem a atribuição, dentre outras, de verificar o aspecto legal e jurídico daquilo que lhe é narrado através de Boletim de Ocorrência, Ficha de Ocorrência da Polícia Militar, informação da imprensa ou requerimento do ofendido, para, discricionariamente, instaurar ou não Inquérito Policial, lavrar ou não Termo Circunstanciado ou Auto de Prisão em Flagrante, promover ou não atos preliminares de uma investigação, pois, muitas vezes, o conteúdo da notícia crime é desprovido de tipicidade.

Assim, de forma a reinterpretar o ordenamento jurídico pátrio à luz da sistemática constitucional, a função materialmente atribuída ao delegado de polícia é a de primeiro garantidor da legalidade, da justiça e, acima de tudo, dos direitos fundamentais das vítimas e, inclusive, daqueles que potencialmente sofrerão a ameaça do poder punitivo do Estado (XAVIER, 2019).

3.2 Dos fundamentos jurídicos da prisão em flagrante

O direito à liberdade de locomoção é garantido expressamente pela Constituição Federal de 1988 no artigo 5°, inciso XV, in verbis: é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.

Desta forma, a liberdade de ir e vir é caracterizada por ser um direito fundamental de primeira geração, garantido aos cidadãos em face das arbitrariedades do Estado. Assim, evidencia-se que, na perspectiva objetiva, o devido respeito de todos os direitos fundamentais é condição de legitimidade do Estado Democrático de Direito.

Na perspectiva subjetiva, o direito à liberdade de ir e vir confere aos titulares a garantia de que o Estado se abstenha e não invada sua esfera individual. É, portanto, um direito negativo do cidadão em face do Estado (MORAES, 2020, p. 165).

Nesse sentido, leciona Lenza, (2022, p. 1142):

Os direitos humanos da 1.ª dimensão marcam a passagem de um Estado autoritário para um Estado de Direito e, nesse contexto, o respeito às liberdades individuais, em uma verdadeira perspectiva de absenteísmo estatal.

Seu reconhecimento surge com maior evidência nas primeiras Constituições escritas, e podem ser caracterizados como frutos do pensamento liberal-burguês do século XVIII.

Tais direitos dizem respeito às liberdades públicas e aos direitos políticos, ou seja, direitos civis e políticos a traduzir o valor liberdade.

Conforme anota Bonavides, os direitos de primeira geração ou direitos de liberdades têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado

A regra é a liberdade, a prisão é a exceção. Desta forma, o cerceamento do direito de liberdade de determinado cidadão somente será permitido tendo como fulcro o restabelecimento da ordem jurídica violada pela conduta nociva do autor do fato. Sendo entendida como um mal necessário com o objetivo de atender ao interesse público de manutenção da paz e da ordem, sacrifica-se a liberdade de ir e vir com o fito de proteger a paz social (RANGEL, 2021, p. 725).

Nesse sentido, segundo Lima (2013, p. 138), o inquérito policial, quando instaurado, traz em seu bojo um constrangimento patente ao cidadão que se vê perseguido pelo grande aparato penal do Estado. Esse constrangimento, entretanto, deve ser considerado legal, caso o fato investigado seja típico em seus aspectos formal e material, e haja indícios de que o investigado o tenha praticado.

Dessa forma, pensamos que a visão de exigir da autoridade policial a atuação como mero formalizador de atos policiais não se alinha ao espírito constitucional. Assim, obrigar o delegado de polícia a lavrar o auto de prisão em flagrante de conduta materialmente atípica e, após, encaminhar os autos para a justiça relaxar a prisão flagrantemente ilegal, retrata uma conduta claramente ineficiente.

Tal visão é flagrantemente inconstitucional e violadora dos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, economicidade processual, celeridade e, principalmente, despreza os direitos e garantias fundamentais do agente. Dita visão considera o indivíduo como mero objeto do processo, e não como um cidadão dotado de direitos e garantias constitucionais, dentre eles o direito à liberdade de locomoção e à presunção de inocência.

Corroborando com esse pensamento, Xavier (2019, p. 93) aduz:

A Constituição Federal garante tratamento igual para todas as pessoas, no qual o princípio da isonomia deve englobar todas as situações, respeitando as igualdades e desigualdades. Desse modo, sendo feita a devida constitucionalização, releitura da investigação policial, sob as lentes da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, fica evidente que toda a atividade de investigação da Polícia Judiciária, bem como os juízos flagranciais feitos pelo Delegado de Polícia, devem sempre observar os princípios e valores constitucionais. Sendo totalmente retrógrada a visão no sentido de que os direitos constitucionais do conduzido/indiciado somente seriam plenos na fase judicial. Dentro dessa leitura constitucional da persecutio criminis, o investigado não pode mais ser visto pelo Estado como um mero objeto de direito, mas sim como um sujeito de direitos.

Destarte, verificando-se o delegado que está diante de fato materialmente atípico, a continuidade do inquérito policial torna-se sobejamente abusiva. Logo, o constrangimento causado pelas investigações deve ser tido como ilegal, tendo o procedimento como único destino o seu pronto trancamento, sob pena de incorrerem os responsáveis por crime de abuso de autoridade.

Portanto, a imposição de prisão em flagrante, a instauração e o prosseguimento do inquérito policial somente se legitimam na hipótese de ter o agente praticado um fato formal e materialmente típico. Inexistindo a tipicidade material, desaparece o crime, fulminando o cumprimento dos requisitos que fundamentam a cassação do direito de liberdade de locomoção do cidadão.

Assim, sabe-se que a aplicação do princípio da insignificância afasta a tipicidade material do fato. Logo, conclui-se que, se o fato for atípico para o magistrado, o será da mesma forma para o delegado de polícia (MASSON, 2017, p. 48).

Foi imputado ao delegado de polícia não somente o poder, no sentido discricionário, mas também o dever de, quando posto diante de um caso claro de crime de bagatela, efetuar a sua aplicação, funcionando como um obstáculo à irracionalidade do prosseguimento do inquérito policial (KHALED JR; ROSA, 2014).

A lavratura do auto de prisão em flagrante é ato privativo do delegado de polícia que, a partir de sua convicção jurídica frente ao caso concreto, decidirá pela prisão em flagrante ou sua não ratificação. Sendo assim, o ordenamento jurídico atual conferiu à autoridade policial o poder de interpretação e posterior conclusão jurídica. (BRUTTI, 2005)

Como já demonstrado, o delegado de polícia tem como função ser o primeiro garantidor dos direitos fundamentais do cidadão. Possui, portanto, como verdadeira missão constitucional garantir a correta aplicação dos princípios da legalidade e do devido processo legal. (GOMES, 2006, p. 732)

Sendo assim, chega-se ao entendimento do poder-dever da autoridade policial de, diante de um fato sabidamente insignificante, não lavrar o auto de prisão em flagrante, ou não instaurar inquérito policial. Ou, ainda mais, deixar de indiciar o investigado nos casos em que o inquérito já esteja em andamento, tudo isso com fundamento na aplicação do princípio da insignificância.

3.3 Da análise dos aspectos trazidos pela lei do Delegado de Polícia

A promulgação da Lei n° 12.830/2013 instaurou um novo marco para o cargo de Delegado de Polícia, fulminando várias visões distorcidas que não consideravam a carreira como dotada de natureza jurídica.

Assim, a partir do art. 3° da referida lei, caíram por terra essas discussões, restando definido que o Delegado de Polícia é cargo jurídico, privativo de bacharel em Direito. Deve-se, portanto, ser-lhe dispensado o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados.

De outra ponta, a Lei n° 12.830/2013 trouxe, ainda mais, substrato para aqueles que advogavam no sentido de conferir ao delegado de polícia o poder/dever de aplicar na fase inquisitorial o princípio da insignificância. Vejamos:

Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.

§ 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.

Nota-se que a lei expressamente conferiu ao delegado de polícia a tarefa de conduzir a investigação criminal, com o fito de apurar as circunstâncias, a materialidade e a autoria das infrações penais.

Assim sendo, a averiguação da materialidade passou a ser mais que um dever legal conferido à autoridade policial, mas também um direito do investigado. Portanto, abstrai-se da nova lei a consolidação legal do entendimento de que o delegado de polícia não está restrito à análise formal da tipicidade, devendo se imiscuir de analisar todos os substratos do crime, tendo como objetivo analisar a tipicidade formal e material e, assim, definir pela imposição ou não da medida de prisão, ou outras alternativas adotadas na seara policial (XAVIER, 2019, p. 102).

De mais a mais, o delegado de polícia não somente pode, como deve analisar e interpretar juridicamente os fatos trazidos à sua baila e, se assim entender, aplicar o princípio da insignificância. (KHALED JR; ROSA, 2014).

Destarte, se o fato praticado por determinado cidadão é atípico, o Estado não tem o direito de tolher sua liberdade. Nesse raciocínio, o delegado, agindo como verdadeiro órgão do Estado, também não poderá proceder à prisão de indivíduo que praticou fato materialmente atípico.

O constituinte originário quis que o delegado de polícia possuísse a atribuição de ser o primeiro a proceder a análise técnico-jurídica dos fatos, utilizando-se da estrutura de toda contenção do poder punitivo estatal para definir a correta subsunção típica ao fato.

Nesse sentido, leciona Brentano (2018):

Dito isso, resta claro que as atividades da autoridade policial não possuem cunho meramente administrativo, mas, sim, pré-processual, sendo o delegado de polícia o primeiro a realizar uma análise técnico-jurídica do caso concreto, devendo resguardar os direitos e garantias fundamentais daquele a quem se atribui a prática de uma infração penal. Nesta condição, faz claro juízo de valor acerca dos fatos que lhe são apresentados, verificando não apenas a presença de indícios de autoria e materialidade, mas, também e principalmente, os elementos que compõem o crime, quais sejam: tipicidade, ilicitude e culpabilidade.

Portanto, estando o delegado de polícia diante de uma situação fática que permita a aplicação do princípio da insignificância, assim deverá proceder, seja deixando de lavrar o auto de prisão em flagrante, seja não instaurando inquérito policial, ou, ainda, deixando de indiciar o investigado, caso já em tramitação o procedimento policial, decisão, porém, que deverá ser sempre fundamentada. A aplicação do princípio da bagatela, já na fase policial, evita constrangimentos desnecessários ao investigado, decorrentes da adoção de providências de polícia judiciária por fato materialmente atípico, faltando justa causa para tanto. Além disso, a lavratura de um auto de prisão em flagrante e a instauração de um inquérito policial geram altos custos decorrentes da movimentação da máquina estatal, os quais, suportados pela coletividade, poderiam ser evitados com a adoção do princípio da insignificância pelo delegado de polícia.

Sendo assim, nada mais lógico que este tenha à sua disposição a atribuição e o poder para, mediante seu próprio juízo de valor, analisar de acordo com o caso concreto a incidência ou não da tipicidade material da conduta.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa teve como objetivo analisar a aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia de forma congruente com o ordenamento constitucional e jurídico brasileiro, fundamentando sua atuação e explicitando os motivos da necessidade de tal aplicação.

Tomando-se como base a pesquisa bibliográfica realizada, evidencia-se a irracionalidade da obrigação do delegado de polícia de realizar a prisão em flagrante de indivíduo que, claramente, praticou conduta insignificante.

O delegado de polícia é um operador do Direito, sendo sua função constitucional a de primeiro garantidor da legalidade e da justiça. Deve, portanto, utilizar a Constituição Federal e suas garantias como bússola, de forma a implementar e conceder ao investigado todos os seus direitos, inclusive o da liberdade.

A título de exemplo, a autoridade policial, ao ser confrontada com indivíduo que furtou um bem de valor irrisório que satisfaça todos os requisitos dos crimes de bagatela, não apenas pode, mas deve relaxar a prisão em flagrante, agindo como aplicador das garantias constitucionais.

Essa análise ficou ainda mais patente a partir da promulgação da Lei 12.830/2013, que estabeleceu e definiu legalmente que o delegado de polícia deve agir de acordo com o seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade.

 

REFERÊNCIAS

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Sobre os autores
Tarsis Barreto Oliveira

Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito da UFT. Professor Adjunto de Direito da UNITINS. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. Membro do Comitê Internacional de Penalistas Francófonos e da Associação Internacional de Direito Penal.

Rafael Henrique Ayres Venâncio

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Tocantins (UFT, 2022).

Informações sobre o texto

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