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Direito e literatura.

Os pais fundadores: John Henry Wigmore, Benjamin Nathan Cardozo e Lon Fuller

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Agenda 09/06/2007 às 00:00

Há várias tentativas de se tentar organizar Direito e Literatura. Apresento três protomodelos. Em seguida, procuro identificar as fontes originárias de tais concepções, apontando para os "pais fundadores" da reflexão.

Sumário:1.Introdução e Contornos da Investigação.2.John Henry Wigmore e o Direito na Literatura.3.Benjamin Nathan Cardozo e a Literatura no Direito.4.Lon Fuller e a Literatura como Veículo do Direito.5.Considerações Finais.Referências Bibliográficas


Resumo: O ensaio aproxima Direito e Literatura. Tenta-se identificar os pais fundadores de investigações que ligam Direito e Literatura. Retomam-se linhas que marcam os trabalhos de John Henry Wigmore, Benjamin Nathan Cardozo e Lon Fuller.

Palavras-Chave: Direito. Literatura. Filosofia do Direito. Wigmore. Cardozo. Fuller.


Abstract: The paper approaches Law and Literature. It tries to catch the founding fathers of a scholarship dubbed as Law and Literature. It does follow the main line which features the works and papers of John Henry Wigmore, Benjamin Nathan Cardozo and Lon Fuller.

Key Words: Law. Literature. Jurisprudence. Wigmore. Cardozo. Fuller.


1.Introdução e Contornos da Investigação

A aproximação entre direito e literatura é recorrente na tradição cultural ocidental. Em tempos pretéritos o vínculo era menos problemático; o homem das leis o era também de letras, e Cícero pode ser o exemplo mais emblemático. A racionalização do direito (cf. WEBER, 1967, p. 301 e ss.), a burocratização superlativa do judiciário (cf. FISS, 1982), bem como suposta busca de objetividade por meio de formalismos (cf. UNGER, 1986) podem ter afastado esses dois nichos do saber. Ao direito reservou-se entorno técnico, à literatura outorgou-se aura estética. Tenta-se recuperar o elo perdido. É o tema do presente ensaio.

O selo Direito e Literatura pode, no entanto, revelar pouco; há proliferação de campos epistêmicos que acrescentam ao Direito um outro ponto de partida, ou de chegada, a exemplo de pesquisas que vinculam Direito e Economia (Law and Economics), Direito e Sociedade, Direito e Psicanálise, e tantos outros (cf. MORAWETZ, 2001, p. 450). De qualquer forma, não obstante críticas à obsessão ocidental para reduzir resíduos de conhecimento a disciplinas fechadas (cf. SCHLAG, 1996, p. 60 e ss.), Direito e Literatura, em princípio, não qualificaria disciplina, e nem mesmo método. A discussão pode ser vazia de conteúdo, e a aporia pode ser relegada a problematização do status do Direito Comparado, por exemplo.

Melhor identificarmos que Direito e Literatura pode suscitar interações frutíferas, conduzindo o debate relativo às possibilidades e limites da compreensão do direito (cf. MORAWETZ, cit.). A partir do momento em que os estudos literários, originalmente centrados na natureza e na função da literatura (cf. WELLEK e WARREN, 1970) alcançam maior número de manifestações humanas, formatando-se os cultural studies, elege-se o direito como campo privilegiado para apreensão dos contextos sociais; trata-se de bem sucedido esforço de se aplicar a teoria literária fora do campo literário propriamente dito (cf. BINDA e WEISBERG, 2000, p. 3).

Nesse sentido, os horizontes se multiplicam. Tem-se o direito na literatura, a literatura no direito, o direito da literatura, a literatura com padrão e impulso para a reforma do direito, bem como o amálgama entre direito e ficção, na busca de referenciais éticos, entre outros (cf. MORAWETZ, cit.). Mas há quem despreze a relação (cf. POSNER, 1998). Richard Posner pretende que direito e literatura não têm nada a contribuir mutuamente (cf. POSNER, cit.); o pragmatismo que qualifica o pensamento do professor de Chicago admite, tão-somente, o vínculo entre direito e literatura nas reflexões referentes ao problema do plágio (ou a criptominésia, ou a apropriação inconsciente) e dos direitos autorais (cf. POSNER, 2007). Mas também há quem veementemente hostilize essa posição, e que sardonicamente a desconsidere, relegando-a, especialmente, a tentativa de argumento de autoridade (cf. FISH, 1987).

Há várias tentativas de se tentar organizar Direito e Literatura. Apresento três protomodelos. Em seguida, procuro identificar as fontes originárias de tais concepções, apontando para os founding fathers, os pais fundadores da reflexão: John Henry Wigmore, e Benjamin Nathan Cardozo e Lon Fuller. Começo com os referidos modelos.

Thomas Morawetz (cit.) indica-nos que o direito na literatura se estende à descrição de advogados e de instituições jurídicas nos textos literários. Advogados desfilam como heróis, anti-heróis, vilões. Pode-se estudar o mundo simbólico do direito, a ordem e o caos, a par de se apontar, por exemplo, o artificialismo (ou o substancialismo) do direito natural. Corre-se o risco do recurso fácil e ingênuo das lições morais, da concepção de agendas didáticas prenhes de pieguice. É o que poderia ser discutido a partir da leitura de Dickens (Bleak House), Kafka (O Processo), Shakespeare (O Mercador de Veneza), Sófocles (Antígona), Coetzee (À Espera dos Bárbaros), para resumir radicalmente algumas sugestões. Tenta-se encontrar o jurídico no literário, explícita e subliminarmente.

Morawetz também nos dá conta da compreensão do direito como literatura. Investiga-se o conjunto de transmissão de significados, no espaço jurídico, marcado pelo autoritarismo e pelas injunções políticas. Instrumentos e estratégias literárias são aplicadas aos textos legais. Estudam-se métodos estilísticos e retóricos. Insiste-se na problematização do uso das metáforas. Ocupa-se de controvérsias características da epistemologia e da filosofia da linguagem. O espaço é ocupado pela discussão chamada pós-moderna, proliferam técnicas de desconstrução, de trashing. O ambiente conta com seus magos. Desfilam Derrida, Paul de Man, Foucault, Mark Tushnet. Recorre-se a Wittgenstein, Gadamer, Heidegger. Aponta-se o significado como algo implantado pelos autores e construído pelos leitores. Cuida-se da hermenêutica. Preocupa-se com estudos dos papéis representados por autores e leitores no contexto institucional (cf. MORAWETZ, cit.). Ao direito reserva-se função de narrativa. Tenta-se encontrar o literário no jurídico, subliminar e explicitamente.

Thomas Morawetz ainda descortina um terceiro campo. Busca-se a literatura como instrumento e fator para a reforma do direito. Tenta-se verificar como a literatura popular poderia influenciar movimentos para mudança da legislação e das práticas judiciárias. Orienta-se para uma literatura politicamente inspirada. Pesquisa-se os efeitos sócio-legais da literatura (cf. MORAWETZ, cit.). A sugestão então nos remete a Dostoevsky (Recordação da Casa dos Mortos), Beecher-Stowe (A Cabana do Pai Tomás), Victor Hugo (Os Miseráveis), Zola (Germinal), Jorge Amado (Capitães de Areia). E citei um número muito pequeno. Mais pontualmente, há literatura de pregação revolucionária propriamente dita, de feição proselitista. Exemplo ilustrador é Leon Trotsky, que escreveu ensaios de sabor absolutamente revolucionário, a propósito de Cultura e Arte Proletárias, Companheiros Literários de Viagem de Revolução, entre outros (TROTSKY, 2007).

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Essa linha propicia literatura secundária que explora a produção literária a partir de problematização ordinariamente jurídica. Estuda-se o advogado na obra de Charles Dickens (VAUGHAN, 1955), o sentido de direito no mesmo Dickens (GOULD, 1967), a descrição do criminoso lombrosiano em Zola, Dostoevski e Tolstoy (GAAKER, 2004), o formalismo jurídico no Mercador de Veneza de Shakespeare (NISKIER, 2006), as referências ao pesadelo do Processo de Franz Kafka nas decisões de magistrados norte-americanos (POTTER Jr., 2004).

Continua Morawetz com designação de campo que reuniria direito e ficção, riquíssimo em visões utópicas e distópicas, marcado por certo uso didático do direito. Neste sentido, por exemplo, Sidney Sheldon (A Ira dos Anjos) ou John Grisham (O Dossiê Pelicano) instrumentalizariam adequadamente estudos sobre direito norte-americano. Creio que se deve tomar a cautela, no entanto, do engodo que o uso da literatura como recurso moral pode promover (cf. MORAWETZ, cit.). É nesse grupo que incluo textos ficcionais, que propiciam a discussão de problemas jurídicos. Incluo na classificação Lon Fuller, de quem adiante falarei, especialmente em função do delicioso O Caso dos Exploradores de Cavernas.

Do ponto de vista mais restritamente hermenêutico, Morawetz sugere a apropriação da teoria literária como modelo para a hermenêutica jurídica. Embora, bem entendido, questões legais, ao contrário de disputas literárias, careçam de respostas mais simples e rápidas. Pode-se exemplificar com as empreitadas literárias de Freud, e o estudo do parricídio em Dostoevsky (cf. FREUD, 1996) parece ser exemplo bem acabado. Passar de olhos no índice onomástico da obra do pai da psicanálise indica miríade de recorrências literárias, que reproduzo parcialmente: Goethe, Ibsen, Bernard Shaw, Homero, Hesíodo, Dumas Filho, Dante, Zola, Schiller, Cervantes, Wilde, Sófocles, Tasso, Swift, Shakespeare, Victor Hugo, Kipling, Anatole France, Molière, Ésquilo, Rabelais, Andersen, Flaubert, entre tantos outros (cf. FREUD, 1996). Também não se descuida do fato de que agendas políticas orientariam opções constitucionais.

Ao direito da literatura guarda-se campo de alcance mais analítico. Embora, dependendo-se do enfoque, o núcleo também possa alcançar problemas de liberdade de expressão, de hate speech, a chamada fala ofensiva, o que sempre promove o retorno de embates entre direita e esquerda. Tem-se tema de direitos autorais, de muito significado para Posner, como atesta obra recentíssima sua (2007, cit.), relativa ao problema do plágio, praga recorrente que presentemente contamina a produção intelectual universitária.

Morawetz plasmou por fim núcleo de preocupações que se ocupa do direito como narrativa, especialmente a partir da averiguação da importância da narrativa para compreensão do direito, campo em que predominam Stanley Fish e Richard Rorty. Acrescento ainda José Calvo González, professor da Universidade de Málaga, na Espanha, investigador da coerência narrativa do direito, sobremodo em âmbito da relação entre o discurso dos juízes e o exercício da função jurisdicional (cf. CALVO, 1998). Creio que se trata do núcleo mais sofisticado. Para Calvo, a justiça é um relato, é indicativo de experimento narrativo, isto é, "si una narración consiste en su fluir, si ‘narrar historias ha sido el arte de seguir contándolas’, la Justicia fluye como un relato" (CALVO, 2002, p. 81).

Descortinam-se então de acordo com a referida taxionomia sete campos: direito na literatura, direito como literatura, literatura como instrumento de mudança do direito, direito e ficção, hermenêutica, direito da literatura e direito e narrativa. Passo agora a tentativa de classificação mais simplificada, com fonte em Guyora Binder e em Robert Weisberg, de modo a identificar antecessores que poderiam marcar os primeiros passos desse instigante campo de estudo.

Binder e Weisberg vêm o direito na literatura (law in literature) e o direito como literatura (law as literature); o direito seria também atividade literária e cultural (BINDER e WEISBERG, 2000). O direito na literatura propiciaria a busca do jurídico no estético, com objetivos pragmáticos. O direito como literatura suscitaria a busca do estético no técnico, com propósitos hermenêuticos, e talvez não menos pragmáticos. Esta segunda abordagem, à qual Binder e Weisberg dedicam obra seminal, centra-se na busca do direito enquanto expressão literária, em dimensão retórica, com estações em modulações de desconstrução, bem como na formatação de modelo criticismo cultural do direito, que se ocupa em leituras culturais do capitalismo e das disputas jurídicas (cf. BINDER e WEISBERG, cit.).

Mas há preliminar a ser problematizada. O direito é literatura? A tomarmos o conceito clássico do que seja literatura, tal como este desponta na dimensão romântica, o direito estaria excluído do cardápio literário, dado que o romantismo admite como literário apenas a escrita imaginativa. Busco argumento de autoridade, no sentido de fixar o direito como literatura também. Terry Eagleton, vitorianista, crítico de orientação marxista, autor de manual significativo dos novos estudos que se produzem: Teoria da Literatura-uma Introdução.

Eagleton abominou distinção entre fato e ficção; a teoria convencional aceitaria como literário apenas o ficcional, posição que o estudioso inglês vê como questionável. Eagleton lembra o crítico russo Roman Jakobson e observa que "talvez seja necessária uma abordagem totalmente diferente (...) talvez a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional ou ‘imaginativa’, mas porque emprega a linguagem de forma peculiar" (EAGLETON, 2006, p. 3). Trata-se da noção de Jakobson, para quem a literatura representaria uma violência organizada contra a fala comum (cf. EAGLETON, cit.). Para Eagleton, "a definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido" (EAGLETON, cit., p. 12). Amplia-se a possibilidade da identificação do que seria literário:

" Se é certo que muitas das obras estudadas como literatura nas instituições acadêmicas foram ‘construídas’ para serem lidas como literatura, também é certo que muitas não o foram. Um segmento de texto pode começar sua existência como história ou filosofia, e depois passar a ser classificado como literatura; ou pode começar como literatura e passar a ser valorizado por seu significado arqueológico. Alguns textos nascem literários, outros atingem a condição de literários, e a outros tal condição é imposta. Sob esse aspecto, a produção do texto é muito mais importante do que o seu nascimento. O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram. Se elas decidirem que se trata de literatura, então, ao que parece, o texto será literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado". (EAGLETON, cit., p. 13).

Eagleton outorga ao intérprete a faculdade de discernir, de identificar e de plasmar o que seja literário. Qualifica um não-essencialismo que valoriza o intérprete, em detrimento do autor. Esta última categoria, a propósito, foi problematizada por intervenção muito conhecida de Foucault, em conferência de 1969, a par de versão modificada de fala feita em Nova Iorque em 1970, na Universidade de Búfalo, introduzida na versão brasileira dos Ditos e Escritos, da forma que segue:

" Que importa quem fala? Nessa indiferença se afirma o princípio ético, talvez o mais fundamental, da escrita contemporânea. O apagamento do autor tornou-se desde então, para a crítica, um tema cotidiano. Mas o essencial não é constatar uma vez mais seu desaparecimento: é preciso descobrir, como lugar vazio – ao mesmo tempo indiferente e obrigatório-, os locais onde sua função é exercida.

1º) O nome do autor: impossibilidade de tratá-lo como uma descrição definida: mas uma impossibilidade igualmente de tratá-lo como um nome próprio comum.

2º) A relação de apropriação: o autor não é exatamente nem o proprietário nem o responsável por seus textos; não é nem o produtor nem o inventor deles. Qual é a natureza do speech act que permite dizer que há obra?

3º) A relação de atribuição. O autor é, sem dúvida, aquele a quem se pode atribuir o que foi dito ou escrito. Mas a atribuição – mesmo quando se trata de um autor conhecido – é o resultado das operações críticas complexas e raramente justificadas. As incertezas do opus.

4º) A posição do autor. Posição do autor no livro (uso dos desencadeadores; funções dos prefácios; simulacros do copista, do narrador, do confidente, do memorialista). Posição do autor nos diferentes tipos de discurso (no discurso filosófico, por exemplo). Posição do autor em um campo discursivo (o que é o fundador de uma disciplina? O que pode significar ‘ o retorno a...’ como momento decisivo na transformação de um campo discursivo?)". (FOUCAULT, 2001, p. 264-265).

Fragilizado o autor, mitiga-se conseqüentemente esta figura potencializada pela estética romântica, da qual ainda somos presos, e em torno da qual desenvolve-se disciplina de fundo positivo, relativa aos direitos autorais. A fragmentação do autor também é indicativa da redução drástica de perfil imaginado de características próprias da formalização do que seria literário, pelo menos em sentido estrito. É de Eagleton que tomo o argumento que segue:

"Não seria fácil isolar, entre tudo o que se chamou de ‘literatura’, um conjunto constante de características inerentes. Na verdade, seria tão impossível quanto tentar isolar uma única característica comum que identificasse todos os tipos de jogos. Não existe uma ‘essência’ da literatura. Qualquer fragmento de escrita pode ser lido ‘não-pragmaticamente’, se é isso o que significa ler um texto como literatura, assim como qualquer escrito pode ser lido ‘poeticamente’. Se examino o horário dos trens não para descobrir uma conexão, mas para estimular minhas reflexões gerais sobre a velocidade e a complexidade da vida moderna então poder-se-ia dizer que o estou lendo como literatura (...)" (EAGLETON, cit., p. 14).

O excerto pode sugerir crítica à concepção que repute como texto literário o texto que não seja pragmático. Se literário é o texto que não tenha propósito prático, e o texto jurídico seria então excluído do que seja literatura, retoma-se argumento tautológico que apenas potencializa aporia que inventamos. E Eagleton avança no problema:

" A leitura de um romance, feita por prazer, evidentemente difere da leitura de um sinal rodoviário em busca de informação; mas como classificar a leitura de uma manual de biologia que tem por objetivo ampliar nossos conhecimentos? Será isso um tratamento ‘pragmático’ da linguagem, ou não? Em muitas sociedades, a literatura teve funções absolutamente práticas, como função religiosa; a nítida distinção entre ‘prático’ e ‘não-prático’ talvez seja só possível numa sociedade como a nossa, na qual a literatura deixou de ter grande função prática. Podemos estar oferecendo como definição geral um sentido de ‘literário’ que é, na verdade, historicamente específico". (EAGLETON, cit., p. 15).

Para Eagleton, o direito insere-se no conceito de literatura. É que tudo pode ser, e tudo é literário. Um outro aspecto ilustra o problema. Desenvolvem-se técnicas de escrita do direito, do mesmo modo como proliferam manuais de redação ou compêndios para composição de textos literários. Exemplifico com guia norte-americano, redigido para profissionais do direito, que se pretende texto para orientação para escrita jurídica clara, concisa e persuasiva. Clareza, concisão e persuasão são elementos que qualificam topói da teoria literária.

O livro referido enuncia princípios para obtenção de clareza (clear writing). Indica-se o uso de sentenças curtas para enunciados complicados, verbos na voz ativa sempre que apropriado, remoção de palavras desnecessárias, utilização de palavras da linguagem cotidiana, de expressões concretas e específicas, bem como a utilização de diacríticos convencionais. Sugere-se que se evite redundâncias e períodos longos marcados cláusulas subordinativas. Propõe-se que se evite também o juridiquês (lawyerisms, ou legalese); recomenda-se distância para com termos latinos e franceses. Há capítulo que propõe que não se insulte o leitor, que não se lhe roube o tempo. A maior parte do livro, no entanto, centra-se em temas gramaticais. Substantivos, pronomes, adjetivos, advérbios, verbos, preposições, conjunções, interjeições, princípios de sintaxe, de pontuação, de uso de maiúsculas, de construção de parágrafos e de formatação dão fim à obra de que trato. (FAULK & MEBLER, 1994).

Menciono técnicas de literatura, e mais especificamente de construção de textos literários, indicativo de assertiva plausível que dê conta do direito como substrato de literatura. A percepção de Eagleton é muito abrangente, e creio que sufraga a tese que aqui desenvolvo:

" Quer coisa pode ser literatura, e qualquer coisa que é considerada literatura, inalterável e inquestionavelmente – Shakespeare, por exemplo -, pode deixar de sê-lo. Qualquer idéia de que o estudo da literatura é o estudo de uma entidade estável e bem definida, tal como a entomologia é o estudo dos insetos, pode ser abandonada como uma quimera. Alguns tipos de ficção são literatura, outros não; parte da literatura é ficcional, e parte não é; a literatura pode se preocupar consigo mesma no que tange ao aspecto verbal, mas muita retórica elaborada não é literatura. A literatura, no sentido de uma coleção de obras de valor real e inalterável, distinguida por certas propriedades comuns, não existe. Quando, deste ponto em diante eu usar as palavras ‘literário’ e ‘literatura’ neste livro, eu o farei com a reserva de que tais expressões não são de fato as melhores; mas não dispomos de outras no momento". (EAGLETON, cit., p. 16).

A fixação da literatura como arte, o que pragmaticamente excluiria do direito do entorno literário, insista-se, é atitude que nos torna prisioneiros da estética do romantismo (cf. BINDER e WEISEBERG, cit., p. 9). Proposta que defenda aproximação entre direito e literatura guarda semelhanças metodológicas com sugestões de diálogo entre direito e economia. É que este último propõe leitura do direito a partir de categorias econômicas, a exemplo de problemas de custo e benefício, enquanto que aquele primeiro acena com a possibilidade de utilização de técnicas literárias para a problematização do direito, em todas suas variáveis, que transitam por peças judiciais (petições, despachos, sentenças, acórdãos), pela discursividade oral (oração junto ao tribunal do júri, sustentações orais), bem como também pela literatura dogmática (refiro-me aos textos doutrinários); não se deixa de lado a própria lei, e também não se esquece da linguagem implícita nos gestos e na indumentária. Tudo o que envolve o direito é literatura, diz essa perspectiva. E tudo o que toca o direito é economia, diriam os caudatários de Posner e de Coase. O reducionismo pode indicar aspecto crítico que assola o direito contemporâneo. Não há como se definir a literatura como discurso estético e o direito como um discurso instrumental. Fazê-lo seria muito simples e muito ingênuo.

E porque o direito sugere interpretação, narração, retórica, significação e representação (categorias indicadas por Binder e Weisberg), não há razões para que exclua o jurídico do que substancialmente literário.

Direito na literatura, direito como literatura e literatura como veículo do direito são, pois, as categorias centrais de um movimento que se propõe a explorar. Sem desconhecer a advertência de Walter Benjamin, na XIV tese da filosofia da história, que nos dá conta do salto de tigre que se dá em relação ao passado, no sentido de que nos apropriamos somente daquilo que nos interessa, indico e em seguida comento excertos de John Henry Wigmore, de Benjamin Nathan Cardozo e de Lon Fuller, que reputo como ancestrais mais próximos das categorias de direito na literatura e de direito como literatura, com base nas hipóteses conceituais que levantei. É o passo que segue, e que não desconhece as demais contribuições, não tão pretéritas, de James Boyd White.

Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Direito e literatura.: Os pais fundadores: John Henry Wigmore, Benjamin Nathan Cardozo e Lon Fuller. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1438, 9 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9995. Acesso em: 22 nov. 2024.

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