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Direito e literatura.

Os pais fundadores: John Henry Wigmore, Benjamin Nathan Cardozo e Lon Fuller

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Agenda 09/06/2007 às 00:00

2.John Henry Wigmore e o Direito na Literatura

John Henry Wigmore é conhecido entre os estudiosos do direito norte-americano como especialista em assuntos relativos às provas judiciais (evidence). Desenvolveu método próprio, que consiste em pormenorizado roteiro analítico, que a literatura especializada nomina de Wigmore Chart. Seu livro mais conhecido, Treatise on the Anglo-American System of Evidence in Trials at Common Law, publicado em 1904, pontificou na prática jurídica norte-americana, até meados do século XX. Wigmore nasceu no estado da Califórnia, em 1863, e faleceu em 1943. Lecionou direito no Japão e publicou textos interessantíssimos sobre direito comparado. É considerado também um dos fundadores de campo específico do direito norte-americano, torts, relativo à responsabilidade civil extra-contratual (cf. RITCHIE, 1963, p. 443).

Wigmore lecionou também na Northwestern University. Robert W. Millar, discursando em nome dos demais professores daquela faculdade, nas exéquias de Wigmore, lembrou que o schollar que se homenageava vivera uma vida de conquistas superlativas e de dignidade graciosa (cf. MILLAR, 1943). Sarah Morgan, que fora sua secretária, entre 1919 e 1943, escreveu que Wigmore jamais possuíra um automóvel; todos os dias andava sete quarteirões até apanhar o trem elevado que o conduziria de Evanston para Chicago. Segundo Morgan, Wigmore sempre carregava uma pasta, na qual invariavelmente se encontraria uma edição de bolso de uma das obras de Shakespeare, o Velho e o Novo Testamentos, bem como um livro de narrativa da vida cotidiana de algum país estrangeiro, na língua do lugar, que ele então estudava, especialmente em preparação para mais uma viagem (cf. MORGAN, 1963).

Wigmore lecionou direito de 1892 a 1943, data de sua morte, aos 80 anos. Foram 50 anos em sala de aula, ao longo dos quais também dirigiu a Faculdade - - Northwestern Law School - -, de 1901 a 1929. Wigmore lutou incansavelmente para que o orçamento do curso que dirigia e para o qual lecionava fosse agraciado com generosas dotações orçamentárias; Wigmore viveu o ensino de direito (cf. RAHL, 1980).

Trato de dois textos de Wigmore. Um deles, de direito na literatura propriamente dito, e relacionado a problemas hermenêuticos do Novo Testamento (Pontius Pilate and Popular Judgments); o outro deles, um clássico, que propõe a leitura de uma centena de romances jurídicos (A List of One Hundred Legal Novels). A propósito da leitura de Wigmore relativa à passagem neotestamentária de Pilatos, lembro que assuntos jurídicos na Bíblia têm ocupado autores e pensadores da mais variada origem. Exemplifico com Hans Kelsen, e seu estudo sobre A Idéia de Justiça nas Sagradas Escrituras. O texto de Kelsen é de rebeldia latente, explora (entre outros) supostas contradições nos textos canônicos, especialmente quando cotejados com a moral do cristianismo moderno (cf. KELSEN, 1997, p. 31).

Retomo a questão de Pilatos. Wigmore discorre acerca das atitudes de Pôncio Pilatos para com as demandas populares, e subtrai dos fatos narrados no Novo Testamento ilações de muita importância para a reflexão relativa aos julgamentos populares. Wigmore tentava entender a indecisão do Presidente da Judéia. Percebia a inabilidade de Pilatos no sentido de não compreender divisões e facções que fragmentavam Jerusalém; Pilatos era estranho a tudo aquilo. Ele era romano. Não conseguia penetrar na realidade dos fatos que se imputavam a Jesus Cristo. Pilatos também não alcançava o sentido judaico de traição, prenhe de dúvidas e de peculiaridades (cf. WIGMORE, 1941).

Wigmore não admitia a recusa de Pilatos, no sentido de invocar incompetência e de ouvir a multidão: Pilatos era um juiz! Tratava-se de procedimento criminal regular, freqüente, em terra invadida por inimigo muito mais forte. Os romanos estavam no auge de sua organização imperialista. Segundo Wigmore, Pilatos tinha o dever de julgar de acordo com a lei, ou de acordo com os fatos, consoante o modo como os via. Ao declinar de decidir, chamando a massa para fazê-lo, Pilatos teria agido covardemente como magistrado. Degradou as nobres funções judiciais. Outorgou obrigação que era dele, só dele, para a multidão que se encontrava na praça pública, e que desconhecia a lei, e que fatalmente não alcançava corretamente os fatos. Ironicamente, Wigmore observou que Pilatos seria mais competente se distribuísse à multidão uma cédula, indicando-se um sim para a crucificação de Cristo... (cf. WIGMORE, cit.).

Wigmore não via sensatez em se deixar que a massa julgasse fatos e direitos. Para o professor norte-americano, o juiz que se curva para a multidão é relapso para com a função. A subjetividade de um grupo anestesiaria qualquer progresso judicial; para Wigmore, frágil é o juiz que quer adular a multidão. Com certo elitismo, Wigmore insistia que o direito é complexo e que a função judicante é complicada. Expertos deveriam ser recrutados, segundo Wigmore, de acordo com a capacidade. A crítica tem destinatário certo. É que à época, lê-se em Wigmore, juízes eleitos causavam muitos problemas. Wigmore encerrou o texto afirmando que desprezamos Pilatos pelo fato de que ele negligenciara a função, delegando à multidão função que era sua, e indeclinável. Passo agora a seu texto seminal sobre direita na literatura.

Wigmore começa indagando o que seria uma romance com fundo jurídico, fórmula que creio mais adequada para traduzir legal novel. Tratar-se-ia de romance que interessasse a um advogado (ou a um juiz, ou promotor), porque os princípios da profissão jurídica formam a maior parte do enredo. O professor norte-americano então dividiu os romances com fundo jurídico em quatro grupos, que nominou de A, B, C e D (cf. WIGMORE, 1922), do modo que segue:

(A)- Romances que têm uma cena de julgamento, incluindo-se uma bem engendrada passagem de interrogatório (a skilful cross-examination);

(B)- Romances que descrevem atividades profissionais de advogados, juízes ou promotores;

(C)- Romances que descrevem métodos referentes ao processamento e à punição de crimes;

(D)- Romances nos quais o enredo seria marcado por algum assunto jurídico, afetando direitos e condutas de personagens.

Procuro aplicar estas categorias à literatura brasileira, e poderia, sem maiores problematizações, observar como segue. Direitos e condutas de personagens são encontrados, por exemplo, em Canaã, de Graça Aranha. Processo e punição, inclusive com crítica veemente à pena de morte, é assunto de O Cabeleira, de Franklyn Távora. Atividade profissional (também de oficiais de justiça) é tema recorrente em Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, bem como de Tenda dos Milagres e de Terras do Sem Fim, de Jorge Amado. Cenas específicas de julgamento são mais freqüentes na literatura norte-americana, revelando fixação nacional que os norte-americanos têm com temas de justiça, dado cultural que já fora captado por Aléxis de Tocqueville (cf. TOCQUEVILLE, 2005, p. 111 e ss.).

Norte-americanos cultuam o ambiente dos julgamentos, trata-se de uma quase religião nacional. Programas de TV que simulam (ou efetivam) julgamentos detêm larga audiência. Romances de John Grisham e de Scott Turrow figuram sempre nas listas dos mais-vendidos. Levados para o cinema, esses enredos empolgam o país. Essa reflexão substancializa o romance de William Gaddis, A Frolic of his Own, ainda não traduzido para o português, ao que me consta. O personagem é obcecado por tribunais. A fixação chega a ponto de ajuizamento de ação, contra ele mesmo... Entre os vários programas de televisão que há, com simulações de atividades judiciárias, The People´s Court é um dos mais assistidos; o direito transforma-se em novela (soap opera), em show business (cf. PORSDAM, 1999, p. 89 e ss.).

Wigmore justificava as classificações e listas que propunha explicitando que o jurista vai até a literatura para aprender o direito. Um fundamento pedagógico parece marcar o pensamento do professor norte-americano, que lecionou por muitos anos. A sugestão da literatura como instrumento para a apreensão do direito não seria casual, fortuita ou gratuita. Questionando-se, no sentido de que a lista poderia apresentar problemas e disfunções da justiça, Wigmore justificou-se: a lista não fora elaborada para o leigo, seu destinatário era o advogado (cf. WIGMORE, cit.).

Reconhecendo que não há tempo para que se leia tudo, Wigmore sugeria que se fizesse seleção muito criteriosa. O jurista, no entanto, deveria conhecer os livros mais importantes, tal como identificados na lista proposta. A familiaridade com a profissão exigiria intimidade com a literatura ficcional ligada à atividade. O advogado não poderia desconhecer A Letra Escarlate, de Hawthorne, bem como não haveria desculpas para o desconhecimento de Scott, de Dickens ou de Conan Doyle (cf. WIGMORE, cit.).

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De tal modo, segundo Wigmore, uma coisa é saber que a prisão por dívidas foi abolida; e algo totalmente diferente é conhecer os livros de Dickens, que colaboram para um direito mais humano. O advogado que lê os textos básicos da tradição literária (e que tenham fundo jurídico) conhece mais a história de sua profissão. E ao ler autores estrangeiros conhece sistemas jurídicos distintos, elaborando uma cultura normativa comparatista. Nesse sentido, Wigmore recomenda Tolstoi, Balzac, Dumas, Scott. História e direito se encontrariam nas páginas dos romancistas. O romance, para Wigmore, é catálogo de caracteres humanos (cf. WIGMORE, cit.).

Comparando Balzac e Buffon, Wigmore observou que a literatura permite desfile de espécies sociais, do mesmo modo que a zoologia ensejaria a aproximação com as espécies animais. Textos literários descrevem soldados, operários, mercadores, marinheiros, poetas, mendigos, clérigos. Textos de zoologia apreenderiam lobos, leões, burros, tubarões, cordeiros. Problemas que preocupam juristas são questões de caracteres humanos, enfrentadas pela literatura de ficção. Nesse sentido, segundo Wigmore, Balzac e Shakespeare seriam juízes supremos da natureza humana (cf. WIGMORE, cit.).

Wigmore inquietava-se no sentido de precisar onde escritores encontrariam material jurídico para os enredos que desenvolviam. Muitos escritores eram formados em direito, ou então viveram experiências pessoais desagradáveis e marcantes, do ponto de vista jurídico. Tomando-se como referencial a literatura brasileira, menciono as Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, como indicativo de experiência pessoal amarga. Acrescento Monteiro Lobato, e toda sua literatura para adultos, especialmente a revelada nos contos que escreveu, que denunciam profundo mal estar para com a prática judiciária. E entre os que estudaram direito entre nós, brasileiros, Jorge Amado, Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga, Gonçalves Dias, Álvares Azevedo, Castro Alves, José de Alencar, Raul Pompéia, Raimundo Correia, Alphonsus de Guimaraens, Augusto dos Anjos, Graça Aranha, Godofredo Rangel, Oswald de Andrade, Alcântara Machado, José Lins do Rego, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles (cf. GODOY, 2002, p. 27). Embora, bem entendido, a formação jurídica não signifique vocação para o direito. É da história da educação brasileira o bacharelismo, e a busca da faculdade de direito como porta de entrada para as humanidades e para a política, esta última no sentido pragmático, aquela primeira como adorno protuberante (cf. ADORNO, 1988 e VENÂNCIO FILHO, 2004).

Wigmore percebeu função pedagógica e instrumental na literatura, centrando-a como auxiliar do direito, vital para uma formação adequada. É, nesse sentido, um pai fundador do direito e literatura. Sigo com o founding father no direito como literatura, Benjamin Natan Cardozo, contextualizando-o em primeiro lugar, especialmente no que se refere a sua relação com a sociologia jurídica norte-americana e com o realismo normativo que a marcou.


3.Benjamin Natan Cardozo e a Literatura no Direito

Benjamin Nathan Cardozo nasceu em 1870 e faleceu em 1938. De ascendência judaico-sefardita, Cardozo foi juiz em Nova Iorque e posteriormente ocupou uma vaga na Suprema Corte em Washington. Estudou direito em Columbia e depois estagiou no escritório de seu pai. O pai foi juiz em Nova Iorque, e ao que parece foi afastado por suspeita de corrupção. Albert Cardozo, logo após o nascimento de Benjamin, renunciou o cargo de juiz para evitar um processo de impeachment; manteve, no entanto, a prerrogativa para advogar, profissão que exerceu com razoável sucesso. É copiosa a literatura especializada que investiga a luta de Benjamin Cardozo para afastar de si a sombra de desconfiança que havia em relação a seu pai (cf. POSNER, 1990). O pai pode ter representado um problema para o filho, dividido na admiração por um pai que freqüentava a sinagoga, cheio de princípios, e que também, talvez movido por considerações políticas, recebia dinheiro por debaixo da mesa (who took money beneath the table) (cf. KAUFMAN, 1994, p. 271). Benjamin Cardozo era refratário a uma participação política mais ativista (cf. KAUFMAN, 1998, p. 1247 e ss.). Ao não se mostrar caudatário a grupinhos, fora admirado por amigos e inimigos (cf. KAUFMAN, 1998b, p. 1259 e ss.).

Seus antepassados teriam chegado nos Estados Unidos ainda no século XVIII. Cardozo tinha irmã gêmea, além de outros seis irmãos, entre os quais uma irmã mais velha, Ellen, que o criou, após a morte da mãe, o que aconteceu quanto Benjamin tinha nove anos. Seu pai faleceu quando Benjamin contava com quinze anos. A herança deixada pelo pai propiciou vida confortável, na Madison Avenue, em Nova Iorque. Cardozo destacou-se como advogado. Bons relacionamentos nos meios jurídicos lhe abriram as portas para a judicatura (cf. POSNER, 1990). Em 1932 Cardozo foi indicado para a Suprema Corte pelo Presidente Herbert Hoover; Cardozo ocupou a vaga de Oliver Wendell Holmes Jr. (cf. KAUFMAN, 2002, p. 88).

Cardozo foi um realista no sentido que adaptava as circunstâncias normativas às instâncias da vida real. Seu voto no caso MacPherson v. The Buick Co. (217 N.Y., 382, III N.E. 1050), ainda em 1916, quando era juiz em Nova Iorque, é paradigmático em termos de responsabilidade civil. Cardozo percebia o direito como servo das necessidades humanas e não dos desejos de mandarins e poderosos (cf. POSNER, 1990, p. 107). À época do caso MacPherson a lei determinava que o fabricante de um produto que ferisse um consumidor não seria responsável por danos causados, e nem culpado por negligência, a menos que houvesse assinado contrato nesse sentido, com o consumidor. Havia exceção à regra, de difícil e rara utilização, referente a produtos anormalmente perigosos. E foi a exceção que Cardozo explorou no aludido caso, de modo a implementar sua visão jurisprudencial (cf. POSNER, 1990, p. 108). Narro o caso.

MacPherson havia comprado um Buick de uma revenda de automóveis. Certo dia, enquanto dirigia, um problema em uma das rodas provocou um acidente, que resultou em ferimentos sérios no condutor do veículo. MacPherson ajuizou ação contra a empresa Buick, fabricante do carro. A ré havia comprado as rodas de outro fabricante e não conseguira detectar o defeito causador do acidente, o que, ao que consta, uma inspeção poderia ter indicado. A ré não havia inspecionado as rodas que comprou de outro produtor, embora houvesse testado todos os automóveis antes de entregá-los aos consumidores. Cardozo decidiu com admirável tato retórico. Ao vendedor do automóvel cabia prioritariamente a responsabilidade em indenizar, dado que é sua obrigação garantir a segurança do objeto que estava vendendo. Poderia, em seguida, transferir o ônus da transação buscando indenização do fabricante do veículo, até por razões contratuais. Este, por fim, poderia argüir indenização a ser paga pelo fabricante da peça inapropriada (cf. POSNER, 1990, loc.cit.). A decisão foi redigida em impressionante estilo narrativo. Tem-se impressão de se ler ficção.

Cardozo foi um dos mais importantes juízes ao longo da administração Franklyn Delano Roosevelt, que na década de 1930 tentou aprovar a legislação que implementou o programa anti-recessivo, o New Deal, fortemente inspirado no intervencionismo de John Maynard Keynes. Cardozo materializou o realismo jurídico, em momento de fortíssima interferência judicial na vida nacional (cf. HOLLAND JR., 1963, p. 383 e ss.). Ao lado de Louis Brandeis e de Harlan Fiske Stone, Cardozo votou freqüentemente em favor das medidas do New Deal, que suscitavam abordagem mais liberal na aplicação do direito então vigente nos Estados Unidos. A afinidade de Cardozo com as linhas gerais do programa de Roosevelt, com os objetivos sociais que oxigenavam as medidas tomadas, bem como a convicção de que os tempos estavam mudando e de que a constituição necessitava de modelo interpretativo mais flexível marcaram a opção de Cardozo (cf. POLENBERG, 1997, p. 195).

Cardozo escreveu livro seminal para a compreensão do realismo jurídico norte-americano, A Natureza do Processo Judicial- The Nature of the Judicial Process. Trata-se de opúsculo no qual Cardozo demonstra conhecer o pensamento jurídico da época, com estações nos autores alemães, a exemplo de Eugen Ehrlich e de Rudolf Von Iehring e na sociologia francesa, a propósito da referência a Emile Durkheim. Para Cardozo,

" O trabalho de um juiz é em um sentido duradouro e em outro sentido é efêmero. O que é bem feito e bom por si mesmo vai durar. O que é cheio de erros certamente vai perecer. O bom trabalho judicial permanece como uma das fundações sobre a qual as novas estruturas serão construídas. O mau trabalho judicial será rejeitado e relegado ao laboratório dos anos. Pouco a pouco a velha doutrina é minada. Com regularidade as intromissões são tão graduais que seus significados são de início obscuros. Finalmente, descobrimos que os contornos da paisagem têm se modificado, que os velhos mapas devem ser deixados de lado e que o campo deve ser mapeado de novo". (CARDOZO, 1991, p. 178)

Adepto absoluto do pragmatismo, Cardozo valeu-se de William James para desmistificar o papel dos juízes:

"Somos lembrados por William James em substancial passagem de suas aulas sobre o pragmatismo, que cada um de nós possui verdadeiramente uma subjacente filosofia de vida, até mesmos aqueles de nós para quem são desconhecidos os nomes e as noções de filosofia. Há em todos nós uma tendência, chame isso de filosofia ou não, que nos confere coerência ao nosso pensamento e às nossas ações. Os juízes não conseguem escapar desse fato que ocorre com todos os mortais ". (CARDOZO, 1991, p. 12).

Cardozo dessacralizou o magistrado, quem reputava como mortal, ser humano como qualquer outro, e que ao decidir decalcaria no ato decisório as suas idiossincrasias:

"Em todas suas vidas [dos juízes] forças que eles não reconhecem e não conseguem nominar, disputam neles mesmos- instintos herdados, crenças tradicionais, convicções adquiridas; e o resultado é um modo de se ver a vida, uma concepção de necessidades sociais (...) a partir desse pano de fundo mental todos os problemas encontram um abrigo. Podemos tentar ver as coisas tão objetivamente quando podemos. Todavia, não podemos ver as coisas com outros olhos exceto com os nossos próprios ". (CARDOZO, 1991, p. 12).

No entanto, Cardozo insistia na responsabilidade do magistrado, porque "a sentença de hoje fará o certo e o errado de amanhã (...) Se o juiz pronuncia sua decisão com sabedoria, alguns princípios seletivos deve haver para guiá-lo entre todas as soluções que potencialmente lutam por reconhecimento (...)" (CARDOZO, 1991, p. 21). A aderência do juiz ao precedente, segundo Cardozo, indicaria elementos subconscientes que agiriam no processo judicial. Esses estados acompanhariam e muitas vezes refletiriam concepções de direito que seriam também adotadas pela coletividade, mesmo no caso de inexistência de normas específicas. E assim, especialmente em circunstâncias indicativas de lacunas (gaps):

"(...) quando ao direito é deixada uma situação não alcançada por uma regra jurídica pré-existente, não há nada a ser feito a não ser contar com um árbitro imparcial que declarará o que deverá ser feito por homens justos e razoáveis, que conhecem os hábitos e costumes da vida em comunidade, e que parâmetros de justiça e de negociação justa prevalecerão, o que deverá ser feito nessas circunstâncias, a partir de regras que não o costume e a consciência que guia essas condutas. A sensação que se tem é que em nove casos entre dez a conduta de razoáveis não seria diferente do comportamento previsto pela lei, se norma existisse". (CARDOZO, 1991, p. 143).

Há vários meios de se decidirem os mesmos casos levados à justiça. A personalidade do magistrado definiria escolhas:

"A excentricidades dos juízes compensam as diferenças que há entre eles. Um determinado juiz olha para os problemas a partir de um ponto de vista histórico, outro sob um prisma filosófico, um terceiro a partir da utilidade social; um deles é formalista, outro é latitudinário, um deles tem medo da mudança, outro é insatisfeito com o presente; a partir do atrito de diversas mentes alcança-se algo que tenha constância e uniformidade bem maiores do que seus componentes individuais". (CARDOZO, 1991, p. 177).

Cardozo aproveitava para contrabalançar também os papéis do legislador e do magistrado, dado que o legislador também é criador do direito e também a ele falta objetividade, pelas mesmas razões apontadas em relação aos juízes:

"Se perguntarmos como um interesse deve se sobrepor ao outro [entre legisladores e juízes], eu posso apenas responder que o juiz deve obter seu conhecimento do mesmo modo que o legislador obtém o seu, a partir da experiência, do estudo e da reflexão; em poucas palavras, a partir da vida mesmo. A escolha de método, o peso de valores, precisam ao fim ser guiados por considerações de ambos. Cada um deles está legislando nos limites de suas competências. Não há dúvida de que os limites dos juízes são mais estreitos. O juiz só legisla onde há lacunas. Ele preenche os espaços vazios que há na lei (...) Não obstante, nos limites entre os espaços livres, os precedentes e as tradições, as escolhas se movimentam com liberdade que marca a ação como criativa. O direito que se aplica não é encontrado, ele é feito. O processo, sendo legislativo, exige a sabedoria do legislador". (CARDOSO, in FISHER III, 1993, p. 177).

Cardozo percebia no juiz atividade judicial criativa, positiva, produtora de normas, a exemplo da atividade do legislador propriamente dito, embora, em princípio, em espaço mais fechado. Ao imputar ao juiz o papel de produtor do direito, de alguém que faz a norma, e que não a encontra, Cardozo desafiava a tradição que radica em Montesquieu e que vê o magistrado apenas como a boca da lei. Ao afirmar que há várias maneiras de se julgar um mesmo caso e que a personalidade do julgador é o termômetro das decisões que toma, Cardozo, ele mesmo um reputadíssimo magistrado, oferecia a própria biografia em holocausto, para confirmar assertivas nas quais se assentava o realismo jurídico norte-americano. Cardozo escrevia com beleza, profundidade, sentimento (cf. LEARNED HAND, 1938, p. 496); balizando-se por expressiva retidão moral (cf. BRUBAKER, 1979, p. 229).

E fora esse realista, e como tal fora hostil para com concepções metafísicas de justiça, de justo, e de direito; insistia no direito como atividade literária. O texto essencial de Cardozo relativo ao direito como literatura foi originariamente publicado em 1925, posteriormente reproduzido num volume de ensaios, de 1931, e também estampado no volume 48 da Yale Law Journal, de 1938, com introdução de J. M. Landis; este último afirmava estar triste com o fato de Cardozo ter seguido a carreira da magistratura, afinal, era um exímio ensaísta... No entanto, o pensamento de Cardozo dava as nuances de filosofia do direito comprometida com causas de avanço humano (cf. GOUCH, 1976, p. 49 e ss.). Passo ao texto de Cardozo, que ao presente ensaio interessa.

Com elegância, e com humor, Cardozo principiava afirmando que amigos tinham lhe dito que uma decisão judicial em nada se assemelha à literatura. E passou a desconstruir a assertiva. Tratava-se de um jurista, filósofo e humanista (cf. TULLIS, 1938, p. 147 e ss.). Para Cardozo, como se verá, direito é literatura. Lembrava inicialmente um romancista francês, Henri Beyles, que teria afirmado que só havia um estilo literariamente perfeito: o estilo do Código Civil de 1804, promulgado por Napoleão Bonaparte (que não é seu redator, bem entendido). E Beyles, continuava Cardozo, todos os dias, antes do café da manhã, dedicava-se a ler e a copiar alguns parágrafos do Code Français. Cardozo dizia preferir a prática da calistenia (exercícios físicos), e que assim sentia-se melhor... (cf. CARDOZO, 1938). Lançou a isca.

Observou, no entanto, que também se alimentava de literatura, embora o fizesse em tabletes menos concentrados. Ao citar um literato que absorvia literatura jurídica como referencial estilístico, Cardozo firmou tese no sentido de que direito seria literatura, também em sentido estrito, adiantando-se a Terry Eagleton, embora de modo suspeito, porquanto ele – Cardozo -, era jurista. Advogados, em geral, não teriam posição ativa quanto à literatura e problemas literários. Quando muito, exprimiriam admiração, ou indiferença cínica. Cardozo lembrava que os advogados com os quais convivia observavam que perdiam tempo com literatura, porquanto somente a substância os interessava; no entanto, faziam literatura... E o faziam também formalmente (cf. CARDOZO, cit.).

Cardozo então avançava para questões de forma e substância. A substância (jurídica) circulava por meio de forma (literária). E não haveria como se dissociar as duas grandezas. Cardozo lembrou que os filósofos tentam especificar diferenças entre substância e aparência, no mundo material; e não teriam melhor sorte se o tentassem também no mundo do pensamento. Para Cardozo, a forma não se adere à substância como mero adereço; forma e substância fundem-se, formam unidade única. Direito e literatura, substância e forma, nesse sentido, subsistiriam amalgamados. O estilo, enfim, não seria o bicho-papão de uma decisão judicial; faria parte dela mesma; é ela. Assim, o que poderia ser identificado como estilisticamente mais adequado? Arrematava Cardozo, que não tinha dúvidas, porque "(...) em matéria de estilo literário, a virtude soberana de um juiz é a clareza" (CARDOZO, cit.).

Para Cardozo, um quadro não poderia ser pintado se fosse dada preferência ao insignificante, em desfavor do que mais significativo. É função do artista (e no caso também do jurista) selecionar adequadamente. Cardozo recomendava que se redigisse uma decisão, que se a lesse alguns anos depois, especialmente depois que o texto fosse dissecado por advogados e comentadores. O autor da sentença descobriria suas limitações. No entanto, continuava Cardozo, embora a clareza fosse a qualidade soberana, não seria a única a ser perseguida. Mesmo se o fosse, acrescentava, vários caminhos levariam a ela (cf. CARDOZO, cit.).

Benjamin Cardozo insistia que a decisão, além de clara, deveria ser também absolutamente persuasiva. A sinceridade deveria informá-la, como virtude; nesse sentido, seria acompanhada por força vinculante de provérbios e máximas. Para Cardozo, a negligência para com a clareza, a persuasão e a sinceridade seriam as marcas de estilo jurídico fracassado (cf. CARDOZO, cit.).

Em seguida, Cardozo dizia socorrer-se da memória e identificava seis modelos de narrativa jurídica, estilisticamente demarcados:

1.Profissional ou imperativo;

2.Lacônico ou sentencioso;

3.Conversador ou familiar;

4.Refinado ou artificial;

5.Demonstrativo ou persuasivo;

6.Aglutinativo.

O modelo profissional ou imperativo seria o mais adequado em dignidade e poder. Rico em exemplos e em analogias, substancializaria a força do silogismo. Seu destinatário ouviria a voz da lei, por seus ministros consagrados com a calma e a segurança que caracterizam a força e o poder. Marshall (juiz do século XIX, que julgou o caso Marbury v. Madison, símbolo do judicial review) seria o mais consagrado representante do primeiro modelo de retórica judicial, na classificação de Cardozo. O poder judiciário seria exercido com o propósito de se revelar a vontade do legislativo, da lei, em desfavor dos desejos próprios do magistrado (cf. CARDOZO, cit.).

A revelação da lei seria inspiradora e irresistível. O movimento da premissa para a conclusão deveria ser impessoal, qual sintoma de progresso inevitável de força inexorável. O estilo profissional ou imperativo identificaria homens conscientes do próprio poder, marcando-se o desenvolvimento do direito como processo contínuo de adaptação e ajuste. Adiantando-se ao conceito de experimentalismo democrático, de Roberto Mangabeira Unger, Cardozo observava que a constituição é um experimento, como tudo na vida. A fala do judiciário é que marcaria limites e avanços.

Procuro adaptar os demais conceitos aos textos e referenciais que utilizamos no Brasil. Lacônica é a redação jurídica sintética, direta, pouco explicativa, porém riquíssima em conteúdo, a exemplo da linguagem da lei propriamente dita. É o caso, entre nós, dos objetivos da Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre elaboração, redação, alteração e consolidação de leis. Quanto ao estilo, prescreve-se:

" Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

I - para a obtenção de clareza:

a) usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja legislando;

b) usar frases curtas e concisas;

c) construir as orações na ordem direta, evitando preciosismo, neologismo e adjetivações dispensáveis;

d) buscar a uniformidade do tempo verbal em todo o texto das normas legais, dando preferência ao tempo presente ou ao futuro simples do presente;

e) usar os recursos de pontuação de forma judiciosa, evitando os abusos de caráter estilístico;

II - para a obtenção de precisão:

a) articular a linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfeita compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma;

b) expressar a idéia, quando repetida no texto, por meio das mesmas palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente estilístico;

c) evitar o emprego de expressão ou palavra que confira duplo sentido ao texto;

d) escolher termos que tenham o mesmo sentido e significado na maior parte do território nacional, evitando o uso de expressões locais ou regionais;

e) usar apenas siglas consagradas pelo uso, observado o princípio de que a primeira referência no texto seja acompanhada de explicitação de seu significado;

f) grafar por extenso quaisquer referências a números e percentuais, exceto data, número de lei e nos casos em que houver prejuízo para a compreensão do texto;

g) indicar, expressamente o dispositivo objeto de remissão, em vez de usar as expressões ‘anterior’, ‘seguinte’ ou equivalentes;

III - para a obtenção de ordem lógica:

a) reunir sob as categorias de agregação - subseção, seção, capítulo, título e livro - apenas as disposições relacionadas com o objeto da lei;

b) restringir o conteúdo de cada artigo da lei a um único assunto ou princípio;

c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida;

d) promover as discriminações e enumerações por meio dos incisos, alíneas e itens."

O estilo conversador ou familiar é repleto de lugares comuns, de significados condicionados a conhecimento prévio do repertório, tal como utilizado pelo autor. É o que se encontra em algumas decisões, que se propõem didáticas, mas que pecam pela repetição. O modelo refinado marca a praga narrativa que aprisiona o direito. É o recurso clássico do latim macarrônico, de expressões fora de uso, de estrangeirismos, a exemplo de espanholismos como sem embargo, um dos mais repetidos. O estilo persuasivo pode ser identificado nos textos ricos em notas de rodapé e de argumentos de autoridade, a exemplo de excertos de doutrina. O modelo aglutinativo é marcado pelo exagero, pelo uso interminável de referências, citações e indicações. Toma-se o galho, perde-se a árvore.

Benjamin Cardozo identificava na fala jurídica um sentido narrativo, classificando-o. É nesse aspecto que se pode falar em tentativa intelectual que marca a fixação de modo literário no direito. E além deste esforço classificatório há também uma poética na redação jurídica que marca Benjamin Cardozo. Estilo, retórica, hermenêutica e imaginação criadora identificam suas decisões judiciais. É o que se constata no estudo de seus votos e sentenças mais famosos, a exemplo de In re Swart´z Will, Killiam v. Metropolitan Life Insurance Company, Foreman v. Foreman, Hynes v. New York Central Railroad, Ostrowe v. Lee, Marchand v. Mead-Morrison Manufacturing Company, entre outros (cf. WEISBERG, 1989, p. 283 e ss.).

Benjamin Cardozo protagoniza o magistrado poeta e filósofo (cf. COLEMAN, 2000, p. 285 e ss.). Escrevia com graça; suas decisões qualificam monumentos de educação jurídica (cf. SHIENTAG, 1930, p. 597 e ss.); identificam força diretiva na ciência jurídica (cf. ZELERMEYER, 1989, p. 213 e ss.). Ao plasmar sentido literário nos textos jurídicos Benjamin Natan Cardozo mostra-se como um pai fundador, um founding father, da identificação tão profícua da literatura no direito, a exemplo do que Wigmore representa no que se refere ao direito na literatura. Sigo com Lon Fuller.

Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Direito e literatura.: Os pais fundadores: John Henry Wigmore, Benjamin Nathan Cardozo e Lon Fuller. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1438, 9 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9995. Acesso em: 22 nov. 2024.

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