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A possível fraude eleitoral do RDV

Agenda 25/07/2022 às 08:50

Os partidos têm à disposição milhões de combinações diferentes, pelas quais é possível, depois das eleições, conferir se um voto comprado foi mesmo digitado pelo eleitor na urna eletrônica.

A possível fraude eleitoral do RDV

Nessas eleições 2022 a urna e todo o sistema eletrônico de votação está sob a mais atenta atenção dos candidatos, partidos e sociedade em geral, principalmente em consequência de um dos candidatos - o atual presidente da república - questionar os trabalhos da justiça eleitoral em eventos públicos.

Pois bem, em 2003 o TSE - Tribunal Superior Eleitoral - criou o RDV - registro digital do voto. Este RDV registra o voto do eleitor digitalmente à semelhança das antigas cédulas de papel de votação, armazenando a ordem dos candidatos de cada voto específico e individual, porém, logicamente, sem vincular ao título eleitoral.

Art. 172. Os votos serão registrados individualmente pelo sistema de votação da urna, nas seções eleitorais, resguardando-se o anonimato da eleitora ou do eleitor.

§ 1º A urna será dotada de arquivo denominado Registro Digital do Voto (RDV), no qual ficará gravado cada voto, tal como digitado pelo eleitor ou pela eleitora na urna, separado por cargo e em arquivo único, utilizando os meios tecnológicos adequados para a garantia do sigilo da votação.[...]

Brasil. Tribunal Superior Eleitoral. RESOLUÇÃO Nº 23.669, DE 14 DE DEZEMBRO DE 2021.

De tal forma, por exemplo, se o eleitor votar no candidato a deputado estadual 91234, deputado federal 9123, senador 912, governador 91 e presidente 91, este voto específico, na seção e zona eleitoral específica estará registrado.

E esses dados são disponibilizados aos partidos logo após a totalização, geralmente menos de 48 horas após a votação, permitindo por esta via a individualização da identificação do eleitor, pois a seção eleitoral também é vinculada no RDV.

A possível fraude

Primeiramente, só há como funcionar no primeiro turno, necessitando - no pleito - de candidatos a deputado estadual e federal. Em segundos turnos não é possível, pois só há dois candidatos e todas as seções eleitorais terão votos em ambos.

Veremos como (e se) é possível superar a falta de link do título eleitoral no RDV, para identificar nosso eleitor e quebrar o anonimato do voto.

Então, como funciona esta possibilidade de venda de voto?

A fraude é simples, como são centenas (ou milhares) de candidatos aos cargos de deputado federal e estadual na federação partidária, e milhares de seções eleitorais, os partidos têm a sua disposição milhões de combinações diferentes, pelas quais é possível, depois das eleições, conferir se o voto comprado foi mesmo digitado pelo eleitor na urna eletrônica, pois tal combinação de candidatos fornecida ao eleitor é única.

Em São Paulo, por exemplo, no ano de 2018, houve os seguintes quantitativos de candidatos, segundo o sistema SIG do TSE (referências na descrição):

  1. Presidente: 16
  2. Governador: 15
  3. Senador: 20
  4. Deputado federal: 1686
  5. Deputado estadual: 2174

Supondo que compraremos votos para um determinado candidato a presidente, preencheremos a cédula viciada para o eleitor que vendeu seu voto, vamos fazer as contas: começamos eliminando da fraude os candidatos mais conhecidos (pois terão naturalmente e sem fraudes votos em todas as seções), por exemplo 50 candidatos a deputado federal, 50 candidatos a deputado estadual, assim como 2 governador e 2 senador, as combinações possíveis seriam de 2.124 x 1.636 x 18 x 13, que resultaria em mais de 800 milhões de combinações.

Detalhe: o partido ainda tem a seu dispor a utilização destas 800 milhões de combinações naquela seção eleitoral certa de cada um dos eleitores que estão vendendo seus votos.

É possível assim, teórica e hipoteticamente, comprar e conferir todos os votos no Brasil.

Vamos ver outro exemplo hipotético no mesmo estado de São Paulo: compraremos votos para um senador e para um presidente simultaneamente. Para a conta das possibilidades das combinações, consideramos para o preenchimento da cédula eleitoral viciada o seguinte quantitativo de candidatos:

  1. Governador: 11
  2. Deputado federal: 1600
  3. Deputado estadual: 2100

Assim: 11 x 1600 x 2100 resulta em mais de 36 milhões de combinações passíveis de fácil conferência após a eleição. Lembrando que foi excluído dos votos comprados os candidatos mais votados, eis que estes terão naturalmente votos “normais” - não comprados - em todas as seções.

Exemplo prático

Imagina por exemplo o conhecido Tício indo comprar os votos do Caio e Mévio, eleitores da seção 246 e 256, ambos na zona eleitoral 90, para o governador 91 e presidente também 91. Paga-lhes adiantado R$ 20,00, prometendo mais R$ 100,00 após receber os RDVs do TRE - Tribunal Regional Eleitoral.

Manda o primeiro votar na combinação de candidatos pouco conhecidos:

  1. deputado estadual: 91234
  2. deputado federal: 9123
  3. senador: 912
  4. governador: 91
  5. presidente: 91

E o segundo na seguinte lista, também de candidatos pouco conhecidos:

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  1. deputado estadual: 91245
  2. deputado federal: 9124
  3. senador: 912
  4. governador: 91
  5. presidente: 91

Depois de recebidos os arquivos RDVs do TRE, tendo em mãos as zonas e seções eleitorais, assim como a ordem dos votos, é possível conferir exatamente se a tal ordem dos candidatos, pré-preenchida em cédula ao eleitor, constam nas seções hipotéticas 246 e 256.

A probabilidade de haver duas cédulas iguais de candidatos pouco conhecidos na mesma seção eleitoral é quase nula, considerando as milhões de combinações possíveis. A matemática não deixa dúvidas, a ordem de combinação é 5 campos e mais a seção eleitoral: deputados estaduais e federal, senador, governador e presidente. Cada campo tem o potencial da quantidade de candidatos ao cargo específico. Tudo isto ainda se multiplica pela aleatoriedade das seções e zonas eleitorais. Facilmente se chega a milhões de combinações possíveis, variando o resultado conforme a quantidade de seções eleitorais e de candidatos.

Para facilitar ainda mais para a fraude, é possível comprar votos de candidatos a deputado de outras regiões do estado, fazendo um ajuste fino nas cédulas a serem pré-preenchidas. Por exemplo, na cidade de Campinas os candidatos a deputado do local e mais conhecidos é João e Maria; para a fraude, nesta cidade, esses dois candidatos não constariam nas compras de votos pelos partidos, aumentando ainda mais a improbabilidade de haver duas cédulas de RDV igual, pois se sabe de antemão (via pesquisas eleitorais) que os moradores de Campinas darão muitos votos ao João e à Maria, assim, os votos comprados seriam de candidatos desconhecidos naquele lugar para diferenciar na conferências dos RDVs.

Nos RDVs só haverá cédulas iguais se observar os candidatos mais votados, mais famosos, por isto para se perpetrar a fraude, a possibilidade de preenchimento das cédulas se dá para votação nos de menor expressão política.

Assim, na cidade citada de Campinas, haverá muitos votos iguais para deputados para a Maria e para o João, conforme apontado nas pesquisas eleitorais, assim como muitos para governador e presidente dominantes naquela cidade.

Para a fraude funcionar bem, basta trabalhar o desencontro dos votos comprados com a probabilidade de votos dos eleitores “normais” naquela cidade.

Atualmente, a conferência das cédulas RDVs de votação é rápida. A entrega geralmente é na semana seguinte à eleição, em consonância com a resolução 23.673 de dezembro de 2021 do TSE:

Art. 46. Após a conclusão dos trabalhos de totalização, as entidades fiscalizadoras poderão solicitar: [...]

III - arquivos de Registro Digital do Voto (RDV); [...]

Parágrafo único. O Registro Digital do Voto será fornecido em arquivo único por seção eleitoral, devendo estar intacto, no mesmo formato e leiaute em que foi gravado originalmente.

Brasil. Tribunal Superior Eleitoral. RESOLUÇÃO Nº 23.673, DE 14 DE DEZEMBRO DE 2021

E qual a sugestão para reparar esta falha? 

Considerando que a possível fraude é facilitada por quanto mais candidatos o partido ou federação tiver, a limitação de participação aos mais conhecidos da legenda ajudaria a evitar o problema, porém violaria os direitos políticos dos cidadãos em geral, pois na constituição federal está assentada as regras de elegibilidade, onde quase todos os brasileiros podem votar e serem votados na quase universalidade dos direitos políticos. Regras do TSE e leis infralegais não podem dificultar e restringir excessivamente os direitos políticos.

Simplesmente negar os RDVs aos partidos seria a opção mais rápida de resolver o problema, porém colocar véu sobre este dado eleitoral teria efeitos ruins sobre a transparência.

Esta informação, a escolha individualizada de cada eleitor, de cada seção eleitoral, mesmo sem o identificar no primeiro momento, é de interesse legítimo dos estatísticos partidários e analistas políticos, pois eles podem tirar conclusões da vontade do eleitor, ver quais foram os vieses vencedores na política.

Esta é uma das razões da existência do RDV: estudo político dos votos e da vontade dos eleitores.

A sugestão seria bloquear o fornecimento das listagens RDVs por algum prazo razoável, alguns meses após as eleições, o que impossibilitaria tal fraude no primeiro momento, e que este bloqueio seja feito com criptografia, com chaves a serem públicas no prazo assinalado, impossibilitando o fornecimento dos RDVs mediante corrupção dos servidores da justiça eleitoral.


Referências

Brasil, Tribunal Superior Eleitoral, Registro digital do voto, apresentação, https://www.tse.jus.br/eleicoes/urna-eletronica/seguranca-da-urna/registro-digital-do-voto

Brasil, Tribunal Superior Eleitoral, Sistema Sig do TSE, 

https://sig.tse.jus.br/ords/dwapr/seai/r/sig-eleicao/home

Sobre o autor
Daniel Tiago Inácio Salina

Doutorando em ciências jurídicas, servidor (TRE-AM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALINA, Daniel Tiago Inácio. A possível fraude eleitoral do RDV. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6963, 25 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99287. Acesso em: 21 nov. 2024.

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