Resumo: O positivismo jurídico e sua crise produziram aperfeiçoamentos no civil law e, também, sua aproximação do common law. De qualquer forma, essas duas famílias jurídicas recebem influências recíprocas no afã de atender todas as demandas do direito contemporâneo.
Palavras-Chave: Civil Law. Common Law. Sistema Jurídico. Hermenêutica Jurídica. Positivismo Jurídico. Pós-Positivismo.
Foi no positivismo científico de origem pandectística alemã onde foram deduzidos os conceitos e dos princípios gerais de direito. E, as normas são deduzidas logicamente do sistema, sem que importem elementos de ordem não jurídica.
O Positivismo é uma das doutrinas derivadas do Iluminismo. E, sua origem mais antiga se situa em Condorcet, filósofo vinculado à Enciclopédia, para quem era possível criar-se uma ciência da sociedade com base na matemática social, de acordo com Michael Löwy.
Porém, foi com Augusto Comte que o positivismo se tornou uma escola filosófica. Comte era formado em noções de matemática, frequentou a École Polytechnique de Paris e, logo após a Restauração dos Bourbons, aproximou-se do filósofo Saint Simon[1], tornando-se seu secretário particular, mas divergindo de suas ideias políticas.
Em 1830 surgiu o primeiro volume de seu Cours de philosophie positive. Ao longo de aproximadamente uma década concluiu essa sua obra de referência, cujo último volume foi publicado em 1842. Mas o trabalho conclusivo de Comte foi o Système de politique positive, editado entre 1852 e 1854, em plena maturidade intelectual.
O sociólogo e acadêmico Evaristo de Morais Filho lembra a necessidade de se situar as ideias em seus contextos históricos, para que se possa melhor compreendê-las.
Nesse sentido, a época do positivismo foi marcada pela profunda transformação material e espiritual trazida pela Revolução Industrial, e pelas intensas e significativas transformações ensaiadas e realizadas, integral ou parcialmente, pela Revolução Francesa.
É nesse contexto bafejado pelo ideário difundido pelas ideias francesas a transitar mundo afora que se situa o conjunto de formulações do pensamento de Comte.
Os fundamentos do positivismo consistem na busca de uma explicação geral diante de um fenômeno derivado da industrialização: a crescente especialização. Comte procurou fazer de sua filosofia um instrumento para manter plena a perspectiva do geral, da visão macro.
Fundou, assim, a física social, nome que ensejou o aparecimento da sociologia. Essa ciência se baseou no modelo de investigação comum às ciências empíricas particulares, com vistas a descobrir as regras que governam a sucessão e a coexistência dos fenômenos.
Estando em consonância com tempo, a exigir precisão e sistematicidade em face de problemas e desafios colocados pela modernização. E, a questão do método ganhou dimensão em sua concepção de produção de um saber científico, daí surgir o princípio da lei.
Segundo Comte, só existiria verdadeiramente ciência[2] no caso de os fenômenos permitirem, a partir da observação das relações e de suas manifestações antever os desdobramentos futuros.
A previsão, portanto, criaria a possibilidade de se perceber com alguma antecedência as etapas da evolução histórica. E, na dicção de Patrick Gardiner, características próprias do quadro de referência positivista nas ciências sociais é a pesquisa através da observação de dados da experiência, das leis gerais que regem os fenômenos sociais. A constância ou a regularidade dos fenômenos constatados leva a generalizar a partir destes, isto é, a formular leis positivas.
Essa base teórica e metodológica deu azo a Teoria dos Três Estados, e se encontrava fundamentava em seu método, que consiste em bases históricas, com um tratamento abstrato a consagrar linhas evolutivas da humanidade. Em sua concepção prospectiva preconizava que dois elementos se completam para a explicação dos processos: a estática e a dinâmica.
A estática representaria a própria estrutura da sociedade. Esta se ocuparia das leis da harmonia social, da hierarquia, das classes e dos indivíduos. De certo modo, a estática sugere a ideia de ordem. Os fatos dentro dessa ordenação são interdependentes, mas solidários. E, por sua vez, a dinâmica identificaria a ação humana e, no estágio científico da humanidade a indústria teve lugar privilegiado.
Esta se encarregaria de conduzir o progresso aos níveis mais avançados possíveis, sempre em conexão com os interesses dos impulsos do homem.
Sua tarefa seria o domínio absoluto da natureza, de modo que todas as ciências pudessem progredir irmanadas no sentido das conquistas do bem-estar social.
Mas, para que esse estágio supremo, positivo, da humanidade se concretizasse seria preciso que se completasse os processos pelos quais se conformaria a sociedade científica, já desprovida dos entraves perpetrados pelas forças retrógadas do passado.
Na Lei dos Três Estados[3], a humanidade passaria por três estados ou estágios. Segundo Comte, haveria um estágio teológico, um metafísico e um positivo ou científico. De acordo com Comte, haveria um estágio teológico, um metafísico e um positivo ou científico.
Os dois primeiros são partes necessárias de um processo de evolução e, portanto, devem ser removidos pela história, uma vez que tendo cumprido seus papéis, cabendo ao último estágio a plenitude da humanidade.
Logo, o positivismo é também a consagração da cientificidade, isto é, da era na qual o ser humano dominaria pela ciência todos os fenômenos naturais e sociais.
A sociedade industrial baseia-se na crença do conhecimento como condutor da humanidade e, com isso, descarta a coexistência das religiões fundadas em dogmas distantes da ciência e de sua capacidade de elucidar e dar soluções às necessidades da humanidade.
As questões de ordem moral, religiosa, política ou econômica que não são extraíveis do próprio sistema de direito, não podem ser consideradas. Esse sistema jurídico é autônomo em relação a realidade social, devendo sua coerência apenas às instituições e normas que lhe dão conteúdo.
Os casos concretos podem ser resolvidos mediante mera operação lógica de subsunção da situação real e concreta a uma valoração hipotética contida num princípio geral doutrinário e implícito nos conceitos científicos.
Nesses estão presentes os princípios permanentemente válidos sobre a correção do direito, de forma que a aplicação lógica do conceito e do princípio é suficiente para se galgar uma decisão correta ou justa.
O sistema não apenas é fechado além de ser autônomo e coerente, mas, também goza de plenitude. Sendo assim a partir dos conceitos e conexões lógicas sempre será possível suprir eventuais lacunas na lei, através da chamada construção criadora.
Portanto, os conceitos jurídicos-científicos são trabalhados e moldados exatamente para viabilizar a subsunção lógica de toda e qualquer situação concreta, eliminando-se as lacunas do direito positivo.
É incompatível com um sistema de decisões judiciais que não pode viver à distância de questões morais, econômicas etc., e, em que as particularidades da situação conflitiva são imprescindíveis à justiça do caso concreto.
Conforme demonstra Franz Wieacker[4] também a função original do ponto de vista da política do direito, do positivismo científico está hoje descaracterizada até ao ponto de se ter tornado irreconhecível, isto em virtude das mudanças sociais e políticas dos últimos cem anos e da crítica ideológica que acompanhou estas mudanças.
Pois, uma aplicação do direito que excluía por princípio as considerações políticas, sociais ou econômicas já não podem ser consideradas corretas, numa época de lutas ideológicas e sociais.
Convém frisar que não se pode confundir o positivismo científico com o positivismo[5] legalista. Pois, o primeiro se funda em conceitos e princípios gerais de natureza científica, enquanto que o segundo tem como premissa a ideia de que o direito está na lei.
A diferença resta mais nítida ao se lembrar que a ideia de que a ciência jurídica alemã, especialmente, na primeira metade do século XIX, esteve preocupada em elaborar uma dogmática capaz de responder à falta de um código de direito privado comum a toda a Alemanha.
A partir da segunda metade do século XIX, contudo, vários Estados germânicos elaboraram códigos e o próprio movimento liberal da unificação impôs, ainda que depois da sua derrota política, a continuação dos trabalhos de codificação dos trabalhos de codificação do direito comum a toda a Alemanha.
Eis o porquê, surgiu lugar no positivismo científico, um espaço para o positivismo legalista. E, segundo Franz Wieacker, isso constituiu uma vitória, ainda que não plenamente e decretada pela consciência social, da nação política sobre a nação cultural.
Significa que, pela primeira vez depois da recepção, a criação estatal do direito tornou-se em toda Alemanha independente do desenvolvimento erudito do direito.
Cabe lembrar que, ao contrário do que aconteceu na Inglaterra, que assembleia parlamentar do direito francês, ainda que derrotando o monarca, monopolizou o poder mediante o princípio da legalidade.
Daí, deriva a impossibilidade de se confundir o Rule of Law, inglês com o princípio da legalidade. Segundo a lição de Carl Schmitt na idealização do Estado de Direito Liberal a burguesia adotou um conceito de lei que repousa em velha tradição europeia, a herança da filosofia grega, que passou à Idade Moderna através da escolástica, conforme a qual a lei não é a vontade de um ou de muitos homens, mas uma coisa geral-racional (não é voluntas, mas ratio), no processo histórico de afirmação de burguesia esta noção de lei cedeu espaço para o seu oposto, isto é, para noção de lei defendida pelos representantes do absolutismo do Estado, segundo a qual na forma clássica cunhada por Hobbes, auctoritas non veritas facit legem[6] a lei é vontade, não vale por qualidades morais e lógicas, mas, precisamente como ordem.
O princípio da legalidade acabou por constituir um critério de identificação do direito. O direito estaria apenas na norma jurídica cuja validade não dependeria de sua correspondência com a justiça, mas, somente de ter sido produzida por uma autoridade dotada de competência normativa.
E, a partir daí, Ferrajoli qualificou o princípio da legalidade como metanorma de reconhecimento das normas vigentes, acrescentando que, segundo esse princípio, uma norma jurídica existe e é válida apenas em razão das formas de sua produção.
A juridicidade da norma está desligada de sua justiça intrínseca, importando somente se for editada por uma autoridade competente e seguindo o procedimento regular.
No Estado Liberal de Direito, os parlamentos da Europa continental reservaram a si o poder político mediante a fórmula do princípio da legalidade. Diante da hegemonia do parlamento, o executivo e o Judiciário assumiram posições óbvias de subordinação.
O Executivo somente poderia atuar se autorizado pela lei e nos seus exatos limites e, o Judiciário apenas aplica-la, sem mesmo poder interpretá-la. O Legislativo assumia, assim, uma nítida posição de superioridade.
O princípio da legalidade tinha estreita ligação com o princípio da liberdade, valor perseguido pelo Estado Liberal a partir das ideias de que a lei autorizasse e de que os cidadãos podiam fazer tudo aquilo que a lei não vedasse.
A igualdade que não tomava em conta a vida real das pessoas, era vista como garantia da liberdade, ou seja, da não discriminação das posições sociais, pouco importando se entre elas existissem gritantes
distinções concretas.
Nota-se que o Estado Liberal tinha preocupações com a defesa do cidadão contra eventuais agressões da autoridade estatal e não com as diferentes necessidades sociais.
A impossibilidade de o Estado interferir na sociedade, de modo a proteger as posições sociais menos favorecidas constituía consequência natural da suposição de que para se conservar a liberdade de todos era necessário não discriminar ninguém, pois qualquer tratamento diferenciador era visto como violador da igualdade e, compreendia apenas a sua dimensão formal.
A título de exemplo, basta ver o pronunciamento da Suprema Corte dos EUA no caso Adkins versus Children Hospital[7] 261, us 525 (1923) que invalidou uma legislação que estabelecia salário-mínimo para mulheres e crianças.
O império da lei reconhecida como instrumento a serviço da liberdade burguesa, ganhou conteúdo em contraposição a ideia de império de homens. Portanto, o império da lei significa antes de tudo, que o próprio legislador está vinculado às leis que edita. Teoricamente, o legislador como representante do povo, deve editar as leis para proteger os interesses do poco.
A vinculação só é possível, todavia, enquanto a lei for uma norma com certas propriedades. Eis que os sintetizadores da lei como expressão lei geral e abstrata. Assim, para não violar a liberdade e a igualdade, a lei deveria guardar as características de generalidade e da abstração. A generalidade e abstração são escudos protetores da liberdade e da igualdade.
A norma não poderia tomar em consideração uma pessoa em específico ou ser feita para uma determinada hipótese. A generalidade era pensada como garantia de imparcialidade do poder frente aos cidadãos e que, por serem iguais, deveriam ser tratados sem discriminação, e a abstração como garantia de estabilidade serve de longa vida para o ordenamento jurídico.
Para o desenvolvimento da sociedade em meio à liberdade, inspirava-se a um direito previsível ou a chamada certeza do direito. Daí, entende-se a razão pela qual Montesquieu afirmou que, se os julgamentos fossem uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela são assumidos. A afirmação revela uma ideologia política ligada à ideia de que a liberdade política é vista como segurança psicológica do sujeito e realiza-se mediante a certeza do direito[8].
O termo certeza provém do latim certitudo, certitudinis. Na língua portuguesa, só existe apenas um termo certeza, em italiano certezza, em francês certitude, porém, a língua inglesa e a espanhola detêm dois vocábulos: certaintu e certitude, certeza e certidumbre, respectivamente.
A certeza também pode se enquadrar entre os temas da teoria do conhecimento, sendo objeto da gnosiologia. Daí, se diz ter certeza quando se sabe sobre algo. Todavia, comporta dois significados, um objetivo e outro subjetivo.
No primeiro sentido, em prima razão, a certeza objetiva oferece uma verdade convencional, pois conectar uma palavra a um objeto é convencionar. Outro problema é como transmitir o conhecimento. Por meio dos cinco sentidos, ou seja, tato, olfato, visão, paladar e audição, pelos quais se conhecem os objetos.
Já no sentido subjetivo, a certeza assume a conotação de fé, crença e representa o conhecimento obtido pela fé, pela causa. Quando o conhecimento se dá em nós e nos apropriamos de uma verdade, adquirimos a segurança subjetiva.
Nesse caso, certeza depende da vontade, está ligada ao crer ou não crer. A certeza ainda corresponde a esse sentido ao termo inglês certitude e ao espanhol certidumbre.
Lembremos que o conhecimento pode-se dar pela razão sem passar pelo crivo dos cinco sentidos, nem por isso, trata-se de crença. É o que ocorre, por exemplo, com a pretensão de se transmitir ideias racionais sobre entes inanimados como direito, sociedade, instituições e normas jurídicas. É a dificuldade que se tem quando se pretende responder à questão: a que objeto esses termos se referem? Não se nega a existência do fenômeno jurídico, nem a existência das normas, inclusive porque, no cotidiano, elas constantemente interferem nas relações sociais. A questão, então é: pode-se cogitar em certeza jurídica?
Tal questionamento envolve o problema da forma como as normas e instituições jurídicas são compreendidas, conhecidas, bem como se pode cogitar em verdade jurídica. Preocupamo-nos apenas a primeira ideia, como se conhecer que certas manifestações podem ser classificadas com a expressão fenômeno jurídico.
Afinal, a concepção moderna de direito pretende-se reduzir a forma de manifestação do fenômeno jurídico às normas estatais. Certeza do direito, portanto, absorve uma conotação valorativa: o poder de confiar no direito.
Dentro da concepção dogmática do direito, essa confiança se dá porque, tendo validez, as normas estatais guiam os comportamentos sociais. É essa a magna promessa do Estado Moderno e, com o Estado de Direito há certeza jurídica, pois todos conhecem seus direitos, porque positivados e postos pelo Estado.
Desta forma, constrói-se a expectativa do comportamento alheio, ao possibilitar certo cálculo de probabilidade do agir social, o que significa poder-se prever as ações alheias. A tese, portanto, divulgada é: conhecer o conteúdo das normas jurídicas corresponde a ter uma certeza de como agir, atuar e se comportar.
Quanto ao vocábulo segurança, nota-se que este envolve uma ideia de garantia contra o acaso. Tranquilidade psicológica que resulta da certeza de que não há qualquer perigo a temer ou de que se está protegido contra as ameaças.
Tendo por segurança social o conjunto das medidas coletivas e legais que têm por objetivo garantir os indivíduos contra riscos, pode-se concluir que a segurança jurídica provém do fenômeno da positivação do direito, com elaboração de normas jurídicas escritas, postas pelo poder competente.
A segurança é, portanto, resultante das normas e instituições jurídicas, isto é, resultado de forma como vêm funcionando essas normas por meio das instituições. Segurança e certeza, portanto, não se opõem, antes de interdependentes.
Essa correlação conduz à ideia de que, por existirem as normas jurídicas estatais, pode-se guiar o como agir, bem como prever e exigir comportamentos sociais alheios, ou seja, objetivam-se expectativas de comportamentos, forma-se uma padronização social e edifica-se um ideal mínimo de ética.
Diz-se, então, assegurados os direitos porque positivados pelo Estado. Daí, constroem-se inúmeras teorias, se não explicativas, legitimadoras do discurso dogmático.
Na visão sistêmica da teoria da decisão, para a qual as expectativas são estruturas, nos permite averiguar que o sistema jurídico reduz, porque controlada, a perspectiva de frustração, significa afirmar, que o direito posto pelo Estado imprime uma pauta ordenadora de comportamentos.
Os destinatários das normas e instituições jurídicas, por isso, adquirem uma certeza, ao escolher o como agir, na medida em que conhecem os conteúdos dos textos positivados pelo Estado. E, a segurança é a garantia contra a imprevisão dos atos sociais, obtém-se na medida em que o sistema jurídico funciona com eficiência.
Evidencia-se, portanto, a relação entre a certeza e a segurança. Não basta haver leis, indispensável é a certeza de que estas serão aplicadas, pois assim, se formará a segurança. Por isso veio Maquiavel aconselhar, in litteris: "quando vou a um país, não me preocupo quais são suas leis, mas como elas são aplicadas".
Em doutrina, assiste-se o debate travado entre Flávio Lopes de Oñate e Francesco Carnelutti que discutem sobre a atribuição de certeza ao direito, inclusive em face da relação entre esta e a segurança.
Para Oñate, a certeza é garantia certa e inequívoca da ação, nasce diretamente da lei, a qual faz cada um saber o que pode querer.
A objetividade da certeza provém da objetividade da lei, pois nesta derradeira a relação entre sujeitos realiza-se objetivamente.
Por sua vez, Carnelutti defende que essa certeza, tal como defende Oñate, não existe. Em face de inúmeras leis, as pessoas não chegam a conhecer o que podem e têm de querer, bem como não têm como prever os comportamentos sociais, principalmente, devido às mutações das leis. A certeza, caso se insista em concordar com sua existência, impõe um pesado custo, o de sacrificar a justiça.
Conceber o direito como sistema de normas capazes de controlar as ações sociais implica falar em expectativas de comportamentos sociais, ou seja, tornar o agir de outrem previsível. Respaldada nessa ideia, a visão dogmática do direito encontra argumentos para sustentar suas teorias e refutar quaisquer perspectivas críticas.
Para isso, estabelece-se como base para sustentar suas argumentações a redução do mundo jurídico ao direito estatal e, assim, fundamenta-se o chavão de qua apenas essa forma de manifestação jurídica é mecanismo hábil à contenção dos conflitos sociais, por isso, estabelecer e manter a ordem social.
Os adeptos dessa doutrina formulam inúmeros conceitos, porém, despreocupados em atrelá-los aos conteúdos objetivos, e são transmissíveis aos terceiros com mínimo de precisão, de forma a não permitir interpretações díspares, elaboram então vazios discursos de conteúdo funcional, por concretizarem a legitimidade de institutos jurídicos estatais, assumindo a qualidade de última palavra ao convencimento num discurso da verdade intangível.
Sob o comando do direito estatal, edificam-se teorias com aparência de única saída à construção do que se convencionou chamar ordem social, para e em nome da qual justifica-se o emprego da violência institucionalizada, o monopólio da violência legítima por meio da associação política e divulga-se a ideologia de que só aumentando o emprego dessa forma de violência na qual quanto maior o nível de brutalidade melhor, inibem-se os deturpadores da ordem social.
Em nome dessa ordem, constrói-se uma rede ideológica pró-violência e instiga-se a população a clamar por sua aplicação. Daí, a população suplica e vibra, por exemplo, pela institucionalização da pena de morte imbuída no ânimo da ignorância (da falta de informação) dos vários fatores intervenientes ao emprego da violência oficial, a estatal.
Trata-se do fenômeno da positivação do direito, quando o Estado vai consolidando seu poder, fins do século XVIII e início do XIX, passando a prevalecer a prévia fixação das regras do jogo, pois o Estado positiva as alternativas que lhe parecem importantes, isto é, decide quais são as relevantes entre as infinitas possibilidades, daí que, uma vez estabelecidas estas regras, é de menor importância se a base é a Vontade Geral ou os desígnios do soberano.
Nesse contexto, inibindo-se a crítica, diante da discordância entre ideias, tachando de anarquista todo aquele que se propõe a travar discussões mais complexas sobre os problemas jurídicos.
É o que se dá com aqueles que não acatam as ideias, tornando sagradas quem as elaboras, como os que se propõem a verificar se o sistema opera ou não no marco da programação normativa e dogmática e, em especial, se as decisões judicias são de fato dogmaticamente pautadas e, por extensão, igualitárias, seguras e justas.
Essa falta de abertura à dimensão crítica provoca a ilusão da segurança, ilusão essa edificada devido à postura de donos da verdade, própria da maioria dos juristas, culminando na exclusão de inúmeros fatores aos raciocínios jurídicos.
Na perspectiva, portanto, de o direito estatal ser o único instrumento capaz de fornecer a almejada segurança social, por deter uma certeza, defende-se que as previsões do sistema jurídico são impostas como único meio de eliminar o subjetivismo nas decisões judiciais, pois contêm critérios rígidos, objetivos e não-valorativos capazes de oferecer um caminho seguro à escolha da solução do caso concreto.
Refiro-me denominado ciclo dogmático, com duplo grau de abstração da dogmática jurídica, ou seja, só é aceito por jurídica a argumentação que tiver por ponto de partida as normas emanadas pelo Estado.
Não se pode ignorar que para a segurança se faz necessária a eficácia das normas estatais, isto é, seu funcionamento perante os conflitos sociais, como meio de inibi-los. Só cumprindo essa missão é que se pode atribuir ao direito estatal a função de guia de comportamento e previsão de expectativas.
A certeza, entretanto, promana do conhecimento e a segurança advém da experiência, porque, baseado no que se conhece, obtém-se garantia na escolha de como agir, o que envolve a experiência, a vivência de uma prática empírica.
Max Weber conceituou a ação social como aquela que detém um sentido, e assim distingui-la das ações simplesmente reativas. Estas últimas estão calcadas em impulsos sentimentais, por isso, desprovidas de reflexões anteriores à sua realização; seriam as ações irracionais. É assim porque, na concepção de Weber, uma ação só é social se tem um sentido, ou seja, é orientada pela ação dos outros.
Weber apontou quatro tipos ideais de ação social: a ação estritamente tradicional, quando reage-se segundo os estímulos habituais, da tradição cultural; a ação estritamente afetiva, quando orienta-se pela racionalidade axiológica, ou seja, age-se emotivamente condicionado mediante uma descarga consciente em um estado sentimental, como se dá quando se extrema uma raiva, um rancor, imediatamente ao senti-la; a ação racionalmente orientada com respeito aos valores, quando a ação é orientada por convicções pessoais sobre o que deve ser, todavia, sem considerar as suas consequências; elabora-se a ação buscando satisfazer afetivamente necessidades atuais; tem-se esse tipo de ação quando planeja-se a forma de agir, mas não se põe nesse cálculo a reação, a ação alheia, como ocorre na vingança, com a beatitude contemplativa, como querer dar vazão às paixões; por fim, a ação racionalmente orientada com respeito aos fins, aquela planejada racionalmente visando atingir os fins; nesta calculam-se os meios e as consequências da ação, preocupa-se com possíveis formas de reações alheias.
Em síntese, da certeza forma-se a segurança. E, no âmbito jurídico: da certeza do direito resulta a segurança social. Para tanto é de se considerar não apenas as previsões normativas estatais, mas todos os elementos imbuídos no processo decisório.
Afinal, o chamado ciclo dogmático, por meio do duplo grau de abstração da dogmática jurídica, implica em aceitarem-se apenas as normas jurídicas por objeto da ciência do direito; reduz-se o conhecimento dos juristas aos preceitos legais.
Nesta ideologia, divulga-se ao senso comum a noção de que apenas os agentes jurídicos, porque conhecedores do conteúdo das normas jurídicas, são aptos a tomar as decisões justas, porque jurídicas.
Pretende-se, assim, legitimar as decisões judiciais e sustentar a tese da eliminação do arbítrio nas decisões jurídicas. Esse ciclo resulta em disparidade, no afastamento do direito e sociedade, pois o conhecimento do conteúdo das normas jurídicas restrito a esses agentes impede a formação de uma certeza, na população, em sua escolha de como agir.
Esse corte traz ao funcionamento do direito estatal, por meio do processo judicial inúmeras consequências sociais, entre estas o fato de que à sociedade resta perceber a aparência, um imaginário jurídico, culminando na desmoralização do direito estatal.
Para o direito estatal servir à segurança social, faz-se imprescindível a existência e funcionamento eficaz das instituições jurídicas. Perceba-se que a aporia não está na instituição do direito estatal, mas nas organizações responsáveis pelo funcionamento dessa forma de manifestação do fenômeno jurídico social.
Só à guisa de exemplificação, entre os dogmas jurídicos reconhecidos no direito brasileiro que garantem a segurança social, temos: o princípio de que a ignorância do conteúdo da norma não exime de seu cumprimento (artigo 3º LICC); a irretroatividade da lei (artigo 6º da LICC); coisa julgada (artigo 6º, §3º da LICC) e artigos 467 e seguintes do CPC/73; o direito adquirido (artigo 5º, XXXVI da CF).
Acrescente-se: a fundamentação da sentença, artigos 458, II do CPC/73 e artigos 381, 386 e 387 do CPP, o livre convencimento do juiz (artigo 131 CPC) e a obrigatoriedade de proferir julgamentos (artigo 126 do CPC/73).
Inúmeros fatores interferem na construção de uma certeza jurídica, como é o caso dos problemas provenientes da interpretação dos textos legais, como são evidenciados por meio dos estudos de linguística jurídica.
Para abordar a questão da certeza jurídica, reportamo-nos à aplicação do artigo 267, III do CPC/1973, como possível fundamentação da extinção dos processos de execução.
Juízes diferentes proferem decisões diferentes mesmo para casos concretos análogos. Porque o próprio direito deixa aos intérpretes e aplicadores a função de decidir, ao que se chama de situação de tomada de decisão, ou simplesmente, situação de decisão.
Diante da situação de decisão, outra saída não há, que a construção subjetiva do intérprete ou aplicador da lei, porém, baseada em argumento plausível. Essa é a exigência: haver uma argumentação convincente e não o reconhecimento de direitos preestabelecidos pelo Estado.
Essa subjetividade, todavia, não se confunde com arbítrio, decisionismo, decisão baseada em mera especulação de opinião pessoa, conforme se dá no célebre "achismo".
O problema do conteúdo do termo verdade. Interessa-nos evidenciar que, mesmo limitada aos autos processuais dos casos concretos, a atividade cognitiva dos magistrados não se restringe aos textos legais tais como as normas jurídicas, as doutrinas e as jurisprudências.
Há a impossibilidade empírica de o magistrado conhecer todas as nuanças envolvidas nos casos concretos, nem como tecer as minúcias de cada um desses casos concretos.
Não só à falta de tempo, mas diante de inúmeros processos judiciais e ao fato espaço, impossibilidade física de estar em todo lugar, onipresença, incluem-se também fatores como filtragem de informações realizada deliberadamente pelas partes processuais.
É o que ocorre diante da impossibilidade de se aferir se a testemunha está dizendo a verdade, no sentido de exprimir o que realmente vivenciou ou se trata de uma falsidade deliberada, como em Hannah Arendt, essas situações levam os magistrados a inferências baseadas em experiências passadas, prejulgando, pois nem sempre há como detectar se o depoimento e está baseado em preparos prévios da testemunha, cujos ensaios tanto servem para definir o que dizer e o que omitir, quanto para formular a criação de dados fáticos.
Entre os institutos jurídicos à limitação do conhecimento dos magistrados no exercício da profissão jurisdicional no exercício da profissão jurisdicional tem-se que nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais, conforme prelecionava o art. 2º do CPC/73; O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte, artigo 128 CPC/73.
Em conclusão sustentável é que o processo judicial é jogo em que não interessa trazer à tona a verdade real, elucidar as questões fáticas, esclarecer a situação tal qual ocorreu, a moral jurídica, em pauta na ideologia dominante, repousa em proteger os interesses do cliente, não importando como, nem os meios utilizados.
O positivismo é caracterizado pela sistematicidade e pela plenitude tendo como objetivo a certeza jurídica e a previsibilidade. Note-se que aqui estão os requisitos da abrangência e da clareza organizacional citados por Max Weber para a concretização da racionalidade jurídica formal.
O ideal da supremacia do legislativo era o de que a lei e os códigos deveriam ser tão claros e completos que apenas poderiam gerar uma única interpretação, inquestionavelmente correta (In: CAPPELLETTI, Mauro. Repudiando Montesquieu. A expressão de legitimidade da justiça constitucional. Revista da Faculdade de Direito UFRS, vol. 20. p.271).
As normas vistas como elementos que dão forma a uma obra jurídica coerente dotada de clareza, conferem ao juiz a possibilidade de extrair os princípios que as sustentam para identificar diante da lacuna, a regra de solução do caso concreto em coerência com o sistema de modo que a sistematicidade guarda relação não só com a plenitude, mas também com a previsibilidade.
O paradigma liberal do direito expressou, até as primeiras décadas do século XX, um consenso de fundo muito difundido ente os especialistas, preparando assim, um contexto de máximas de interpretação não questionadas, para a aplicação do direito.
Essa circunstância explica por que muitos pensaram que o direito poderia ser aplicado a seu tempo, sem o recurso a princípios necessitados de interpretação, ou ao conceito-chave duvidosos. (In: HABERMAS, Jürgen[9]. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p.313).
Na Idade liberal que se encerra em 1914 entre os esplendores da grande guerra, o sistema normativo gravita completamente em torno ao Código Civil. O Código Civil de 1865 contém os princípios gerais que orientam e servem para colmatar as lacunas do ordenamento.
Lembremos que lacuna significa falta, omissão, vácuo e também falha. O direito procura regular as condutas humanas a fim de pacificar o convívio em sociedade. Se há um fato para o qual o ordenamento não dá tratamento pode-se afirmar que, a princípio, configurada está a deficiência normativa. A ressalva justifica-se porque a ideia de omissão, de falha traz embutido um juízo de valor. Saber se o direito haveria de regular certo ato ou fato implica uma estimativa acerca da relevância deste acontecimento para realização das finalidades do direito.
Persiste, para alguns doutrinadores, o mesmo problema inicial, consistente na identificação da existência de uma lacuna, pressuposto do uso dos meios de integração.
Enfim, trata-se do limite de uma questão hermenêutica, cabendo adiantar que, embora houvesse, no direito romano clássico, a ideia da necessidade da integração das omissões da lei (Pompônio, D. 19.5.11; Palpiano, D. 22.5.13) é a partir do período do direito racional, no qual se dá a distinção entre direito e ciência, que a reflexão sobre a lacuna assume propriamente um caráter aporético.
As questões aporéticas representam bem a dificuldade do ponto de vista da racionalidade e, abrem-se para a disputas que se põem no campo da retórica, da argumentação reabilitada pelo direito na segunda metade do século XX, graças à elaboração dos chamados juristas filósofos.
Enquanto a demonstração se desenvolve no pressuposto da existência de um único sistema, a argumentação tem curso no contexto de diversos sistemas, enquanto a demonstração se vale da noção de verdade, a argumentação recorre ao verossímil, enquanto a demonstração labora com conclusões necessárias, a argumentação opera com as opiniões, por fim, enquanto a demonstração rejeita a ideia de contradição, a argumentação procura conciliar os opostos.
A dogma da unidade e coerência do ordenamento jurídico, que se destacou com a Escola da Exegese, ganhando novos adeptos com a famosa jurisprudência dos conceitos, tem exercido, ainda atualmente, grande influência sobre o pensamento jurídico.
E, as mudanças e progressos por que passou a sociedade a partir do século XIX, fruto do processo de industrialização, não tardaram a apontar o idealismo destas construções e, ao mesmo tempo, sua operacionalidade.
Com fulcro na ideia de um legislador racional, da ideologia e da lei e, ainda, na suficiência do ordenamento jurídico, a dogmática jurídica opera a noção de completude do direito e que vai ao encontro de dois valores essenciais da cultural liberal-burguesa, segurança e certeza jurídica. E, desde as obras de Ehrlich e Geny, este tipo de concepção começou a ser questionado.
Isto é, não se tratava mais de se debater sobre a existência de várias normas, regulando a mesma situação, dificuldade da qual a velha jurisprudência romana, utilizando critérios voltados à solução de antinomia dava conta. De outro viés, discutia-se a possibilidade de inexistência de uma norma para regular certa situação.
François Geny e Ehrlich contestando a chamada plenitude lógica do ordenamento jurídico, sustentaram que o direito positivo tem lacunas materiais que somente podem ser preenchidas pela livre investigação científica e pela livre interpretação do direito, respectivamente.
Com efeito, à medida que as relações sociais se tornaram cada vez mais complexas, foi possível perceber a insuficiência dos códigos diante da realidade.
Ademais, a organização dos sindicatos, dos grupos de pressão, dos pequenos partidos políticos, àqueles que se ocupavam em estabelecer regras de conduta ou em interpretá-las, uma verdade inexorável: o direito é fato social, que não pode ser enquadrado em rígidas molduras do ordenamento jurídico traçado pelo Estado.
E, assim, nasceu a Escola da Livre Investigação Científica, cujas relações com a sociologia jurídica são bastante íntimas. É preciso adequar o direito às novas necessidades sociais, Geny contrapôs-se à ideia de um ordenamento jurídico completo, bastante em si mesmo.
Seu método de interpretação pode ser sintetizado assim: primeiro, caberia ao juiz indagar da existência da norma expressa a ser aplicada ao caso concreto; na falta, o juiz deveria recorrer aos costumes, na falta desses, à autoridade e à tradição, isto é, à doutrina e à jurisprudência atuais ou antigas, respectivamente, inexistindo, estaria aberto, então, o caminho à livre investigação científica do direito.
A Livre Investigação, contudo, não se tratava de criação arbitrária e, sim, condicionada a certos princípios controláveis pela jurisprudência e pela doutrina. A investigação era livre à medida em que não se submetia às normas. Era científica porque recorria às ciências afins e aos dados objetivos e controláveis, a exemplo, dos princípios da razão, do direito natural, das normas e princípios de lógica e, etc.
A reação não tardou a comparecer. Pois, de fato, existem doutrinadores que negam peremptoriamente a existência de lacunas no ordenamento jurídica, mediante as fundamentações mais diversas. É o caso de Zitelmann, Enneccerus, Stammler, Donati, Brunetti, Santi Romano, Del Vecchio, Recaséns Siches, Kelsen, Garcia Maynez e Bergbohm.
E a resposta à crítica ao direito livre, surgiu em 1892, com a obra de Karl Bergbohm intitulada Jurisprudenz und Rechtphilosophie. Onde o doutrinador pontificou que até onde o direito alcança com as suas normas, inexiste a lacuna. E, a partir dessa concepção, surgiu a noção de um espaço jurídico vazio.
E, que consiste em admitir que toda norma jurídica representa uma limitação à livre atividade humana, fora de esfera regulada pelo direito, o homem está livre para fazer o que quiser.
E, sob o ponto de vista jurídico, existem duas esferas do comportamento humano, a saber: uma onde estaria vinculado por normas jurídicas, ou seja, o espaço jurídico cheio e, em outra esfera, o homem estaria livre para agir como melhor lhe aprouvesse.
Portanto, ou há vínculo jurídico, ou há a absoluta liberdade ou tertium non datur. O espaço vazio não poderia, portanto, ser encarado como lacuna, porquanto represente um limite natural do ordenamento, e não uma deficiência.
Já Zitelmann, Donati e Brunetti partem de um ponto exatamente oposto. Enquanto Bergbohm sustentava que a ausência de lacunas pode ser explicava pela ausência de direito (isto é, pelo fato de que, onde inexiste ordenamento jurídico, falta o próprio direito), os primeiros doutrinadores esclarecem que o direito nunca falta. De fato, Zitelmann, Donati e Brunetti partindo da distinção entre lei e ordenamento jurídico, sustentam que é possível encontrar lacunas no ordenamento legislativo, mas não no ordenamento jurídico. A esta caberá corrigir as imperfeições da lei.
Assim, toda controvérsia submetida à decisão de um tribunal deverá ser resolvida juridicamente. E, dessa perspectiva, chega-se sempre à conclusão de que o direito não tem lacunas porque os vazios da lei devem ser preenchidos pelo juiz não de modo arbitrário, mas por meio de aplicação de princípios jurídicos. Antes disso, em face das deficiências da lei, o direito parece ter lacunas, mas que são colmadas, mostrando-se perfeito.
Endossa esse entendimento Del Vecchio e Recaséns Siches para quem o direito não tem lacunas porque oferece meios para que o julgador possa eliminá-las e, ainda segundo Garcia Maynez, trata-se de aplicar o já conhecido princípio ontológico, formulado por Zitelmann, segundo o qual, "o que não está proibido, está permitido".
E, assim, preenchidos os casos omissos, de acordo com os recursos oferecidos pelo ordenamento jurídico e à disposição do julgador e, mesmo assim, persistindo a ausência de previsão legal para determinada conduta, tem de admitir-se que o comportamento está permitido.
Diante de eventual lacuna é sempre possível recorrer à fonte subsidiária, não emanada do Estado, mas reconhecida no direito natural. A esta devem recorrer os cidadãos e os julgadores, em caso de lacuna no ordenamento jurídico. E, ainda, outra tese, que Donati considerava como intermediária, não é certo afirma que, na ausência de norma, o aplicador possa recorre as fontes diversas do ordenamento legal. No caso, a norma deve ser criada pelo juiz diante de cada caso concreto.
Percebe-se que tanto Bergbohm como Donati opõem-se à seguinte evidência: embora a ausência de norma implique na liberdade de conduta, de modo que até o exercício da violência não se revela ilegítimo, fato é que todas as legislações proíbem a violência.
Observa-se ainda, que a doutrina não se concilia com o caráter exclusivamente estatal do direito e com o princípio da exclusiva soberania do Estado. Sustenta outra tese que não resolve o problema, porque a norma criada pelo juiz, enquanto norma nova, surte efeitos apenas para o futuro. E, dessa forma, em relação ao passado, permanece vigorosa a lacuna.
Por derradeiro, Donatti propõe outra solução, qual seja, a existência de uma norma que, ao mesmo tempo em que regula certas condutas, exclui a possibilidade de qualquer outro comportamento.
E, desta forma, a cada norma particular que se ocupa de determinação situação, corresponderia uma norma geral que, por sua vez, excluiria a aplicação anterior para os demais casos. Nesse modelo, não é possível cogitar em uma esfera vazia do direito, uma vez que, além da norma particular, existe uma série de ações reguladas pelas normas gerais exclusivas.
Segundo Bobbio, existe apenas sentido na alusão à completude, caso parta do pressuposto de que o julgador está obrigado a atuar em todas as controvérsias com base em uma norma pertencente ao sistema jurídico. Entende que se o julgador estiver autorizado a julgar segundo a equidade, o problema da completude nem se apresenta.
Todavia, tal pressuposto não resolve a polêmica, e com fulcro nas divergências doutrinárias, abre-se uma discussão ainda maior. Que envolve a própria concepção de sistema jurídico. Lembremos que para Zitelmann e para Donatti, por exemplo, o sistema jurídico não se limita ao ordenamento legal.
E, de outro viés, mesmo para aqueles que reduzem o direito à lei, a simples existência de uma norma legislada e positivada, que suprisse a eventual omissão do ordenamento, seria o suficiente para comprovar a autossuficiência do sistema jurídico.
É o que acontece em nosso direito pátrio, porquanto a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro remete o juiz à aplicação de analogia, dos costumes e os princípios gerais de direito. Então, essa norma serve à noção de completude do ordenamento jurídico.
Quanto a ausência de critérios para preencher a eventual omissão do ordenamento jurídico, o que alguns doutrinadores chamam de lacuna de segunda grau, costuma-se responder com a possibilidade de colmatação pelo próprio juiz, caso a caso. Esta é a posição defendida por Zitelmann, Del Vecchio e Siches.
Tais propostas foram objeto de crítica de Donatti. que esclareceu que o fato de o juiz decidir a questão que lhe é submetida, seja pela procedência ou improcedência, não autoriza afirmar que inexistem as lacunas. Afinal, tal entendimento confunde a existência de casos não regulados pelo ordenamento e, aí a identificação da lacuna com a constatação de que há órgãos que podem suprir a omissão.
Aqueles que se colocam nessa posição, não negam a existência de lacunas normativas, limitando-se a afirmar que há técnica para preenchê-las.
Karl Larenz recorrendo à noção de espaço juridicamente livre que também admite a existência de lacunas no ordenamento jurídico, apontando para as mesmas dificuldades teóricas, esclareceu que na hipótese de espaço juridicamente livre, não sujeito a uma regulação, ocorre, segundo a convicção social variável, certas matérias nem sempre merecem ser apreciadas pelo direito, mas somente pela moral.
Diferente é a situação das lacunas, que podem representar até mesmo um silêncio eloquente da lei. Isto é, nestes casos, resta claro que o legislador não desejou regular a questão, ou porque a matéria é nova, ou em razão de parecer-lhe útil reservar a solução para a construção jurisprudencial, à luz do caso concreto. Pode acontecer, também, nos casos de enumeração taxativa, por exemplo, que a ausência de disposição queira indicar que o caso não se subsume àquela hipótese legal.
A ideia de espaço jurídico vazio contrapõe a norma geral exclusiva. Portanto, é uma tese vulnerável, conforme as críticas de Bobbio. É que no ordenamento jurídico não existem apenas normas particulares inclusivas e uma correlata norma geral exclusiva.
Existem, também, as normas gerais inclusivas, a exemplo daquelas que permitem ao julgador na hipótese de ausência de previsão legal recorrer à analogia. A função da norma geral inclusiva é regular os casos não compreendidos na norma particular, mas parecidos com aqueles que estão na esfera de sua abrangência.
Portanto, diante da lacuna, caso se aplique a norma geral inclusiva, o caso não regulado será resolvido de forma similar à hipótese prevista na norma. Já por outro viés, se o intérprete recorrer à norma geral exclusiva, o caso não regulado será solucionado de forma diferente, ou seja, a esta não será garantido o mesmo tratamento jurídico previsto para a hipótese legal semelhante.
E, na base da escolha entre a aplicação de uma ou outra norma resta a indagação quanto à similitude entre o caso concreto regulado e o não regulado e, mais, a indagação acerca da relevância da semelhança existente entre os casos, a par da indagação acerca da existência de dessemelhanças irrelevantes para o estabelecimento da analogia.
Concluiu Bobbio que a lacuna remanesce, pois que consista precisamente na ausência de uma regra que permita acolher uma entre as duas soluções, pelo menos em bases racionais.
É conhecida a regra do processo civil brasileiro segundo a qual, na falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece (art. 375 do CPC[10]). O dispositivo versa matéria probatória. Examinando o Código de Processo Penal brasileiro não encontramos disposição semelhante. Seria o caso de indagar se a previsão normativa é aplicável também à apreciação da prova criminal.
Se aplicássemos a tese da norma geral exclusiva, poderíamos afirmar que não. De outra forma, ao aplicar a norma geral inclusiva, chegaríamos à conclusão oposta.
Outra não é a dificuldade de uma teoria geral do processo, à medida que a aplicação de normas de uma determinada codificação a codificação diversa pressupõe a valoração do intérprete. Constata-se, pois, que um ordenamento jurídico, apesar da norma geral exclusiva, pode ser incompleto. No caso do processo penal brasileiro, admite-se a analogia, amplamente, por disposição expressa (art. 3º do CPP).
É possível chegar à noção de uma incompletude insatisfatória. Para além da falta de uma norma válida a ser aplicada, ou de critérios válidos para decidir qual norma deve ser aplicada, há uma referência à falta de uma norma justa, ou seja, de uma norma que, de acordo com as intenções do aplicador, deveria existir.
Essa ideia serviu, em um primeiro momento, à tese daqueles que sustentaram a completude do ordenamento jurídico. Quem se ocupa do tema é Brunetti, ao distinguir as lacunas de iure condito e de iure condendo.
O doutrinador esclareceu que a noção de incompletude do ordenamento jurídico somente aparece quando se o compara com um ordenamento jurídico ideal. Mas, então, as lacunas que surgem não revelam propriamente uma incompletude, pelo menos no sentido que possa interessar ao jurista. Trata-se, em verdade, de lacunas ideológicas.
A forma e o desenvolvimento do Direito decorrem dos costumes e relações existentes em uma determinada sociedade. Assim, cada país adota um sistema jurídico específico que rege o ordenamento jurídico e orienta a sua aplicação. Hoje os dois sistemas vigentes são o common law e o civil law, que contam com características bastante diferentes.
Enquanto o common law[11] é um sistema baseado em decisões proferidas pelos Tribunais, o civil law é um sistema onde a codificação do Direito e a interpretação da lei orientam a atuação do operador do Direito.
Com a globalização, a aplicação dos dois sistemas se tornou algo flexível. Assim, é comum encontrar países que, embora sigam um sistema de forma predominante, contam com regras ou institutos trazidos de outros sistemas. Esse é o caso do ordenamento jurídico brasileiro que, embora siga o sistema do civil law possui alguns institutos trazidos do common law.
No post de hoje vamos esclarecer como funciona cada sistema e quais são as principais diferenças entre a civil law[12] e a common law. Embora esse seja um assunto mais teórico, conhecer a lógica por trás de cada sistema traz ao advogado uma maior compreensão sobre as leis e regras que regem o nosso ordenamento jurídico.
A tradição jurídica romano-germânica tem suas origens no século XII e XIII no período do Renascimento da Europa Ocidental. Neste exato momento, em que as cidades e o comércio ganharam nova organização, também se intensificou o ideal de que somente o direito pode assegurar a ordem e a segurança necessárias ao progresso.
É a separação entre o direito e a religião, demonstrando a raiz da autonomia do direito que compõem até hoje uma das características da civilização ocidental.
A partir deste pensamento renascentista, as universidades ganharam destaque no estudo do direito, inicialmente na Itália com a Universidade de Bolonha, cuja influência chegou até o direito aplicado pelos tribunais europeus.
Cumpre salientar que a base do direito nas universidades é formada pelo direito romano em conjunto com o direito canônico[13], deixando em segundo plano os direitos próprios de cada nação, uma vez que até o século XX, finalmente marcado pelas codificações nacionais, o direito romano era o ensino básico.
Os romanos foram os primeiros a organizar o direito, extraindo a regra jurídica dos casos concretos cotidianos, identificando sua classificação e, em seguida, aplicando aos novos casos.
No direito romano clássico, a jurisprudência se apresenta como interpretação e constitui uma atividade criadora, mas sempre num sentido derivado e não originário. A ordem legal se apresenta como um limite externo do direito desenvolvido jurisprudencialmente.
Esta nova cultura jurídica romanística passou, então, a ocupar a posição de protagonista a partir da recomposição do Digesto pelos estudos da Universidade de Bolonha.
Deste método de análise textual exegético nasceu a primeira literatura jurídica em forma de anotações explicativas ao texto romano, denominadas glosas, atribuindo aos juristas o nome de glosadores.
Por isso, o Estado Romano foi fundamental para a história do direito que hoje vigora e por muitos doutrinadores é apontado como marco divisório nos processos de formação dos sistemas de civil law[14] e common law.
Pois desde o século XII em que o Corpus Iuris Civilis foi encontrado e os textos romanos passaram a ser estudados nas universidades, foi incorporado não só o conteúdo terminológico e conceitual, mas também a técnica própria de raciocínio jurídico para a formação das soluções jurídicas, tornando o direito o fruto de um intenso trabalho intelectual, distanciando-se do pensamento do homem comum.
Entretanto, os acontecimentos em França no século XIX, relacionados aos abusos excessivos de privilégios dos nobres, do clero e também dos magistrados, resultaram na Revolução Francesa, que foi o grande marco histórico responsável pela consolidação de um novo modelo jurídico.
Após a dita Revolução, com a queda da monarquia absolutista e ascensão da burguesia e do parlamentarismo ao poder, houve o surgimento de um novo direito, alheio às antigas concepções da monarquia e que contrariava os magistrados ainda aliados ao antigo regime.
Neste contexto, surgiu a necessidade de controlar a atuação judicial, limitando o trabalho dos juízes apenas à aplicação literal do texto legal.
Para a revolução francesa, a lei seria indispensável para a realização da liberdade e da igualdade. Por este motivo, entendeu-se que a certeza jurídica seria indispensável diante das decisões judiciais, uma vez que, caso os juízes pudessem produzir decisões destoantes da lei, os propósitos revolucionários estariam perdidos ou seriam inalcançáveis.
A certeza do direito estaria na impossibilidade de o juiz interpretar a lei, ou, melhor dizendo, na própria lei. Lembre-se que, com a Revolução Francesa, o poder foi transferido ao Parlamento, que não podia confiar no judiciário.
Observa-se que a ruptura com o antigo regime e a instauração de um novo ideal para o direito é a essência deste novo modelo europeu, determinado a desligar-se de sua tradição corrompida para satisfazer as necessidades da sociedade na época.
A lei, neste momento, passou a ter o papel fundamental de representar a vontade do povo, impossibilitando qualquer forma de interpretação, devendo inclusive o magistrado restringir sua decisão ao texto legal.
De acordo com René David a codificação constitui a realização natural da concepção mantida e de toda obra empreendida desde há séculos nas universidades. Entretanto, o doutrinador ressaltou que como todo acontecimento social, trouxe profundas alterações no estudo do direito, apresentando consequências tanto positivas como negativas.
O processo de codificação embalou e dinamizou a expansão do direito romano-germânico na Europa e fora dela, contribuindo também para a unidade do sistema.
No entanto, também apresentou consequências desastrosas, pois os juristas passaram a se concentrar somente em seus códigos, abandonando a visão que outrora tinham do direito, baseado em normas de condutas sociais, e se conformando com o positivismo legislativo.
O direito demonstrou ser história viva, por isso consiste em ato de pura presunção a ideia de aprisioná-lo em textos, ainda que bem escritos. Ademais, Paolo Grossi esclarece que a codificação exerce função de controle e vinculação ao poder político, inclusive para o direito privado caracterizado pela liberalidade das partes, pois traz de maneira declarada a estatalidade do direito[15].
Portanto, o Estado firmou-se como único ente capaz de transformar em jurídica uma norma estatal, situando o direito unicamente como voz do Estado.
Contudo, Marinoni ressalta que o fenômeno na codificação em si não é o responsável pela distinção entre common law e civil law. O common law também tem intensa produção legislativa, entretanto, a diferença entre os dois sistemas está na importância que se dá para as leis e códigos em cada um deles.
Destaca-se que não é o fato de ter códigos ou não que define o modelo jurídico adotado, a distinção é feita a partir da concepção de código que cada um possui.
Por exemplo, no common law os códigos não pretendem coibir a interpretação da lei, razão pela qual, se houver um conflito entre uma lei codificada e uma criada pela common law, ficará a encargo do juiz interpretar qual das duas deve ser aplicada.
O sistema jurídico adotado em nosso país define que a lei por si só é suficiente e plenamente aplicável, limitando qualquer interpretação do juiz no seu processo de aplicação aos casos concretos.
O referido caráter legicêntrico foi positivado no ordenamento jurídico pela Constituição Federal brasileira, artigo 5º, II, ao estabelecer que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Conclui-se, desta forma, que o modelo brasileiro, inserido na tradição do civil law, tem seu direito vinculado à produção legislativa.
A grande peculiaridade do sistema brasileiro está no controle de constitucionalidade[16], que pode ser realizado por qualquer juiz ou tribunal e não somente por um tribunal constitucional. No Brasil é conferido à magistratura ordinária, inclusive ao juiz de primeiro grau o poder de negar a aplicação de uma lei.
Isto ocorre quando o magistrado se depara com o caso concreto, no qual a lei está em desacordo com a Constituição Federal.
De acordo com Luiz Guilherme Marinoni, neste aspecto o direito brasileiro muito se aproxima do sistema norte-americano, com a diferença que o juiz americano está vinculado aos precedentes[17] e a decisão de sua Suprema Corte, pois caso contrário, põe em risco a unificação da interpretação das leis infraconstitucionais, bem como todo significado atribuído a sua Constituição Federal.