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Soberania e superação do Estado Constitucional moderno

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Agenda 02/06/2007 às 00:00

Com a crescente inter-relação e interdependência entre Estados e a consolidação de princípios norteadores do comportamento entre eles, consolidou-se uma ordem jurídica internacional.

            "Soberania é o conceito, ao mesmo tempo político e jurídico, em que confluem todos os problemas e contradições da teoria positivista do Direito e do Estado Constitucional Moderno" Luigi Ferrajoli (1999, p. 125).


Sumário: 1. Considerações Iniciais; 2. A fragilidade do conceito de Soberania; 3. Soberania e Integração; 4. Soberania e Globalização; 5. A superação do conceito moderno de soberania; 6. Considerações Finais; 7. Referências Bibliográficas.


Resumo – Discussão científica sobre os efeitos da globalização na base teórica do Estado Constitucional Moderno e sobre o conceito tradicional de Soberania. Relato panorâmico sobre as mutações sofridas pelo Estado Constitucional Moderno e sua crise atual, com fenecimento do conceito de direitos protegidos por constituições soberanas a partir da quebra de paradigmas pela realidade capitalista liberal imposta ao mundo após o colapso do leste europeu comunista. Abordagem panorâmica sobre a possibilidade de superação do Estado Constitucional Moderno.

Abstract: Scientific discussion about the effects of globalization on the theoretical base of the Constitutional Modern State and its traditional concept on Sovereign. A general overview on mutations suffered by the Constitutional Modern State and its current crisis including the weakness of the concept of rights protected by sovereign constitutions after the rupture of the paradigms by the capitalist liberal reality imposed to the world after the colapse of the communist European East. The article also deals with the possibilities to overcome the Constitutional Modern State.


1. Considerações Iniciais

            O conceito de Soberania, historicamente, esteve vinculado à racionalização jurídica do Poder, no sentido de transformação da capacidade de coerção em Poder legítimo. Ou seja, na transformação do Poder de Fato em Poder de Direito, configurando um dos pilares teóricos do Estado Constitucional Moderno.

            Bobbio (1994, p. 1179) indica que o conceito de Soberania pode ser concebido de maneira ampla ou de maneira estrita. Em sentido lato, indica o Poder de mando de última instância, numa Sociedade política e, conseqüentemente, a diferença entre esta e as demais organizações humanas, nas quais não se encontra este Poder Supremo. Este conceito está, assim, intimamente ligado ao Poder político. Já em sentido estrito, na sua significação moderna, o termo Soberania aparece, no final do Século XVI, junto com o Estado Absoluto, para caracterizar, de forma plena, o Poder estatal, sujeito único e exclusivo da política.

            Com a superação do Estado Absoluto e o conseqüente surgimento do Estado Constitucional Moderno, a Soberania foi transferida da pessoa do soberano para a Nação, seguindo a concepção racional e liberal defendida por pensadores como Emanuel Joseph Sieyès, expressa em sua obra A Constituinte Burguesa e sistematizada por meio de sua teoria do Poder Constituinte.

            Sieyès (1986, p. 113) estabeleceu a doutrina da Soberania da Nação, dizendo que "em toda Nação livre – e toda Nação deve ser livre – só há uma forma de acabar com as diferenças que se produzem com respeito à Constituição. Não é aos notáveis que se deve recorrer, é à própria Nação" Foi com essa posição que Sieyès concebeu, racionalmente, o princípio da Soberania da Nação como instrumento de legitimação para a instituição do Estado Constitucional Moderno.

            Assim, a proclamação da Soberania como independência ante qualquer poder externo tornou-se uma manifestação característica e essencial do Estado Constitucional Moderno desde seu início. A consolidação do princípio democrático supôs a reafirmação da Soberania com relação ao exterior, passando a ser proibida qualquer interferência nas decisões internas da comunidade, adotadas livremente por esta. Em muitos casos, como nos movimentos pela independência colonial, estavam unidas aspirações pelo estabelecimento do sistema democrático e a consecução da independência nacional.

            A Soberania Nacional, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, passou a debater-se para conciliar-se com um fato inegável: que as comunidades políticas – os Estados – passaram a fazer parte de uma sociedade internacional, regida por normas próprias. O Estado Constitucional Moderno Soberano encontrou-se, forçosamente, vinculado a obrigações externas, obrigações estas que tiveram origens muito diversas. Podem ter sido resultado de tratados bilaterais, de convenções multilaterais ou podem ter sido resultado da existência, reconhecida e consolidada, de uma prática costumeira no âmbito internacional (CRUZ, 2001, p. 247).

            Hodiernamente, o descumprimento de obrigações internacionais pode acarretar sanções importantes por parte dos outros Estados, normalmente representados por um organismo específico. Progressivamente, o ordenamento internacional passou a dispor de mais armas, jurídicas e econômicas, destinadas a assegurar o cumprimento dessas sanções, sempre numa perspectiva de conflito.

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            A existência de uma Sociedade internacional e, conseqüentemente, de obrigações vinculantes para o Estado Constitucional Moderno, não é incompatível, em princípio, com a Soberania deste. Tal compatibilidade é resultado do princípio de que os compromissos internacionais do Estado derivam do consentimento deste mesmo Estado.

            Hans Kelsen (1969, p. 421), referindo-se à vinculação do Estado Constitucional Moderno por meio de tratados, escreveu que "em regra geral, pode-se dizer que o tratado não prejudica a soberania, já que, definitivamente, esta limitação se baseia na própria vontade do Estado limitado; mais ainda: em virtude desta limitação, fica assegurada a soberania estatal". Conforme essa construção histórica, o Estado Constitucional Moderno assume voluntariamente suas obrigações internacionais, ficando, dessa forma, submetido ao Direito Internacional por sua própria vontade soberana.

            Como reflexo desta concepção, as Constituições passaram a prever que o Estado Constitucional Moderno "soberano" poderia assumir voluntariamente obrigações internacionais. Dessa forma, ficaria ressalvada a doutrina da Soberania. Acrescente-se que essas obrigações dependeriam, pelo menos as mais importantes, da aprovação dos respectivos parlamentos representantes do povo. Mesmo que seja o Poder Executivo o encarregado de gerir as relações internacionais, passou a ser exigido que os tratados fossem aprovados pelos parlamentos.

            Até pouco tempo, essa construção teórica bastava para a discussão sobre a inserção do Estado do âmbito internacional, porém sabe-se que a realidade atual não corresponde a ela. Com a crescente inter-relação e interdependência entre Estados e a consolidação de princípios norteadores do comportamento entre eles foi sendo provocanda, de maneira evidente, a consolidação de uma ordem jurídica internacional, cuja força vinculante é difícil de explicar em virtude da "aceitação" de cada Estado.

            Antônio Celso Alves Pereira (2004, p. 631), no mesmo sentido, comenta que a Sociedade internacional, em seu atual estágio, por um lado definido pela interação cultural decorrente das facilidades de comunicação e transportes e, por outro, explicado pela globalização interdependente em vigor no planeta, não pode mais considerar o conceito de Soberania absoluta.

            Assim, o presente artigo está embasado em quatro hipóteses. A primeira é aquela que considera o conceito moderno de Soberania em pleno processo de fenecimento. A segunda hipótese opera com os efeitos dos movimentos de integração na Soberania moderna, assim como a terceira hipótese está concebida a partir das mudanças no conceito de Soberania operadas pela globalização. A quarta hipótese sustenta a necessidade de superação do conceito moderno de Soberania.


2 . A fragilidade do conceito de Soberania

            As análises em torno da fragilidade do conceito moderno de Soberania, a primeira hipótese elaborada para esse artigo, não são recentes. Jacques Maritain já questionava o conceito de Soberania em sua obra El Hombre y el Estado, dizendo que as razões para assim proceder é o fato de que, em suas origens históricas, a Soberania, como assinalou Jellinek, é um conceito político que foi posteriormente transformado para proporcionar uma base jurídica ao poder político do Estado Constitucional Moderno.

            A tese de Maritain é que a filosofia política deveria liberar-se da palavra e do conceito de Soberania. Não porque seja um conceito caduco ou em virtude de uma teoria sociológico-jurídica do Direito objetivo, nem porque o conceito de Soberania cria dificuldades e confusões teóricas insuperáveis no campo do Direito Internacional, mas sim porque, tomado em seu autêntico sentido e na perspectiva do campo científico a que pertence (o da filosofia política), este conceito é intrinsecamente ilusório e não pode fazer outra coisa a não ser extraviar aqueles que continuem empregando-o com o pretexto de que foi aceito universalmente e por muito tempo para poder rechaçá-lo, negando-se a ver as conotações errôneas que são inseparáveis dele. O conceito de Soberania (FERRAJOLI, 1999, p. 126), como escreveu Kelsen na conclusão de seu célebre ensaio de 1920 sobre o tema, deve ser resolvido de forma radical. Esta, segundo o doutrinador austríaco, seria a primeira revolução da consciência cultural necessária.

            Maritain (1983, p. 55) afirma ainda que reconhece o direito do corpo político à autonomia plena, como direito natural e, inclusive, inalienável, entendido no sentido de que ninguém pode subtrair esse direito do cidadão pela força. Mas de nenhuma maneira no sentido de que a plena independência em questão seja inalienável em si mesma e o corpo político não possa abandonar livremente seu direito à plena autonomia se reconhece que não é já uma Sociedade "perfeita" e que se basta em si mesma e consciente em entrar numa Sociedade política mais ampla. Com isso ele já antevia a possibilidade de uma "Sociedade das Sociedades", transnacional, numa posição extremamente avançada.

            Em conseqüência, nem o primeiro elemento inerente à Soberania autêntica, ou seja, o direito natural e inalienável à independência e ao poder supremos, nem o segundo elemento inerente àquela, ou seja, o caráter "absoluto e transcendentalmente supremo" desta independência e deste poder, que na autêntica Soberania são supremos separadamente do todo governado pelo Soberano e por cima desse todo, podem ser atribuídos de maneira alguma ao Estado Constitucional Moderno, que não é e nunca foi jamais autenticamente soberano (MARITAIN, 1983, p.56). Os conceitos de Absolutismo e Soberania foram forjados juntos no mesmo forno. Com relação ao Poder Público, o primeiro conceito já foi superado e o segundo apresenta evidentes sinais de exaustão.

            Toda vez que prevalece a idéia de um organismo internacional, sem que haja a hegemonia de uma Nação ou de um grupo de nações, estamos, é verdade, superando o conceito de Estado Constitucional Moderno, cujo atributo principal é a Soberania, que tem dificuldade para conviver com a idéia de um sistema transnacional.

            Sob esse ângulo, também, o Estado Constitucional Moderno Soberano não se sustenta. Na verdade, em face da economia mundial, a par do fenômeno das comunicações velozes, a Soberania estatal perde sua substância. A globalização da economia gerou relações de interdependência, nas quais os Estados têm sido, no mínimo, obrigados a reunirem-se em grupos, as fronteiras comerciais desaparecem e a moeda nacional será, pouco a pouco, substituída por outro instrumento comum de troca e de compra e venda. Criados os grupos, sem nenhuma conotação étnica, o passo subseqüente será a execução de uma política de alinhamento não mais de países, mas de grupos, até a economia mundial tornar-se hegemônica – se já não o é - e as fronteiras econômicas desaparecerem.

            É possível que o movimento de globalização [01], com a intervenção de novos pressupostos democráticos, impulsione outras formas de integração que permitam o início de uma caminhada em direção a uma maior fraternidade universal e a um desenvolvimento comum solidário.

            O exame da realidade do mundo, nos dias de hoje, bem como as modificações havidas na trajetória histórica do Estado Constitucional Moderno, levam à verificação de que houve uma mudança estratégica na postura dos Estados, tanto no plano internacional como no interno, caminhando-se, a passos largos, para a superação de sua base teórica, conforme ele foi concebido como nacional, territorial e soberano.

            Os ordenamentos jurídicos estatais, dessa forma, passaram a reconhecer, com maior ou menor intensidade, a intensa influência do meio externo, pelo menos no que diz respeito às suas regras mais universais. É de se destacar também que o princípio da "voluntariedade" da sujeição dos Estados às normas internacionais se vê também consideravelmente marcado pelo da incorporação dos Estados por organizações comunitárias transnacionais [02] que supõem uma limitação da Soberania, já que uma vez efetuada é praticamente irreversível.

            Essa realidade alterou a característica mais evidente do Estado Constitucional Moderno, como forma de organização política, que é o tipo de poder que pretendeu exercer territorialmente, independente das características, pessoais ou sociais, dos membros da sua população. A evolução histórica definiu o poder do Estado Constitucional Moderno com um adjetivo que pretendeu resumir suas capacidades essenciais: o poder do Estado seria um poder Soberano.

            A idéia de Poder Soberano, no sentido de poder supremo e irresistível desenvolveu-se historicamente na medida em que um dos poderes medievais, o do Rei, cresceu com a idéia do absolutismo, assumindo funções públicas em caráter de exclusividade, como a administração da justiça, emissão de moeda, manutenção de forças armadas, entre outras, o que o situava acima das demais instâncias de poder e organizações.

            O conceito de Soberania aparece definitivamente concebido por Jean Bodin [03], em sua obra Os seis livros da república, de 1575. Foi um conceito elaborado num determinado momento histórico, quando se produzia a afirmação da monarquia absoluta como regime de governo capaz de assegurar a paz social, tanto frente às guerras religiosas como diante de potenciais invasores ou poderes externos, como o Papado de Roma.

            Por isso a Soberania aparecia como uma prerrogativa – ou um poder – supremo, tanto frente a instâncias interiores como exteriores.

            Esse caráter supremo, predicado que num primeiro momento foi do "soberano", foi mantido como prerrogativa estatal e teve acolhida nos textos constitucionais desde 1789 até nossos dias, normalmente com a indicação de que a Soberania pertence à Nação.

            Assim, o conceito e o exercício da Soberania evoluíram historicamente, tendo começado com a Monarquia Absoluta e, posteriormente, absorvidos pelo Estado Constitucional Moderno, tanto quanto às suas dimensões como quanto a seu titular concreto – primeiro o Rei e depois a Nação – dentro do Estado. A Soberania podia ser definida como poder de autodeterminação. Seria o poder que teria uma comunidade nacional alçada em Estado, de dizer aos demais Estados que seria senhora do seu destino político, não admitindo qualquer interferência exterior nos assuntos de seu exclusivo interesse.

            Com a atuação dos diversos fatores que surgiram com a globalização capitalista, está evidente a emergência de uma nova concepção de Soberania, ajustada aos interesses liberais do mercado. Esse movimento está ligado, principalmente, a dois fatores (ALBERT, 1993, p.76):

            1 – o fim dos países socialistas do leste europeu e o conseqüente desaparecimento do bloco de oposição à mundialização da economia de mercado e do capitalismo; e

            2 – o efetivo desenvolvimento tecnológico e científico dos meios de comunicação e dos ambientes virtuais adotados pelas instituições financeiras e pelos operadores de comércio internacional.

            O pretenso Poder Soberano do Estado Constitucional Moderno, pode-se dizer, encontra-se em adiantado processo de deterioração. Não é o Poder que desaparece, mas sim uma forma específica de sua organização e que teve seu ponto forte no conceito jurídico-político de Soberania.

            A importância histórica dessa concepção está em haver objetivado uma conciliação entre Poder e Direito, entre ser e dever-ser. Essa síntese, sempre problemática, mas possível, buscou identificar um Poder supremo e absoluto, mas submetido à Lei, com o Poder da Sociedade política.

            Com a crise dessa concepção de Soberania, vários autores indicam uma leitura atenta dos fenômenos políticos que estão ocorrendo. Como escreve Bobbio, (1994, p. 1188) é preciso proceder a uma nova síntese jurídico-política capaz de racionalizar e disciplinar juridicamente as novas formas de Poder, as novas autoridades que estão surgindo.

            Esse processo de fenecimento da Soberania Moderna está, como indica a doutrina aqui colecionada, vinculado com o fenecimento do próprio Estado Constitucional Moderno.

            Tanto é assim, que no âmbito político já existe uma contradição, ou uma brecha, entre a idéia de Estado Constitucional Moderno Soberano, por um lado, e a realidade de um mundo multipolar, no qual se produz uma crescente transnacionalização dos processos de decisão política. Tudo isso afeta de forma importante o princípio da Soberania estatal moderna. É difícil encontrar ou identificar, atualmente, alguma Soberania que seja como aquela concebida pelas luzes da modernidade. As fronteiras são permeáveis e perdem seu significado quando, atores não-estatais, podem comunicar-se através do espaço (JÁUREGUI, 2000, p.66). O Estado Constitucional Moderno deixou de ser um ator unitário para converter-se num marco a mais, não o único, no qual se negociam e resolvem as diferenças políticas. A ação coletiva cada vez escapa mais da jurisdição do Estado Constitucional Moderno. Por isso, fica cada vez mais difícil manter a idéia do Estado como garantia – ou depositário – do interesse geral.

            Joana Stelzer (2000, p. 193-205), por exemplo, trata do fenecimento da Soberania estatal apontando que o Estado perdeu a competência para deliberar acerca de interesses pátrios, tais como o do comércio internacional, restando transferida para instituições de natureza supranacional a missão de sentar-se à mesa de negociações com terceiros países. Passível de responsabilidade por um lado, incompetente por outro, o Estado Constitucional Moderno não é mais concessor do Direito, mas instrumento nas integrações regionais. Na esfera da integração, caracterizada por uma nova interpretação da soberania, a deliberação última já não é do Estado, eis que transferiu o poder de normatizar, executar e julgar determinados assuntos para instituições de viés supranacional.

Sobre o autor
Paulo Márcio da Cruz

doutor e pós-doutor em Direito do Estado, professor do mestrado e doutorado em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) e Universidade de Alicante (Espanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Paulo Márcio. Soberania e superação do Estado Constitucional moderno. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1431, 2 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9955. Acesso em: 30 abr. 2024.

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