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A requisição administrativa em tempos de Covid-19:

o caso do Rio Grande do Norte

A requisição administrativa, sob o norte legal e normativo, só deve ser utilizada em situações excepcionais, não podendo constituir a regra das contratações públicas, múnus que é concedido ao procedimento licitatório regular.

RESUMO: A pandemia provocada pela Covid-19, num cenário de altas taxas de contágio e mortes, exigiu do Poder Público, em todos os seus entes, a adoção de medidas eficazes e urgentes com vistas ao enfrentamento da doença, algumas de intervenção estatal na propriedade privada. Nesse contexto, o instituto da requisição administrativa, previsto na Constituição Federal e adotado por normas infraconstitucionais, passou a ser utilizado como forma de obtenção de bens e serviços para que o Estado enfrente o iminente perigo público ora configurado. Especificamente no Rio Grande do Norte, o instrumento em questão tem sido utilizado em larga escala, o que denota a sua importância em situações de excepcionalidade. Vê-se, assim, que a adoção, pelo ente estadual, de normativas que permitem a utilização da requisição administrativa, contribuiu significativamente para o enfrentamento da situação emergencial de anormalidade ora vivenciado e, em suma, para o salvamento de centenas de vidas.

Palavras-chave: Requisição administrativa. Covid-19. Intervenção estatal. Excepcionalidade.


1 INTRODUÇÃO

Apesar da assertiva de Dostoiévski (2012, p. 585), de que ainda que sejamos ruins, é bom estar no mundo, sobreviver e se manter no mundo, hodiernamente, já não constitui uma tarefa tão simples. Vide, neste momento, a pandemia provocada pelo patógeno Sars-Cov-2, causador da Covid-19, que afeta todo o planeta e, de forma ainda mais potencializada, o Brasil.

Nesse contexto de verdadeira calamidade com centenas de milhares de vidas ceifadas, a pandemia colapsou não apenas a rede pública de saúde, mas provocou uma verdadeira ruína nos cenários econômico, político e social, forçando a administração pública brasileira, em seus mais diversos entes, a adotar medidas de contenção e enfrentamento do estado pandêmico.

O presente trabalho, sob esse cenário, abordará primeiramente o papel de intervenção estatal na propriedade como maneira de enfrentar a pandemia atual, especificamente no que concerne ao instituto jurídico da requisição administrativa: fenômeno através do qual o Estado pode se valer de bens e serviços particulares em caso de iminente perigo público.

Em seguida, será traçado um panorama entre a requisição administrativa e o seu uso pelo Poder Público para a reversão de situações de calamidade pública, apresentando-se o atual cenário da pandemia causada pela Covid-19 e o modo como a requisição administrativa fora tratada pelas normas editadas pelo Estado do Rio Grande do Norte.

Dessa forma, sendo possível compreender as vicissitudes ocasionadas pela pandemia a toda a população, constata-se a imperiosidade de se adotar medidas administrativas tão eficazes quanto emergentes, com vistas à sua utilização em favor do enfrentamento ao vírus, do tratamento de doentes e, em suma, do salvamento de vidas.

2 PARA UMA REFLEXÃO PRELIMINAR: A INTERVENÇÃO ESTATAL NA PROPRIEDADE

Historicamente, o Estado não se preocupava quanto à relação existente entre a propriedade e o cumprimento de uma função social. Assegurava veementemente o direito à propriedade, porém, nada era imposto como requisito para o exercício deste direito.

Assim, no Estado de laissez faire, advogado por Stuart Mill (1986) como aquele em que as interferências estatais são extremamente danosas à economia, os indivíduos possuíam ampla liberdade assegurada pelos dispositivos legislativos, sendo os seus direitos intocáveis. Desta maneira, como observa Carvalho Filho (2017), abriam-se lacunas que possibilitavam gigantescos abismos sociais e, por consequência, conflitos entre as várias classes da sociedade.

Com o passar do tempo, entretanto, surgiram inúmeras ideologias de tendências progressistas e operárias, o que possibilitou um novo desenho do Estado: o Estado de bem-estar social (welfare state). Dalmo de Abreu Dallari (apud CARVALHO FILHO, 2017, p. 837) destaca que o walfare state emprega seu poder supremo e coercitivo para suavizar, por intervenção decidida, algumas das consequências mais penosas na desigualdade econômica.

Desse modo, vê-se uma transição entre um Estado extremamente permissivo e um Estado interventor, especialmente entre o final do século XIX e o início do século XX, começando a dar lastro à possibilidade de intervenção na propriedade privada, que, no entanto, necessita de cautela e de institutos jurídicos específicos.

Isto porque a propriedade é inerente à própria existência humana, sendo certo que boa parte das pessoas, durante uma vida inteira de labuta árdua, sonha em ser proprietária de bens, ainda que dos mais singelos. Não é por outra razão, aliás, que a literatura, aqui representada pelo escritor Erico Veríssimo (2013, p. 262), em seu livro O Continente 1, ao indagar se os homens constroem suas casas às suas próprias imagens, reflete sobre o apreço que as pessoas desenvolvem por seus bens.

A intervenção na propriedade privada pelo Estado, então, pode ser conceituada, na lição de Meireles (2001, p. 560), como todo ato do Poder Público que compulsoriamente retira ou restringe direitos dominiais privados ou sujeita o uso de bens particulares a uma destinação de interesse público.

Na mesma toada, Carvalho Filho (2017, p. 839) complementa que tal intervenção, além do amparo normativo, ainda precisa ter por fim ajustar a propriedade aos inúmeros fatores exigidos pela função social a que está condicionada, destacando também que esta atividade estatal está calcada no poder de império (ius imperii), devendo os particulares, portanto, sujeição ao Poder Público.

No Brasil, a Constituição Federal alçou a propriedade ao núcleo de direitos fundamentais (art. 5º, XXII), destacando que essa propriedade atenderá a uma função social (art. 5º, XXIII). Dentro desse contexto, a Carta Magna estabeleceu que a propriedade particular poderá ser utilizada pelo Estado em caso de iminente perigo público, assegurada a devida indenização ulterior ao proprietário (art. 5º, XXV).

Tem-se, dessa forma, que a intervenção estatal na propriedade privada encontra fundamento constitucional, sendo um instrumento de adequação do bem particular à função social da propriedade, onde a atividade estatal pode retirar ou restringir direitos particulares, mesmo aqueles elevados à categoria de fundamentais, sujeitando-os ao interesse público e, consequentemente, à sua utilização administrativa.

Este tipo de intervenção se classifica dentro daquilo que a doutrina administrativista consignou chamar de intervenção restritiva, que ocorre com a imposição de restrições estatais sobre o bem e a sua utilização, contudo, sem retirá-la do seu dono, que conservará a propriedade em sua esfera jurídica, apesar da subordinação aos padrões invocados pelo Poder Público (CARVALHO FILHO, 2017).

Entre as modalidades de intervenção restritiva, estão a servidão administrativa, a ocupação temporária, as limitações administrativas, o tombamento e a requisição, sendo esta a modalidade que interessa ao presente trabalho.

3 A REQUISIÇÃO ADMINISTRATIVA

Como modalidade de intervenção estatal na propriedade privada, a requisição administrativa se apresenta com a utilização, em situação de perigo público iminente, de bens móveis, imóveis e serviços particulares. Não se trata, portanto, de forma intervencionista que se aplica apenas sobre um determinado bem, podendo ser constituída de forma unilateral e auto-executória, por exemplo, em face de um particular, para que preste um determinado serviço ou ceda ao Estado o uso de uma coisa in natura (MELLO, 2000, p. 725).

É importante destacar, conforme aponta Carvalho Filho (2017, p. 854), que a extinção da requisição se dará tão logo desapareça a situação de perigo público iminente, razão pela qual a requisição não possui natureza permanente, mas transitória.

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Além disso, pontua Meireles (2001, p. 590), a requisição não depende de intervenção prévia do Poder Judiciário para sua execução, porque, como ato de urgência, não se compatibiliza com o controle judicial a priori, o que não significa dizer, entretanto, que o ato não pode ser submetido à apreciação judicial. Pelo contrário, o Poder Judiciário, sempre que provocado, deverá realizar o exame de legalidade do ato, ressalvando-se o mérito da questão, todavia, à discricionariedade do administrador (CARVALHO FILHO, 2017, p. 854).

Assim, as razões que motivaram a administração pública a realizar a requisição administrativa, mesmo que eventualmente pouco compreendidas, não podem ser inferidas pelo órgão julgador competente, que deverá ater-se apenas ao seguimento ou não, pelo órgão estatal, dos parâmetros legais.

Diferentemente de outras épocas, quando a requisição administrativa possuía apenas fins militares, o instituto atualmente se apresenta como um instrumento civil-administrativo que visa, por exemplo, coibir e/ou prevenir danos à sociedade, desde que se apresente uma real situação de perigo público iminente (inundação, incêndio, sonegação de gêneros de primeira necessidade, conflito armado, comoção intestina) (MEIRELES, 2001, p. 590).

Dessa maneira, a requisição supõe, em geral, necessidade pública premente, compulsória, como evidencia Mello (2000, p. 726). O administrador público, nesse cenário, não é livre para promover a requisição de bens e serviços como queira e entenda, até porque o perigo público iminente que autoriza a adoção dessa intervenção administrativa é classificado como aquele perigo que não somente coloque em risco a coletividade, como também esteja prestes a se consumar ou a expandir-se de forma irremediável se alguma medida não for adotada (CARVALHO FILHO, 2017, p. 852).

Registre-se que há correntes doutrinárias, a exemplo de Meireles (2001), que defendem que apenas a requisição de bens necessita de tal perigo público iminente, requisito que não é exigido, entretanto, à requisição de serviços, que pode ser realizada a qualquer tempo. Apesar disso, este entendimento não nos parece o mais adequado ao direito administrativo contemporâneo, seja porque não se coaduna com o preceito constitucional (art. 5º, XXV, da CF), seja ainda porque se não há nenhum risco à ordem pública e social, razão não existe para que o administrador se valha de intervenção tão gravosa à iniciativa privada.

Pontue-se, ainda, que a indenização ao particular é paga apenas após a utilização do bem ou serviço pelo Estado, mormente em razão de seu caráter auto-executório, que dispensa, por exemplo, a existência de uma ordem judicial para cumprimento do ato.

Por último, na esteira do disposto no inciso XXV do art. 5º da Constituição e conforme ensina Carvalho Filho (2017, p. 853), há uma condição para a indenização ao particular pelo uso de seus bens e serviços alcançados pela requisição, qual seja, o proprietário somente fará jus à indenização se a atividade estatal lhe tiver provocado danos. Inexistindo danos, nenhuma indenização será devida. O princípio neste caso é o mesmo aplicável às servidões administrativas.

4 UMA PANDEMIA NO MEIO DO CAMINHO

A Covid-19 é uma doença respiratória causada pelo patógeno Sars-Cov-2 e que possui altos níveis de contágio, tendo em conta que o vírus se espalha facilmente pelo ar, contaminando as pessoas em proporções geométricas.

Em razão disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o surto de Covid-19, que àquele momento já se espalhava por diversos países, consistia numa emergência de saúde pública de importância internacional[3], tendo decretado o estado de pandemia logo em seguida, em 11 de março de 2020, em razão da disseminação intercontinental da doença.

Tais declarações repercutiram mundo afora, exigindo dos países a adoção de uma série de normativas com o intento de mitigar a propagação do vírus causador da enfermidade, não sendo diferente no Brasil, que em 3 de fevereiro de 2020, através da Portaria nº 188, do Ministério da Saúde, declarou o mesmo estado de emergência de importância internacional.

Posteriormente, através da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, o Estado brasileiro instituiu medidas de enfrentamento à pandemia, objetivando a proteção da coletividade, dando um norte aos gestores públicos para suas tomadas de ações.

A seu turno, o Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 672, asseverou que a grave situação emergencial provocada pela pandemia exige das autoridades brasileiras, em todos os níveis de governo, a efetivação concreta da proteção à saúde pública, com a adoção de todas as medidas possíveis e tecnicamente sustentáveis para o apoio e manutenção das atividades do Sistema Único de Saúde.

Diante desse quadro, os entes públicos brasileiros, em suas diversas esferas de atuação, uma vez autorizados pela citada Lei nº 13.979/2020, passaram a editar normativas com vistas ao enfrentamento da emergência sanitária, dispondo, em boa parte delas, sobre medidas drásticas, inclusive com a mitigação temporária de direitos fundamentais, a exemplo da imposição de distanciamento social, redução da jornada de estabelecimentos e proibição de circulação de pessoas em determinados dias, locais e horários.

O mesmo diploma legislativo conferiu às autoridades públicas a possibilidade de adotarem, no âmbito de suas competências, medidas de requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa (art. 3º, VII, da Lei nº 13.979/2020).

Dessa forma, a legislação instituiu oficialmente a requisição administrativa como uma das medidas de enfrentamento da Covid-19. Não se pode desconsiderar o fato de que a calamidade pública em questão tem colapsado o Sistema Único de Saúde (SUS) e provocado uma demanda extraordinária de insumos, equipamentos, medicamentos e leitos clínicos, apenas para citar alguns exemplos.

Ora, se numa situação de normalidade já é possível encontrar, no sistema de saúde brasileiro, diversos exemplos de falência da máquina estatal, como a escassez de insumos e medicamentos ou a falta de leitos, ainda mais se pode esperar num período de anormalidade, como o ora vivenciado com a pandemia.

Nesse quadro, surge uma situação de perigo público iminente que necessita de enfrentamento imediato pelos órgãos governamentais, sob pena de colocar em xeque toda a estratégia sanitária e, em suma, provocar a morte de muitas pessoas. Não é por outra razão, então, que se justifica a adoção do instituto da requisição administrativa como meio eficaz de resposta às urgentes demandas pandêmicas.

Sobre a utilização da requisição administrativa como estratégia de saúde, Carvalho Filho (2017, p. 853), por exemplo, mesmo antes da pandemia, já defendia que numa situação de iminente calamidade pública, o Poder Público pode requisitar o uso do imóvel, dos equipamentos e dos serviços médicos de determinado hospital privado, por exemplo.

União, Estados e Municípios, nesse contexto, passaram a utilizar-se de atos requisitórios tendo por objeto desde bens imóveis até os serviços prestados por pessoas físicas e jurídicas, que devem ser posteriormente indenizadas, uma vez que a requisição, na lição de Moraes (2011), é um direito com dupla titularidade, garantindo-se ao Poder Público a realização de suas necessidades, com o resguardo do bem-estar social; e aos particulares, que não podem ser espoliados de seus bens, a garantia de que não sofrerão prejuízos.

5 A REQUISIÇÃO ADMINISTRATIVA COM SOTAQUE POTIGUAR

No Estado do Rio Grande do Norte (RN), já em 13 de março de 2020, pouco depois da entrada em vigor da Lei nº 13.979, o governo estadual editou o Decreto nº 29.513, regulamentando aquela lei no âmbito local e dispondo sobre diversas medidas a serem adotadas pelas autoridades.

Entre elas foi elencada a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa (art. 2º, VI), uma mera reprodução da disposição já constante na legislação federal. A norma estadual também dispôs que as medidas requisitórias para enfrentamento da Covid-19 serão determinadas pelo Secretário de Estado da Saúde Pública, vedando a delegação desse mister e assegurando o direito à justa indenização dos particulares (art. 7º).

Além disso, em seu art. 13, o decreto ainda incluiu uma disposição de autorização da utilização do instituto da requisição administrativa de bens móveis e imóveis e de serviços de pessoas naturais e jurídicas em favor do interesse da saúde pública, num reforço, portanto, àquela disposição inicial anteriormente citada.

É importante destacar que a vigência do decreto ficou consignada enquanto durar a declaração de situação de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional declarada pela Portaria nº 188/2020, do Ministério da Saúde (art. 21).

Posteriormente, a Controladoria-Geral do Estado editou a Instrução Normativa (IN) nº 03, de 20 de abril de 2020, recomendando e orientando os órgãos e entidades ligados ao Poder Executivo do Estado do RN sobre como procederem com as contratações e aquisições de bens, serviços e insumos, com vistas ao enfrentamento da crise pandêmica.

A instrução contou com disposições dedicadas à requisição, estatuindo, na forma do seu art. 19, que conforme a Lei Federal nº 13.979/2020 (inciso VII do art. 3º), é possível à Administração Pública, para atender a medidas excepcionais e estritamente necessárias ao enfrentamento da calamidade pública decorrente do novo coronavírus (COVID-19), a requisição de bens (móveis e imóveis) e serviços (de pessoas naturais e jurídicas), em consonância com o inciso XXV do art. 5º da Constituição Federal.

Reforçou, ademais, que a requisição em tais termos, além de não poder ser determinada por outro agente público que não o Secretário de Estado da Saúde Pública, ainda assegura ao requisitado o pagamento de justa e posterior indenização (§§ 1º e 2º do art. 19).

Perceba-se que a normativa estadual, além de ancorada na Lei nº 13.979/2020, ainda fora fundamentada com base na disposição do inciso XXV do art. 5º da Carta Magna, já mencionado anteriormente, que justamente assegura a utilização da propriedade particular pelo Estado quando presentes os requisitos de (i) iminente perigo público e de garantia da (ii) devida indenização ulterior ao proprietário.

Também se destaca que a requisição administrativa, inclusive como disposto na legislação estadual, apenas tem lugar quando o iminente perigo público obsta a possibilidade de aquisição de bens ou serviços pelas vias regulares.

Nesses termos, o Estado potiguar possibilitou, com a urgente e precária medida da requisição administrativa, a requisição de bens a serem empregados pelo sistema público de saúde na prevenção ao contágio e no enfrentamento do novo coronavírus, propiciando, entre outros, a obtenção de medicamentos, insumos, respiradores e leitos clínicos e de terapia intensiva com a exata urgência que a calamidade pública atual requer.

Dentro desse cenário, foram celebrados diversos contratos com a requisição de serviços e suprimentos, a exemplo dos elencados a seguir, todos retirados do Portal da Transparência do governo estadual:

Tabela 1 Requisições administrativas da Secretaria Estadual de Saúde Pública (SESAP)

Contratante

Objeto

Contratado

Nº Contrato

Valor

SESAP

Pagamento indenizatório pela realização de plantões eventuais, no período de 20.03.2020 a 31.03.2020.

Cooperativa Médica do RN

Nota de Empenho nº 001504

R$ 37.515,40

SESAP

Aquisição de material de limpeza (indenização) para os hospitais do Estado.

Clarit Comercial Eireli

Nota de Empenho nº 001548

R$ 203.403,24

SESAP

Aquisição de máscaras para enfrentamento ao COVID-19 (indenização).

F. Wilton C. Monteiro

Nota de Empenho nº 001801

R$ 720.000,00

SESAP

Aquisição de medicamentos (indenização).

Cirúrgica Bezerra Distribuidora LTDA.

Nota de Empenho nº 001880

R$ 145.900,00

SESAP

Dívida da SESAP com a AMPAMIM relativa à prestação de serviços ao Hospital Tarcísio Maia, em Mossoró.

Associação de Assistência e Proteção à Maternidade e à Infância de Mossoró APAMIM

Nota de Empenho nº 001806

R$ 372.627,60

Fonte: Elaborada pelos autores com base em dados do Portal da Transparência do RN.

Ao todo, desde 05 de maio de 2020 e até 20 de fevereiro de 2021, respectivamente a primeira e a última data de contratação com dados públicos no referido Portal até a data de conclusão do presente trabalho, o Estado do RN celebrou 85 (oitenta e cinco) requisições administrativas, que totalizam R$ 18.751.310,50 (dezoito milhões, setecentos e cinquenta e um mil, trezentos e dez reais e cinquenta centavos).

A maioria, conforme os exemplos trazidos na Tabela 1, consiste em contratação de profissionais, aquisição de medicamentos e insumos, compra de materiais de limpeza e utilização de estruturas hospitalares privadas.

Não há como afirmar, por óbvio, que tais contratações seguiram todos os requisitos dispostos no ordenamento jurídico até porque não é este o objeto do trabalho , o que será verificado pelos órgãos de controle das contas públicas. Contudo, pode-se dizer que as normas estaduais de enfrentamento à pandemia, ancoradas na legislação federal e na Constituição, tornaram possível o atendimento dos gargalos públicos para o enfrentamento da situação emergencial de anormalidade vivenciada em todo o mundo.

Mesmo num Estado pequeno e financeiramente pobre, como o Rio Grande do Norte, a requisição administrativa, até aqui, foi utilizada em grande escala durante a pandemia, numa média maior que 8 (oito) requisições por mês, o que autoriza a conclusão de que em Estados maiores e mais populosos, a adoção desse instrumento administrativo se deu de forma ainda maior.

Não há dúvida, portanto, que sem essa forma de intervenção estatal na propriedade privada, uma situação de emergência pública, como a pandemia da Covid-19, seria enfrentada com muito mais dificuldade e certamente ao custo de muito mais vidas, motivo pelo qual, apenas por tal razão, a existência da requisição administrativa no direito brasileiro já mereceria todas as devidas comemorações.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho, sem a pretensão de esgotamento do tema, buscou apresentar o instituto da requisição administrativa como importante instrumento público de enfrentamento de situações calamitosas e emergenciais, como a atualmente vivenciada em virtude da pandemia ocasionada pela Covid-19.

Tão grave quanto o iminente perigo público que justifica a medida requisitória seria a ausência de instrumento jurídico que possibilitasse ao Poder Público responder em tempo hábil às necessidades urgentes, por isso a requisição administrativa se converteu em importante instrumento estatal para enfrentar calamidades.

É imperiosa, contudo, a compreensão de que a requisição administrativa, sob o norte legal e normativo, só deve ser utilizada em situações excepcionais, não podendo constituir a regra das contratações públicas, múnus que é concedido ao procedimento licitatório regular.

A intervenção estatal na propriedade particular é medida de absoluta gravidade e deve ser ao máximo evitada, respeitando-se a autonomia das relações privadas, que apenas cede espaço à conduta intervencionista em razão da supremacia do interesse público sobre o privado, justamente quando uma coletividade está ameaçada.

Este é o caso da excepcionalidade pandêmica em questão, que foi alçada pelas normativas estatais como emergência de saúde pública de importância internacional, autorizando a aquisição de bens e serviços pelo Estado por formas excepcionais. Isso pode se verificar, no caso concreto apresentado, no Estado do Rio Grande do Norte, que tem utilizado de forma ampla o instituto em questão.

Em O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry (2013, p. 27), quando o protagonista da trama deseja ver o pôr do sol e pede ao rei que ordene que o sol se ponha, a majestade responde que é preciso exigir de cada um o que cada um pode dar e que a autoridade repousa sobre a razão. Em suma, é sobre isso que o presente trabalho tratou.

O rei-soberano, aqui representado pelo Estado, precisa editar suas ordens e requisições, portanto baseadas na sensatez e na razão, sempre regularmente fundadas no ordenamento jurídico e sem a tentação do abuso de poder, afinal, estados de excepcionalidade e emergência não são estados de exceção.

A urgência não exclui a prudência, por isso é fundamental que o Poder Público, especialmente na adoção de instrumentos precários como a requisição administrativa, combata a pandemia sem permitir que esse enfrentamento se torne tão deletério quanto a doença.


REFERÊNCIAS

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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

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Sobre os autores
Manoel Matias Medeiros de Araújo

Bacharelando em Direito (UFRN/CERES). Estagiário no escritório Advogados Associados (Caicó/RN). Interessa-se por Direito Processual Civil, Teoria Geral do Processo, Direito Administrativo, Direito Público, Direito e Arte.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Manoel Matias Medeiros; MAIA, Augusto França. A requisição administrativa em tempos de Covid-19:: o caso do Rio Grande do Norte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6961, 23 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99277. Acesso em: 22 dez. 2024.

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