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Associações de socorro mútuo: um locus da colisão entre o princípio da liberdade associativa e a proteção ao consumidor

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Agenda 16/08/2022 às 17:59

4. UM DIÁLOGO ENTRE A LIBERDADE ASSOCIATIVA E PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR

O Artigo 5º, XVII da Constituição Federal diz que deve ser plena a liberdade de associação.

A liberdade de associação é um direito fundamental, previsto na Constituição Federal, José Eduardo Sabo Paes (2017, p. 10) diz que O direito de associação é um direito público subjetivo a permitir a união voluntária de algumas ou várias pessoas, por tempo indeterminado, com o fim de alcançar objetivos lícitos e sociais. Assim, a liberdade de associação é um direito individual de índole coletiva, pois o indivíduo é dado a liberdade de se associar.

Trata-se de texto expresso na constituição, além de ser considerado a liberdade de associação um princípio em nosso ordenamento jurídico.

Veja que a Carta Magna prescreve que é plena a liberdade de associação para fins lícitos e que a fundação de uma associação civil, na forma da lei, independe de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento. Aqui é perceptível a ideia de evitar que grupo de pessoas tenham o seu direito afetado, dado que, como demonstrado, as associações permitem um debate interno e organização de classes as vezes excluídas ou que lutam contra arbitrariedades.

O julgamento da ADI 3045 pelo Supremo Tribunal Federal retrata essa proteção a liberdade de associação:

Diria, até que, sob a égide da vigente Carta Política, intensificou-se o grau de proteção jurídica em torno da liberdade de associação, na medida em que, ao contrário do que dispunha a Carta anterior, nem mesmo durante a vigência do estado de sítio se torna lícito suspender o exercício concreto dessa prerrogativa. O regime constitucional anterior, considerados os mecanismos extraordinários de defesa do Estado, tornava lícito, ao Poder Público, na vigência das medias de emergência, do estado de emergência e do estado de sítio, suspender, temporariamente, o exercício da liberdade de reunião e da liberdade de associação; hoje, porém, tal não mais se revela possível, pois, quer sob égide do estado de defesa, quer sob a égide do estado de sítio, a liberdade de associação mantém-se íntegra a inatingível (CF/88, art. 136,§1º, e art. 139). Revela-se importante assinalar, neste ponto, que a liberdade de associação tem uma dimensão positiva, pois assegura a qualquer pessoa (física ou jurídica) o direito de associar-se e de formar associações. Também possui uma dimensão negativa, pois garante a qualquer pessoa, o direito de não se associar, nem de ser compelida a filiar-se ou a desfiliar-se de determinada entidade. Essa importante prerrogativa constitucional também possui função inibitória, projetando-se sobre o próprio Estado, na medida em que se veda, claramente, ao Poder Público, a possibilidade de interferir na intimidade das associações e, até mesmo, de dissolvê-las, compulsoriamente, a não ser mediante regular processo judicial.

Também nesse trilhar, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.1969/DF2:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO 20.098/99, DO DISTRITO FEDERAL. LIBERDADE DE REUNIÃO E DE MANIFESTAÇÃO PÚBLICA. LIMITAÇÕES. OFENSA AO ART. 5º, XVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. I. A liberdade de reunião e de associação para fins lícitos constitui uma das mais importantes conquistas da civilização, enquanto fundamento das modernas democracias políticas. II. A restrição ao direito de reunião estabelecida pelo Decreto distrital 20.098/99, a toda evidência, mostra-se inadequada, desnecessária e desproporcional quando confrontada com a vontade da Constituição (WillezurVerfassung). III. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do Decreto distrital 20.098/99.

Interessante os levantamentos realizados na votação do Supremo Tribunal Federal na ADI 3045, o qual faz menção a obra de Jorge Miranda em seu Manual de Direito Constitucional, no que diz respeito às Múltiplas dimensões do direito de associação:

I O direito de associação apresenta-se como um direito complexo, com múltiplas dimensões individual e institucional, positiva e negativa, interna externa cada qual com a sua lógica própria, complementares uma das outras e quem um sistema jurídico-constitucional coerente com princípios de liberdade deve desenvolver e harmonizar. II Antes de mais, é um direito individual, positivo e negativo:1.º) O direito de constituir com outrem associações para qualquer fim não contrário à lei penal e o direito de aderir a associações existentes, verificados os pressupostos legais e estatutários e em condições de igualdade;2.º) O direito de não ser coagido a inscrever-se ou permanecer em qualquer associação, ou a pagar quotizações para associação em que não esteja inscrito, e, no limite, o direito de deliberar a dissolução de associação a que pertença. Este direito tem a natureza de liberdade enquanto não implica, para nenhum efeito, a dependência de autorização de qualquer tipo ou de qualquer intervenção administrativa. III Revela-se depois um direito institucional, a liberdade das associações constituídas:1.º) Internamente, o direito de auto-organização, de livre formação dos seus órgãos e da respectiva vontade e de acção em relação aos seus membros;2.º) Externamente , o direito de livre prossecução dos seus fins, incluindo o de filiação ou participação em uniões, federações ou outras organizações de âmbito mais vasto;3.º) Como corolário, a susceptibilidade de personificação se a atribuição de subjetividade jurídica, sem condicionalismos arbitrários ou excessivos, for o meio mais idôneo para tal prossecução de fins;4.º) Como garantias, a vedação de intervenções arbitrárias do poder político; A liberdade ou autonomia interna das associações acarreta a existência de uma vontade geral ou colectiva, o confronto de opiniões para a sua determinação, a distinção de maiorias e minorias. Daí a necessidade de observância do método democrático e das regras em que se consubstancia, ao lado da necessidade de garantia dos direitos dos associados. À lei e aos estatutos cabe prescrever essa regra e essas garantias, circunscrevendo, assim, a actuação dos órgãos associativos, mas não a liberdade de associação (devidamente entendida).IV Na liberdade negativa de associação manifestam-se, talvez mais do noutras zonas, a dimensão individual do direito e a exigência de respeito tanto por aprte do Estado como por parte de quaisquer outras entidades, públicas e privadas (...).Esse respeito não se traduz apenas na não sujeição de quem quer que seja cidadão, trabalhador, consumidor, etc. à filiação automática, por fora de certa qualidade, numa associação, ou na não sujeição a um dever de inscrição. Traduz-se também, pela lógica das coisas e pela própria coerência e autenticidade do sistema jurídico, na não criação de quaisquer desvantagens por não se pertencer a esta ou aquela associação, política, sindical, ou outra.

Além da previsão constitucional, inúmeros Tratados Internacionais tratam do tema. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Pacto de São José da Costa Rica promulgado pelo Decreto n. 678, de 06/11/1992 dispõe:

Artigo 16. Liberdade de associação 1. Todas as pessoas têm o direito de associar-se livremente com fins ideológicos, religiosos, políticos, econômicos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos ou de qualquer outra natureza.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado pelo Decreto n. 592, de 06/06/1992:

ARTIGO 22. 1. Toda pessoa terá o direito de associar-se livremente a outras, inclusive o direito de construir sindicatos e de a eles filiar-se, para a proteção de seus interesses.

A liberdade de associação, depois da Segunda Guerra Mundial ganha força pelo fato de representar uma ferramenta essencial para a democracia e para dignidade da pessoa humana, como prova, os tratados internacionais, os quais tratam como um direito fundamental.

Como visto, não há como negar a importância do direito à liberdade de associação, direito fundamental expressamente previsto na Constituição Federal e Tratado Internacionais. Agir contra tal direito é caminhar contra o Estado Democrático de Direito e princípio da dignidade da pessoa humana:

Frise-se, ainda, que a liberdade de associação presta-se a satisfazer necessidades várias dos indivíduos, aparecendo, ao constitucionalismo atual, como básica para o estado democrático de direito. Os indivíduos se associam para serem ouvidos, concretizando o ideário da democracia participativa. Por essa razão, o direito de associação está intrinsecamente ligado aos preceitos constitucionais de proteção da dignidade da pessoa, de livre iniciativa, da autonomia da vontade e da garantia da liberdade de expressão. Uma associação que deva pedir licença para criticar situações de arbitrariedade terá sua atuação completamente esvaziada; e toda dissolução involuntária de associação depende de decisão judicial transitada em julgado (art. XIX, do art. 5º da CF)3

Trata de um direito natural, a união para realização de objetivos comuns é algo habitual na vida, como exemplo de pessoas que unem esforços para cumprir algo que seria difícil ou impossível de forma individual. Com as dificuldades enfrentadas pelo mundo moderno, a exemplo o individualismo e crescimento do ideal capitalista, a ideia de criar uma associação civil, algo que fiz surgir o sentimento de ajuda ao próximo, solidariedade, pensamento coletivo e sentimento democracia e sempre bem-vindo.

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A própria constituição brasileira prescreve em seu artigo 174, §2º que a lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.

Por outro lado, a proteção do consumidor também está prevista na Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...)

XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

Também, no capítulo que trada dos princípios gerais da atividade econômica, a Constituição Federal determina que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, seguindo, dentre os princípios, a defesa do consumidor (Art. 170, V, CF).

Tanto o direito de associação, quanto o direito do consumidor estão previstos no Art. 5º da Constituição Federal, que diz sobre os direitos e garantias fundamentais. Também, seguem juntos na parte sobre os princípios gerais da atividade econômica, expondo a lei que deve ser assegurado o direito do consumidor e que o Estado deve apoiar e estimular práticas associativas.

A dúvida que gera é sobre que deve prevalecer ou se existe a possibilidade de diálogo? A liberdade de associação ou defesa do consumidor? A norma criada por meio do direito de associação pode ser desconsiderada pela aplicação da proteção do consumidor?

Como apresentado no primeiro capítulo, a norma pode ser dividida em regra e princípio. Por meio da teoria do tudo ou nada, a regra é aplicada ou não, tendo um alcance curto, já os princípios, por ter uma abertura e peso maior, não segue o tudo ou nada, cabe a aplicação e, caso necessário, a sua ponderação.

O princípio, como uma ferramenta de otimizar a aplicação dos direitos fundamentais, serve de pilar. Sobre a indagação feita, quando uma associação estabelece normas internas, essas têm origem da referida liberdade constitucional, mas, se existe o reconhecimento de que esses associados são consumidores, surge a aplicação de dois princípios de ordem fundamental, como construir essa base sem conflito entre eles ou será que um deve ter maior peso do que o outro?

Com relação as cláusulas abusivas, o Código de Defesa do Consumidor dispõe em seu artigo 51 em formato de norma regra uma serie de situações que geram a nulidade. Essa é uma norma de espécie regra, pois não envolve um elevado grau de generalidade, a exemplo o inciso II do referido artigo em que diz que será nula a cláusula que subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já pago, nesta hipótese deve verificar no caso concreto se subtrai ou não do consumidor.

A aplicação é no modelo de Dworkin, o tudo ou nada (all-or-nothing fashion), com duas opções, ou a regra é válida e aplicável ou não é válida e não aplicável ao caso, como mencionado, cabe ao intérprete verificar se subtrai ou não do consumidor a opção de reembolso da quantia já paga.

Robert Alexy (2008, p.92) ensina que o conflito entre regras pode ser resolvido da seguinte forma:

Um conflito entre regras somente pode ser solucionado se se introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras for declarada inválida. Um exemplo para o conflito entre regras que pode ser resolvido por meio da introdução de uma cláusula de exceção é aquele entre a proibição de sair da sala antes que o sinal toque e o dever de deixar a sala se soar o alarme de incêndio

Utilizando o exemplo, poderia existir no ordenamento jurídico uma norma que seja a exceção a hipótese de subtração do consumidor acerca da opção de reembolso de quantia paga ou em conflito com outra essa seja invalidada.

A complexidade tem início quando venha a existir um conflito de regras que foge dessa simples declaração de invalidade ou exceção, aqui cito duas regras, a primeira do Código de Defesa do Consumidor e a segunda do Código Civil:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

(...)

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;

Art. 54. Sob pena de nulidade, o estatuto das associações conterá:

(...)

III - os direitos e deveres dos associados;

No momento de fundação da associação, fica determinado pelo órgão soberano, a assembleia geral, que o associado inadimplemento não terá o direito de gozar das finalidades associativas (Art. 53, III, Código Civil), por outro lado, um associado que estava em atraso diz que tal norma é abusiva e incompatíveis com a boa-fé ou a equidade (Art. 51, IV, Código de Defesa do Consumidor), qual regra deve ser aplicada, já que nenhuma é exceção a outra e também uma não invalida a outra, fato que sugere partir para os princípios.

A partir do exemplo lançado, com a aplicação dos princípios, como mandamento de otimização, surge, em primeiro lugar, como direitos fundamentais, o princípio da liberdade de associação e proteção ao consumidor, sobre o exemplo, não se limita apenas a tais princípios, no entanto, estes são diretamente ligados. Com o conflito, o tema pode ser tratado por meio da aplicação de tais princípios, porém, não evita a possibilidade de colisão, o que surge a necessidade de ponderação.

No caso de colisão entre princípios, a doutrina diz que não é o caso de invalidade de um contra o outro, devendo ser realizada uma análise de peso, em que um cede, entretanto, sem resultar em invalidade, como a norma regra. Sobre essa forma de resolver, Robert Alexy (2008, p. 93) leciona:

As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, conduto, nem que o princípio cedente deva ser declaro inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção

Arremata Robert Alexy (2008, p.94) que os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com maior peso têm precedência. Portanto, em análise do direito de associação e consumir, deve ser analisado o caso concreto para saber qual tem precedência em razão de seu peso, esse trabalho de ponderação é difícil, pois, ambos são considerados garantias fundamentais

Sobre a ponderação, informa Richard Pae Kim e Moacir Menozzi Júnior (2012, p. 167/186):

As normas principiológicas consubstanciam valores e fins muitas vezes distintos, apontando para soluções diversas e contraditórias para um mesmo problema. Logo, com a colisão de princípios jurídicos, pode incidir mais de uma norma sobre o mesmo conjunto de fatos, como o que várias premissas maiores disputam a primazia de aplicabilidade a uma premissa menor. A interpretação jurídica contemporânea, na esteira do neoconstitucionalismo, passou a exigir uma nova técnica para possibilitar a dialética do Direito, em especial, quando necessário para se tutelar interesses conflitantes e que não tivessem respaldo em uma regra que a doutrina acabou construindo como um sistema metodológico da ponderação

O peso o princípio envolve um estudo de seu histórico e análise de seu alcance, no sentido de garantir o interesse social, o que as vezes, não é realizado.

Quanto a aplicação, existe diferentes posições do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, por vezes reconhecendo a norma originada pela liberdade associativa e, em outros momentos, reconhecendo a prevalência do consumidor.

O julgado abaixo, reconheceu a natureza associativa e a aplicação da norma dos associados:

AÇÃO DE RESTITUIÇÃO. ASSOCIAÇÃO E FILIAÇÃO. PROTEÇÃO AUTOMOTIVA. COPARTICIPAÇÃO DOS FILIADOS. MULTA POR DESCUMPRIMENTO. OBRIGATORIEDADE DE CUMPRIMENTO DO ESTATUTO. 1. A despeito das atribuições legais da Superintendência de Seguros Privados SUSEP para a fiscalização das operações de seguro e afins, não se verifica, no caso, a negociação ilegal de seguros por associação sem fins lucrativos instituída com o fim de promover proteção automotiva a seus associados (Enunciado nº 185 III Jornada de Direito Civil). 2. Apesar das semelhanças com o contrato de seguro automobilístico típico, há inegáveis diferenças, visto que os associados dividem os possíveis prejuízos materiais causados aos veículos de sua propriedade num sistema cooperativo de autogestão. 3. A adesão a cooperativa de prestação de serviços enseja a obrigatoriedade de cumprimentos dos dispositivos estatutários, não lhe ensejando direito de pertencendo a esta agir ao arrepio das determinações do estatuto. 4. Ato praticado no exercício regular de um direito, tendo em vista que o benefício tal como foi pago encontra respaldo no Regulamento Interno e Tabela de Valores a Título de Participação. 5. As normas são criadas pelos próprios associados, portanto, a cláusula que prevê o período de seis meses após receber um benefício não é abusiva, uma vez que o Regulamento Interno deve atender aos fins sociais a que se destina e às exigências do bem comum. 6. Não há dúvida de que a autora deverá se submeter às regras estipuladas no Regimento Interno da associação-ré (...)

TJGO. PROCESSO Nº 5098837.71. RECURSO INOMINADO.

Em sentido contrário:

RECURSO INOMINADO. PROTEÇÃO VEICULAR. RELAÇÃO DE CONSUMO. VEÍCULO FURTADO. FURTO SIMPLES. FALHA NO DEVER DE INFORMAÇÃO. CONSUMIDOR HIPOSSUFICIENTE TECNICAMENTE. CLÁUSULA ABUSIVA. DEVER DE INDENIZAR. LUCROS CESSANTES NÃO COMPROVADOS. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. SENTENÇA REFORMADA. 1. Cuida-se de recurso inominado em face da sentença que julgou improcedentes os pedidos iniciais, onde a parte autora pugna pela indenização da proteção de seu veículo, enquanto que a parte recorrida alega que a proteção veicular não cobre a ocorrência de furto simples, mas apenas de furto qualificado. 2. O contrato celebrado entre associação e associado, que tem como objeto a proteção veicular, é regido pelas normas do Código de Defesa do Consumidor. (...) 5. Neste contexto, em que pese estar previsto no regulamento a cobertura para roubo ou furto qualificado, excluindo-se o furto simples, tem-se que a referida cláusula é abusiva, tendo em vista que não se pode exigir do consumidor conhecimento capaz de distinguir tais institutos, devendo a cláusula ser considerada nula, nos termos do art. 51, IV do CDC. (...)

TJGO. PROCESSO Nº 5473110-72.2018.

Em análise das decisões, a primeira reconheceu a origem da norma gerada no âmbito da liberdade associativa, reconheceu que são criadas pelos próprios associados, sem o entendimento de nulidade sob o argumento de cláusula abusiva, o que é confirmado pela parte em que diz que o regulamento interno deve atender aos fins sociais a que se destina e às exigências.

Diverso da primeira, a segunda decisão reconhece a nulidade de uma cláusula criada pela associação, referente a despesa ocorrida que pode ser colocada em rateio. Mesmo que constando no regulamento que grupo possibilitaria apenas o rateio de despesa ocorrida por furto qualificado, entendeu o judiciário goiano pela nulidade, sob o argumento de que não se pode exigir do consumidor conhecimento capaz de distinguir tais institutos, devendo a cláusula ser considerada nula, nos termos do art. 51, IV do CDC.

No tocante aos casos julgados, será que existe o conflito entre o princípio da liberdade associativa e proteção ao consumidor? Ao julgar desconsiderando a essência da norma gerada por uma assembleia geral de associados, terá desrespeitado o princípio e, pelo artigo na constituição, a intervenção na regra associação pode ser realizada a luz da proteção consumerista?

Em uma balança, o peso é maior na parte em que se coloca o direito de associação ou o direito de proteção a um individuo que faz parte desse grupo associativo. O debate é complexo e leva a necessidade de uma reflexão sobre a aplicabilidade desses dois direitos fundamentais, um esforço hermenêutico para melhor solução do conflito.

Com retorno aos julgados, pode ser feita uma leitura por meio do diálogo, já que ambos são direitos fundamentais, sem a aplicação da ideia de pesos, em que é preciso ceder.

O segundo julgado reconheceu a nulidade da cláusula em virtude do seu conteúdo no regulamento interno da associação, entendeu o magistrado que o termo furto qualificado não era simples o bastante para a interpretação de uma pessoa considerada hipossuficiente. Nesse aspecto, com o diálogo entre o direito de associação e proteção ao consumidor, poderia dar um outro resultado ao fato judicializado, com a utilização dos dois princípios para solução do caso.

Sobre essa forma, vale destacar o ensinamento de Lenio Strek e Flávio Quinaud Pedron (2016, p.08):

Sob as luzes da virtude da integridade, devemos buscar compreender o caso a sua melhor, sendo apenas aparente uma situação de colisão normativa, causada pela má compreensão dos elementos do caso sub judice; se é enxergado um conflito, é sinal de mal-entendido hermenêutico e, portanto, necessário reestabelecer o diálogo (contraditório, no sentido processual) com todos os sujeitos envolvidos e com a história institucional aí a grande clareza da metáfora do romance em cadeia trazida por Dworkin. Através de um diálogo, a compreensão correta do caso se faz presente e fica possível atingir a resposta correta afirmando qual é o princípio adequado para aquele caso.

Como citado pelos autores acima, necessário reestabelecer o diálogo (contraditório, no sentido processual) com todos os sujeitos envolvidos e com a história institucional, de modo a fugir de um sistema de reprodução automática pelos simples fatos de terem outros julgados, ou seja, reconhecer, sem qualquer aprofundamento, a nulidade de cláusula criada por associados, por meio de sua liberdade e autonomia.

É preciso lembrar que o direito de associação já foi e, em alguns casos, ainda são, um modelo que incomoda grupos dominantes, isso em razão de ser um modelo interno de democracia e espaço de organização de grupos marginalizados. Sobre esse domínio do Estado, leciona Rodrigo Xavier Leonardo (2014, p.49):

É como se sob a batuta quase mágica do reconhecimento e do não reconhecimento das associações, seguindo de uma política de concessão de capacidade jurídica, fosse substituída a postura política de puro e simples controle preventivo dessas organizações para se adotar-se, progressivamente, um controle repressivo, ora exercido sobre o direito à existência jurídica dessas organizações, ora exercido sobre a capacidade jurídica que lhe seria atribuída. Esse fenômeno pode-se inserir naquilo que Paolo Grossi explica ser uma tendência de transformação do Estado numa entidade totalizante voltada para controlar toda e qualquer manifestação do social. As associações, como uma relevantíssima manifestação social, não poderiam ficar alheias a essa tendência.

Apesar de uma mudança acerca do direito de associação, as associações de rateio, originadas pela necessidade de organização em prol da defesa do patrimônio dos associados, sofrem a interferência estatal, já que é um modelo que retornou ao cenário brasileiro e, acredito, que não era esperado pelos grupos dominantes a tamanha aderência e importância.

Ao seguir o histórico sobre essa liberdade, a Constituição Federal de 1988 e Código Civil, trouxeram de forma aberta a passagem sobre as associações civis, garantido ao brasileiro uma independência maior e com um gama de modelos.

Com sustento na forma que se originou esse direito fundamental, mesmo que a proteção do consumidor seja, pela constituição, também uma garantia fundamental, não gera a equidade quando e totalmente desconsiderado, sem uma interpretação, no caso concreto, da forma que foi gerara a norma dos associados.

Nesse aspecto é que surge a necessidade de um diálogo entre os dois princípios, de modo a entender, de fato, como foi originada a norma interna gerada pela liberdade associativa. Se fosse aplicada nos casos citados essa técnica do diálogo, para entender se a cláusula que excluí a possibilidade de rateio de despesas ocorridas por furto qualificado é nula, deveria o magistrado entender como ela foi gerada pelo grupo, por meio de uma assembleia específica para criação do Regulamento, com amplo conhecimento e participação dos associados.

Sobre essa forma de interpretação, Lenio Strek e Flávio Quinaud Pedron (2016, p.08):

Quando um quadro de informações e de elementos pode ser percebido de modo mais completo (e isso apenas pode acontecer pelo diálogo entre os sujeitos processuais (e nunca pela sapiência ou iluminação de um julgador!)), o que a princípio se mostrava como conflituoso desaparece, ficando mais nítida a possibilidade de se chegar a uma resposta correta.

Com essa interpretação com luz nos princípios envolvidos, o magistrado consegue gerar uma decisão mais justa ao caso, como exemplo, ao utilizar dos aspectos gerais de liberdade de associação, poderia entender que ela não coloca o associado consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade, sem gerar um desequilibro ao conjunto de associados que seguem as regras por eles criadas.

O desafio é fazer com que ambos os princípios sejam aplicados no caso concreto, até porque, a interpretação deve ser a luz da Constituição Federal. A tarefa não é fácil, pois, em um número maçante de demandas, a interpretação dialógica não segue modelos gerais, criados para aplicação em massa, a dificuldade em quebrar paradigmas deve ser trabalhado pela doutrina, de modo a gerar novas decisões do Poder Judiciário.


5. CONCLUSÃO

Os princípios, em razão de seu grau de abstração e como mandamentos de otimização servem de pilares para a solução jurídica de um caso concreto. Por meio da doutrina citada, pode ser dividido em dois formatos de aplicação, com a proposta de Robert Alexy temos o sistema de pesos, em que deve ser verificado qual princípio tem maior peso, devendo um ceder ao outro. Já o modelo de Ronald Dworkin segue a ideia de ponderação.

Os princípios em estudo foram o da liberdade de associação e proteção ao consumidor, ambos previstos da Constituição Federal de 1988, no capítulo que trata das garantidas fundamentais. Esses princípios também são destacados em outra parte da Constituição Federal, na parte da atividade econômica, expondo a lei que deve ser assegurado o direito do consumidor e que o Estado deve apoiar e estimular práticas associativas, o que reforça o peso de ambos e necessidade de respeito e diálogo, sem entender, simplesmente, pela aplicação de um ou outro, mas, respeito a ambos.

As associações de socorro mútuo já existiam no Brasil, porém, não havia o regramento sobre o consumidor, o que não gerou um debate ou aprofundamento desse tema em outro tempo. Com a volta das associações de socorro mútuo no cenário brasileiro e existência de um Código do Consumidor, começou a surgir demanda judicial sobre as suas regras, que são criadas por meio da liberdade de associação.

A dúvida que gera é sobre que deve prevalecer ou se existe a possibilidade de diálogo? A liberdade de associação ou defesa do consumidor? A norma criada por meio do direito de associação pode ser desconsiderada pela aplicação da proteção do consumidor?

A norma originada pela associação segue a vontade geral dos associados, o que gera indagação sobre a possibilidade de desconsideração. A desconsideração pelo pedido de um membro em ataque a vontade geral é uma forma de gerar equidade? Sobre esse ponto, interessante o ensinamento de ROUSSEAU (1999, p.40):

(...) a vontade geral, para ser verdadeiramente geral, deve sê-lo tanto em seu objeto quanto em sua essência; de que deve partir de todos, para aplicar-se a todos; e de que perde sua retidão natural quando tende a algum objeto individual e determinado, porque então, julgando aquilo que nos é estranho, não temos a guiar-nos nenhum verdadeiro princípio de equidade

Por outro lado, sabendo que o direito do consumidor é de ordem difusa e cabe ao Estado a proteção daquele considerado hipossuficiente na relação, começa a surgir dúvidas sobre a validade de algumas cláusulas do negócio associativo e judicialização.

Com a citação da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, foi destacado dois julgados, um que reconhece a norma criada pela associação e outro que julga nula esse mesmo modelo com base na proteção do consumidor. O artigo não adentrou sobre aplicação ou não do Código de Defesa do Consumidor nas associações de rateio, apenas utilizou aos julgados como parâmetro de estudo acerca dos princípios envolvidos.

Sobre o autor
Gabriel Martins Teixeira Borges

Gabriel Martins Teixeira Borges, advogado inscrito na OAB/GO 33.568, OAB/PE 53.536 e OAB/RN 20.516. Pós-graduado em Direito Civil, Processo Civil, Direito Tributário e Direito do Consumidor pela Universidade Federal de Goiás. Jurídico da Força Associativa Nacional-FAN. Jurídico da Organização Nacional do Associativismo - ONA. Jurídico do Instituto do Nordeste de Autorregulação das Associações de Rateio - INAR. Membro da Associação Internacional de Direito Seguro. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Diretor da Organização Internacional de Economia Social – OIES.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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