Associações de socorro mútuo: um locus da colisão entre o princípio da liberdade associativa e a proteção ao consumidor

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Resumo: Na Constituição Federal de 1988, a liberdade de associação foi tratada no título dos direitos e garantias fundamentais, o art. 5º, incisos XVII a XXI, define que é plena a liberdade de associação para fins lícitos, que independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal sem seu funcionamento. As associações de socorro mútuo são grupos restritos de ajuda, caracterizados pela autogestão, em regra, possuem regras internas para definição dos direitos e deveres em relação as despesas já ocorridas entre os associados, fazem por meio de um contrato atípico, originado pela liberdade associativa. A jurisprudência goiana entende, de forma majoritária, pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor nessa relação associado x associação; também, existe o reconhecimento dessa relação pelo Estado de Goiás. Nesse sentido, com a aplicação das regras consumeristas, parte das regras dos associados são desconsideradas em demandas judiciais, sob a justificativa de serem cláusulas abusivas. O artigo objetiva debater a possibilidade de diálogo entre os princípios da liberdade de associativa e proteção ao consumidor, através de uma análise da Constituição Federal, do Código Civil, do Código de Defesa do Consumidor e da prática das decisões judiciais.

Palavras-chave: Princípios. Associação de socorro mútuo. Liberdade de associação. Proteção ao Consumidor. Cláusulas abusivas. Analogia. Colisão de Princípios.


1. INTRODUÇÃO

As associações civis são grupos de pessoas que têm interesses comuns e, para persecução desses objetivos, cooperam entre si, como ajuda em serviço, apoio etc. Tem um papel importante para efetivação de direitos fundamentais e métodos democráticos, bem como da promoção da igualdade social.

As associações representam um sistema menor de democracia e que desenvolve direitos fundamentais e debates em prol da sociedade e, principalmente, defesa e união dos considerados excluídos. Sabendo da importância dessas entidades, após a Segunda Guerra Mundial, surgem inúmeros tratados internacionais e legislações nacionais que reconhecem expressamente a liberdade de associação.

Na Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, a liberdade de associação foi tratada no título dos direitos e garantias fundamentais, no seu art. 5º, incisos XVII a XXI, que define que é plena liberdade de associação para fins lícitos, que independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal sem seu funcionamento. O referido texto constitucional é acerca do direito à liberdade das associações e da não interferência estatal não é passível de alteração por meio de emenda constitucional, visto que, protegido pelas cláusulas pétreas (art. 60, § 4º da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988).

Com o crescimento do Estado Democrático, as associações começaram a ganhar espaço, assumindo um relevante papel em nossa sociedade. No Brasil as associações começaram a ganhar espaço na década de 1980, com o fim do período militar e surgimento do cenário de luta por direitos sociais. Isso se deve aos espaços públicos de participação em que entidades sem fins lucrativos iniciam suas atividades, voltadas a suprir a falta de atuação do Estado, realizando assim seu papel democrático.

Acerca do tema, o Supremo Tribunal Federal, por meio do Recurso Extraordinário nº. 201819-RJ, consignou o entendimento de que

(...) as associações privadas que exerçam função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não estatal

O ponto específico de uma associação de socorro é o rateio entre seus membros das despesas pretéritas, isso por meio do negócio associativo, autogestão democrática e solidariedade.

A liberdade associativa permite que todos os integrantes do grupo tenham direito de criar as normas para os associados, sendo a pura expressão da vontade geral, assunto até tratado no Código Civil em que dá ao associado maior liberdade e condições de atuação no grupo (Art. 60, Código Civil).

Em grande maioria, tais associações de rateio fazem o cadastro de veículos como bens materiais passíveis de amparo por meio da divisão entre os associados. Internamente, esse grupo restrito da ajuda mútua tem entre si regras internas criadas por meio da liberdade associativa.

A Constituição Federal prescreve sobre a liberdade de associação, sendo uma faculdade da pessoa decidir filiar. Trata-se de um direito personalíssimo, apenas a pessoa pode exercer a vontade de ser filiado a uma associação civil. Ao ser indicado por alguém, o indivíduo tem ciência da finalidade e normas do grupo, o qual realiza a sua filiação de forma voluntária e livre, não existe nenhuma imposição legal ou obrigação em fazer parte de uma associação.

Por outro lado, mesmo exposta o direito fundamental de associação e que as normas desse grupo são originadas por esse direito fundamental, o qual a Constituição Federal diz que é pleno e que não deve ter a intervenção estatal, existe algumas decisões em que tais regras são anuladas por entender abusivas, tendo como base o Código de Defesa do Consumidor:

RECURSO INOMINADO. JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. ASSOCIAÇÃO. PRESTADORA DE SERVIÇOS. FORNECEDOR. RELAÇÃO DE CONSUMO. APLICAÇÃO DO CDC. SEGURO VEICULAR. SINISTRO. COBERTURA. NEGATIVA DE PAGAMENTO INDEVIDA. CLÁUSULA ABUSIVA. INOBSERVÂNCIA DO DEVER DE INFORMAÇÃO. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. MERO ABORRECIMENTO.

(RECURSO: 5534153-34 RECURSO INOMINADO ORIGEM: 4º JUIZADO ESPECIAL CÍVEL DE GOIÂNIA JUÍZ SENTENCIANTE: MURILO VIEIRA DE FARIA)

Nesse sentido, o diálogo entre as cláusulas abusivas e regras internas de associações de rateio permitirá o levantamento de algumas indagações e terá como objetivo a produção científica sobre o assunto, o qual está em grande destaque no cenário brasileiro e não contém obras ou estudos na área.

Sabendo que o assunto sobre as associações civis não é bastante tratado pela doutrina, mais difícil, ainda, obras específicas sobre as associações de socorro mútuo, razões que demonstram à justificativa e importância do estudo.

A hipótese inicial é o estudo das normas internas criadas pela liberdade de associação em diálogo com as cláusulas abusivas do Código de Defesa do Consumidor, com base na ciência jurídica. O que tem prevalecido no diálogo das fontes quanto aos princípios da liberdade associativa e proteção do consumidor?

A proposta é verificar a possibilidade de anular uma norma originada pela liberdade de associação sob o argumento de abusividade do Código de Defesa do Consumidor, utilizar das teorias existentes sobre a colisão de princípios, proporcionalidade e ponderação.


2. NORMA: PRINCÍPIOS E REGRAS

Os princípios são mandamentos de otimização, ante o seu grau de amplitude, tem aplicação ampla e devem servir como os pilares da interpretação. A Constituição Federal traz em seu conteúdo vários princípios, portanto, deve ser a base de sustentação da interpretação normativa, até porque, hodiernamente, o direito civil deve analisado a partir da norma fundamenta constitucional.

Sobre a amplitude e aplicação, importante citar a lição de Miguel Reale (1986. p 60):

Princípios são, pois verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos à dada porção da realidade. Às vezes também se denominam princípios certas proposições, que apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como fundantes da validez de um sistema particular de conhecimentos, como seus pressupostos necessários.

Celso Antônio de Bandeira Mello (2000, p. 747/748.) conceitua princípio como mandamento nuclear de um sistema, um verdadeiro alicerce:

Princípio - já averbamos alhures - é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalização do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo [...]. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou de inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que os sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada.

Não obstante o grau de abstração, os princípios têm imperatividade, previstos de forma maçante na Constituição Federal, precisam ser respeitados, sob pena de haver uma interpretação inconstitucional. Como já mencionado, o direito infraconstitucional deve ser interpretado a partir da norma constitucional.

A respeito desse grau de generalidade, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2021, p. 74), dizem:

Os princípios seriam aquelas normas com teor mais aberto do que as regras. Próximo a esse critério, por vezes se fala que a distinção se assentaria no grau de determinabilidade dos casos de aplicação da norma. Os princípios corresponderiam às normas que carecem de mediações concretizadoras por parte do legislador, do juiz ou da Administração.

Essa dimensão da norma princípio permite inferir em uma linha argumentativa sobre o seu teor. Aqui, cabe pensar no princípio da liberdade de associação, previsto expressamente na Constituição Federal, o qual garante aos indivíduos a liberdade de criação das associações para fins lícitos, nessa diretriz, abre caminho para inúmeras modalidades de associações, geradas por meio desse princípio.

É possível extrair dos princípios novas regras e interpretações, por vezes, não visíveis no enunciado legislativo. Sobre o exemplo acima, por meio de liberdade associativa, indivíduos podem ser unir para uma forma de proteção patrimonial, sem que isso venha ser considerado um modelo de contrato de seguro.

A sociedade, aliada a tecnologia e conectividade, vive em plena mutação, o que faz emergir modelos e ferramentas não previstas expressamente em regras, mas, englobadas pelos princípios existentes, já que eles, pelo seu grau de abstração, têm um extenso alcance.

Dessa forma, importante a exposição sobre a norma como gênero e as regras e princípios como espécie. Os autores, Ronald Dworkin e Robert Alexy fazem um estudo aprofundado sobre essa diferenciação.

Ronald Dworkin conceitua princípios como padrões que não são regras, que servem como argumentos para direitos individuais. Robert Alexy (2019, p.150) sobre as teses acerca do positivismo daquele, diz que são defeituosas, decorreriam de um desconhecimento tanto do papel que os princípios de fato desempenham, quando também do papel que eles têm que desempenhar

Acerca dessas teses, em resumo, Robert Alexy (2019, p.148) ensina:

A primeira tese diz respeito à estrutura e a fronteira do sistema jurídico. Segundo ela o direito de uma sociedade é constituído exclusivamente por regras que podem ser identificadas e diferenciadas de outras regras sociais, especialmente de regras morais, com base em critérios que não dizem respeito a seu conteúdo, mas sim à sua origem (pedigree). A segunda tese resulta da primeira. Se o direito consiste exclusivamente em um conjunto de regras válidas de acordo com o critério de identificação e se existem casos, como salienta Hart, nos quais essas regras, por causa de sua vagueza, não vinculam, através de uma consequência jurídica, aquele que decide, então deve decidir de acordo com critérios não pertencentes ao ordenamento jurídico, uma vez que o direito lhe fornece qualquer critério. A terceira tese se relaciona ao conceito de obrigação jurídica. Segunda ela, só se pode falar que alguém tem uma obrigação jurídica (e, em consequência disso, um terceiro tem um direito) quanto há uma regra que exprima tal obrigação

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O referido autor coloca a importância da compreensão dos princípios para a harmonia do sistema jurídico, de modo a entender a sua essência, seu conteúdo para a aplicação pratica. Entendendo os princípios como parte do ordenamento jurídico, as decisões devem ser seguir a sua luz, pois, sempre vão dar ao juiz a devida sustentação.

Dworkin diz que as regras são aplicadas em um modelo de tudo ou nada (all-or-nothing fashion), com duas opções, ou a regra é valida e aplicável ou não é valida e não aplicável ao caso. Por outro lado, diz que os princípios são diferentes, eles seguem um modo de peso (dimensiono of weight), o que mostra a possibilidade da ponderação, o que não ocorre com as regras.

Outra forma, a de colocar a norma como gênero e como espécie as regras e princípios é vista na doutrina, em especial, na obra de Teoria dos direitos fundamentais, do filósofo do direito Robert Alexy. Essa é uma das contribuições, mas importantes de sua obra, a distinção entre princípios dentro para aplicabilidade dos direitos fundamentais.

Com base em sua obra, Teoria dos Direitos Fundamentais (ALEXY, 2008, p 90/91), define os princípios e as regras:

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente de possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas (...) já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos

A partir do alicerce formado pelo autor, a distinção entre regras e os princípios servem para dar o norte e otimizar a aplicação dos direitos fundamentais, como a verdadeira forma de resolução do conflito.

Ainda, sobre as diferenças, Robert Alexy (2008, p. 87) mostra que um dos critérios é o da generalidade diz ele que Segundo esse critério, princípios são normas com grau de generalidade relativamente alto, enquanto o grau de generalidade das regras é relativamente baixo.

Essas diferenças expostas, especialmente sobre a aplicação fria de uma regra que tem pouca generalidade e que deve ser aplicada no tudo ou nada e os princípios que são mandamentos de otimização com grau alto de generalidade e com a aplicação em modo de peso são importantes para a compreensão do capítulo 3 e conclusão.


3. ASSOCIAÇÕES DE SOCORRO MÚTUO E CRIAÇÃO DE NORMAS INTERNAS

Preliminarmente é necessário expor o conceito geral de associação civil, para, posteriormente, falarmos de forma específica da associação de socorro mútuo.

A associação civil é grupo de pessoas formado para uma finalidade comum e sem finalidade econômica. O Código Civil conceitua da seguinte forma a associação civil:

Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos.

Interessante a lição de Wendel de Brito Lemos Teixeira (2019, p.39):

Associação deriva do latim associare que significa reunir ou juntar. As associações surgiram da conscientização de que, em certos casos, o indivíduo isoladamente é impotente para realizar determinados objetivos, mas caso se una a outras pessoas com o mesmo ideal, esses fins podem ser realizados

Em outro conceito, diz Sérgio Mourão Corrêa Lima (2017, p.39):

A associação decorre do acordo de vontades congruentes dos associados fundadores, manifesta em assembleia, no sentido de contribuírem com bens ou serviços para suas atividades; portanto, na formação, a associação tem natureza jurídica de contrato bilateral ou plurilateral. Nessa linha, Renan Lotufo sustenta que a associação é contrato "plurissubjetivo unidirecional, porque são vários os que declaram suas vontades, mas todas no mesmo sentido.

A forma que a legislação conceituou as associações civis traz certo desarranjo na doutrina, em especial, na parte que diz para fins não econômicos ao invés do termo específico fins lucrativos. Flavio Tartuce (2020, p.286) leciona sobre esse ponto:

Nesse trilhar, o Enunciado n. 534, da VI Jornada de Direito Civil (2013), estabelece que as associações podem desenvolver atividade econômica, desde que não haja finalidade lucrativa. Segundo as justificativas do enunciado doutrinário, andou mal o legislador ao redigir o caput do art. 53. do Código Civil por ter utilizado o termo genérico econômicos em lugar do específico lucrativos. A dificuldade está em que o adjetivo econômico é palavra polissêmica, ou seja, possuidora de vários significados (econômico pode ser tanto atividade produtiva quanto lucrativa). Dessa forma, as pessoas que entendem ser a atividade econômica sinônimo de atividade produtiva defendem ser descabida a redação do caput do art. 53. do Código Civil por ser pacífico o fato de as associações poderem exercer atividade produtiva. Entende-se também que o legislador não acertou ao mencionar o termo genérico fins não econômicos para expressar sua espécie fins não lucrativos

Com base nesse entendimento, Wendel de Brito Lemos Teixeira (2019, p.78) diz que Quanto a associação, a mesma, desde que não distribua resultados pecuniários para seus associados, não está impedida de exercer atividade lucrativa/econômica, porque essa atividade será meio, e não fim.

Uma associação pode, por exemplo, promover eventos para arrecadação ou até mesmo criar um título na mensalidade para cumprimento de uma de suas finalidades. Aqui, cito uma associação de amantes do Fusca que promove um evento para arrecadação de valores para adquirir o Fusca Mascote do grupo civil, nesse exemplo, o negócio que aumentará o patrimônio será destinado integralmente a finalidade da associação, sendo vedado a distribuição de tal ganho entre os associados.

Corroborando com esse exemplo, Arnaldo Rizzardo (2003, p.303) diz:

Na associação, não há fim lucrativo, o que não impede que exista o patrimônio e que sejam realizados atos tendentes a angariar rendimentos, ou até atos de comércio, com a diferença, entrementes, de não serem divididos os lucros entre os associados.

Wendel de Brito Lemos Teixeira (2019, p.81) citando José Eduardo Sabo Paes diz que as associações de socorro mútuo são exemplos de associações com finalidade econômica, expõe que a ajuda material ainda que financeira em determinado momento da vida de um associado por algum evento ou infortúnio não configura distribuição de lucros e dividendos, sendo lícita

Esse grupo de indivíduos pode ser fechado, ou seja, para os interesses e objetivos restritos dos membros ou criado com finalidades não exclusiva dos membros, a exemplo das entidades que se encaixam no conceito de terceiro setor, como Organizações não Governamentais (ONGs) em que atendem um interesse público.

Sobre o ponto terceiro setor e associações, conforme explica Rodrigo Xavier Leonardo (2014, p.81):

limitar a promoção das associações apenas ao campo semântico do terceiro setor resultaria num cerceamento da liberdade de associação apenas a algumas finalidades o que, por si só, é contraditório com a amplitude da liberdade de associação.

Portanto, não deve descartar a ideia de associações civis de caráter exclusivamente privado e restrito aos membros, como exemplo as associações que realizam o rateio das despesas já ocorridas entre seus associados, atividade de caráter privado, ou seja, de interesse apenas dos membros dessa determinada associação (socorro mútuo).

Com a organização de grupos excluídos, sem qualquer tipo de proteção patrimonial, a sociedade civil se organiza por meio de associações de divisão de despesas ou denominadas de socorro mútuo. Tais grupos fazem com que os associados fiquem em posição de igualdade e que todos pensem na cooperação e solidariedade, além de combater vícios da sociedade moderna como o individualismo. Além das virtudes indicadas acima, o associativismo faz surgir o sustento econômico e caminha para desenvolvimento das pessoas.

A alternativa de associar-se para ratear/dividir despesas já ocorridas exclusivamente entre um grupo, encontrada pelas pessoas com o objetivo de tornar a proteção de seu patrimônio mais viável, existe há anos, presente no Brasil e em outros países, tivemos um retorno desse modelo no cenário brasileiro.

A Constituição Federal traz a liberdade de associação como direito fundamental, garante de forma aberta e livre esse direito. Servindo de luz, o Código Civil de 2002 traz em seus artigos sobre associação apenas os requisitos gerais para a fundação de tais entidades, permitindo, inúmeros modelos associativos, dentre eles, a associação de socorro mútuo.

Portanto, as pessoas com o interesse ratear entre eles as despesas ocorridas, podem formalizar essa finalidade por meio de uma associação civil. Essa formalização deve respeitar as peculiaridades do socorro mútuo.

Esse modelo de associação civil deve realizar apenas o rateio das despesas já ocorridas, entre os seus associados, uma divisão integral dos prejuízos, efetuado a posteriori. Deve existir uma divisão simples por cota, sem qualquer trabalho atuarial, como obrigatório no contrato típico de seguro, o qual obrigatoriamente surge com o trabalho do atuarial, profissional que calcula probabilidades de eventos, avalia riscos e fixa prêmios, indenizações e reservas matemáticas. Destaca que não existe a massificação coletiva realizada pelo cálculo sistemático de probabilidades. Eduardo Calvert (2015, p.171-189) ensina:

Segundo a Teoria da empresa, uma das teorias que pretendem trazer um conceito unitário ao contrato de seguro, defendida por Cesare Vivante, o contrato de seguro seria caracterizado justamente pela massificação e pelo cálculo sistemático de probabilidades

Sem a formação de fundo anterior ou recebimento prévio correspondente a eventos futuros, o grupo de pessoas possibilita apenas o rateio das despesas que já ocorreram, o que faz surgir uma mensalidade variável, conforme apuração e divisão entre os associados. Cada associado é ao mesmo tempo beneficiário e cooperador, não existe uma garantia dada pela pessoa jurídica (associação) ou distinção entre a associação e associado, como acontece no seguro em que existe uma distinção típica entre o segurado e segurador.

Sabendo que é uma entidade sem fins econômicos, os valores percebidos são revertidos integralmente para o amparo dos associados por meio do rateio de despesas pretéritas e despesas administrativas para o funcionamento.

Mesmo havendo um objetivo de proteção patrimonial, tais pontos destacados fazem com que essa atividade seja distinta da atividade de uma seguradora. Nesta atividade não estão presentes os requisitos do contrato típico de seguro. Para configurar o contrato de seguro é obrigatório que contemple os todos os requisitos do artigo 757 de Código Civil, pois trata de um contrato típico, com características claras definidas em Lei.

O contrato de seguro previsto no Código Civil, em seu Art. 757, traz o conceito desse contrato típico, não preenchendo tais requisitos não há em que falar em atividade securitária. Nesse sentido, o professor Flavio Tartuce esclarece:

"Somente pode ser parte, no contrato de seguro, como segurador, entidade legalmente autorizada para tal fim (art. 757, parágrafo único, do CC). A atividade de segurador deve ser exercida, no contexto da norma, por sociedades anônimas, mútuas ou cooperativas (estas terão por objeto somente os seguros agrícolas), mediante autorização do Governo Federal, estando a matéria disciplinada pela Lei 8.177/1991 e pelos Decretos-leis 73/1 966 e 2.063/1940. Tratando do tema, prevê o Enunciado n. 185. do CJF/STJ, aprovado na III Jornada de Direito Civil, que "a disciplina dos seguros do Código Civil e as normas de previdência privada que impõem a contratação exclusivamente por meio de entidades legalmente autorizadas não impedem a formação de grupos restritos de ajuda mútua, caracterizados pela autogestão". O enunciado refere-se ao seguro-mútuo, cuja possibilidade ainda é reconhecida e cujo conceito consta do próprio enunciado. No entanto, é preciso ressaltar que as sociedades de seguros mútuos, reguladas pelo Decreto- lei 2.063/1940, não se confundem com as companhias seguradoras, pois naquelas os segurados não contribuem por meio do prêmio, mas sim por meio de quotas necessárias para se protegerem de determinados prejuízos por meio da dispersão do evento danoso entre os seus vários membros."

O enunciado citado pela doutrina é do Conselho da Justiça Federal. Com a III Jornada de Direito Civil, teve a aprovação por unanimidade do enunciado 185:

Enunciado 185 Art.757: A disciplina dos seguros do Código Civil e as normas da previdência privada que impõem a contratação exclusivamente por meio de entidades legalmente autorizadas não impedem a formação de grupos restritos de ajuda mútua, caracterizados pela autogestão.

Logo, o fato existir despesas ocorridas por roubo, furto ou colisão, não faz existir a figura do contrato de seguro. Para a configuração é necessária a presença dos requisitos impostos pelo Código Civil, os quais não estão presentes na atividade associativa. Esse tipo de associação, ao exercer a sua finalidade possibilitar o amparo por meio de divisão das despesas ocorridas entre os seus membros - continua a ter natureza de associação civil.

O Decreto-Lei n°. 73/66 (artigo 143, §1º), reconhece que as associações de socorro mútuo são diferentes dos seguros empresariais (Sociedades Anônimas), o texto legal deixa claro essas entidades ficam excluídas do regime imposto ao seguro:

Art. 143. § 1º As Associações de Classe, de Beneficência e de Socorros mútuos e os Montepios que instituem pensões ou pecúlios, atualmente em funcionamento, ficam excluídos do regime estabelecido neste Decreto-Lei, facultado ao CNSP mandar fiscalizá-los se e quando julgar conveniente.

Tal diferença e exclusão ao modelo de seguro privado é exposta também pelo Decreto 2.063/40:

Art. 2º Ficam excluídos do regime estabelecido neste decreto-lei o Instituto de Resseguros do Brasil e quaisquer outras instituições criadas por lei federal, bem como as associações de classe, de beneficência e de socorros mútuos que instituam pensões ou pecúlios em favor de seus associados e respetivas famílias.

Superada a questão sobre a natureza do socorro mútuo realizado por meio de associações civis, com base nos detalhes dessa atividade, essas associações criam regras para definição do rateio, cotas, despesas já ocorridas que serão objeto de amparo e as que não serão objeto de divisão.

A participação como associado é uma faculdade, decidir filiar é um direito personalíssimo, apenas a pessoa pode exercer a vontade de ser filiado a uma associação civil.

O modelo de associação de divisão tem caráter exclusivamente privado e restrito aos membros, dessa forma, ao ser indicado por alguém, o indivíduo tem ciência da finalidade e normas do grupo, o qual realiza a sua filiação de forma voluntária e livre, não existe nenhuma imposição legal ou obrigação em fazer parte de uma associação.

Em regra, essa grupos criam um regulamento para definir suas normas. Sabendo ser uma associação civil, essa norma é originada da vontade geral dos associados, que pode ser por meio de assembleias ou pela gestão, como poder de representar todo o grupo. Esse é o ponto de debate do artigo, a aplicabilidade de normas originadas pela liberdade de associação em diálogo com direito do consumidor, em específico, sobre as cláusulas abusivas.

Sobre o autor
Gabriel Martins Teixeira Borges

Gabriel Martins Teixeira Borges, advogado inscrito na OAB/GO 33.568, OAB/PE 53.536 e OAB/RN 20.516. Pós-graduado em Direito Civil, Processo Civil, Direito Tributário e Direito do Consumidor pela Universidade Federal de Goiás. Jurídico da Força Associativa Nacional-FAN. Jurídico da Organização Nacional do Associativismo - ONA. Jurídico do Instituto do Nordeste de Autorregulação das Associações de Rateio - INAR. Membro da Associação Internacional de Direito Seguro. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Diretor da Organização Internacional de Economia Social – OIES.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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