II – DOS FUNDAMENTOS
1. Da competência material
A competência material é de natureza absoluta, sendo fixada em razão da pretensão deduzida em Juízo, cabendo ao magistrado aferir a natureza da causa de pedir e dos pedidos formulados na inicial. A Justiça Laboral possui regramento sobre a matéria no art. 114 da Constituição da República, cuja redação é a seguinte:
Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II as ações que envolvam exercício do direito de greve;
III as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;
IV os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data , quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;
V os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o;
VI as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;
VII as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;
VIII a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a , e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir;
IX outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.
Carlos Henrique Bezerra Leite ensina que o dispositivo constitucional acima descrito divide a competência material desta Especializada em três espécies: a original (ações oriundas da relação de emprego ou da relação de trabalho), a derivada (“outras controvérsias na forma da lei”) e a normativa (questões sindicais ou de direito coletivo). Leciona, outrossim, que “para fins de incidência do direito processual do trabalho, o art. 114, I, da CF, com nova redação dada pela EC n. 45/2004, alargou a competência da Justiça do Trabalho para processar as ações oriundas tanto da relação de emprego quanto da relação de trabalho” (Curso de direito processual do trabalho. 16ª ed., São Paulo: Saraiva, 2018, p. 216 e 245/249).
No feito em análise, restou demonstrada a existência de uma prestação de serviços na modalidade estágio, conforme comprova o termo de fls. 61/62 e o contrato firmado entre a ré e o CIEE (fls. 64/72). O estágio, por sua vez, é espécie do gênero relação de trabalho (Maurício Godinho Delgado. Curso de Direito do Trabalho. 18ª ed., São Paulo: LTr, 2019, p. 373). Logo, reputo atraída a competência desta Justiça, por aplicação do art. 114, I, da CF, não servindo a ADI 3536/DF para obstar o processamento do feito, dado que o vínculo mantido com a administração não é de natureza estatutária ou administrativa.
O fato de a causa de pedir envolver furto de veículo é irrelevante, pois o Poder Constituinte Derivado incluiu as pretensões indenizatórias no leque de pretensões dedutíveis nesta Especializada (art. 114, VI, da CF). Ademais, o STJ já pontuou que a competência da Justiça do Trabalho não se restringe apenas às relações de emprego singularmente consideradas (CC 118.842/RS), cabendo a este ramo do Judiciário apreciar demandas que envolvam dano decorrente de furto de veículo em estacionamento, quando a questão se relacionar com o trabalho (CC 82.729/SC). Assim sendo, reputo ultrapassada a jurisprudência mencionada pela ré na defesa.
Rejeito, pois, a preliminar suscitada.
2. Da legitimidade passiva
Tenho por presente a pertinência subjetiva da ação, dado que a parte demandante dirige suas pretensões em face da reclamada, apontando-a como devedora do direito material controvertido, fato que basta para legitimá-la no processo.
Releva sublinhar que a relação jurídica processual é analisada sob o prisma da teoria da asserção, dispensando a exata coincidência com a material que lhe é correspondente. De mais a mais, é evidente que as questões atinentes à responsabilidade devem ser dirimidas no mérito, descabendo ao juízo arvorar-se sobre tal matéria em sede prefacial.
Dito isso, rejeito a preliminar.
3. Da indenização por danos
O deferimento da indenização por responsabilidade civil somente encontra lugar quando a parte demonstra a existência de um dano que, além de injusto e juridicamente relevante, se revela passível de imputação ao adverso. Para que a ré seja responsabilizada, portanto, impõe-se que tenha agido com dolo ou culpa no ato lesivo, cabendo à reclamante provar o nexo entre dano sofrido e a conduta do ente público. É o que se extrai dos artigos 927 do Código Civil e 818 da CLT.
Registro que não se aplica ao caso o art. 37, § 6º, da CF, pois a Administração Pública não foi a autora do furto noticiado na inicial. Tampouco encontra lugar a Súmula 130 do STJ, dado que a relação havida entre as partes não é de consumo. Por fim, também deve ser repelida a incidência do art. 2º da CLT, já que a municipalidade não se equipara ao empregador. Como já dito acima, nem mesmo existem as figuras do empregado e do empregador, já que a relação de trabalho é meramente genérica (estágio).
Dessa maneira, a análise do comportamento da ré deve ser feita dentro dos limites de sua conduta, que se mostrou restrita ao fomento do estágio com permissão para que o estagiário utilizasse o estacionamento público do local de trabalho. Tal uso, na prática, se deu de modo gratuito e precário, sem qualquer formalização de contrato. Salvo melhor juízo, o negócio jurídico havido nem mesmo corresponde ao comodato, visto que a coisa (veículo) não foi dada para proveito do depositário, mas sim como forma de agrado, utilidade e conveniência exclusiva do depositante (proprietário do veículo). Também não se confunde com o depósito, já que este é escrito (art. 646). Logo, tem-se por restrita a possibilidade de responsabilização da ré, haja vista a proteção que a ordem jurídica confere aos que agem de boa-fé ou praticam negócios gratuitos. Veja-se, por exemplo, os arts. 114, 295 e 736 do Código Civil.
De todo modo, ainda que houvesse contrato de guarda, só caberia a responsabilidade do comodatário de modo excepcional, inexistindo espaço para que este arque com infortúnios que não deu causa e tampouco participou (art. 582 do Código Civil). O mesmo se diga do depositário, que só responde por perdas e danos caso se sirva indevidamente da coisa depositada ou a dê para outrem sem licença do depositante (art. 640 do Código Civil).
Como se percebe dos autos, não houve qualquer alegação de que a ré tenha guardado o veículo de modo diverso daquele feito com seus próprios bens; tampouco foi narrado o uso do automóvel pela Administração, muito menos a cessão por parte dessa. Destarte, mostram-se ausentes as hipóteses de responsabilização previstas pelo Código Civil, sendo vedado ao juiz desconsiderar a lei (art. 2º da CF), mais ainda para prestigiar o interesse do particular em detrimento do interesse coletivo (art. 8º da CLT e 5º da LIND).
Cumpre salientar que a guarita e a presença de vigilantes no local, destinados prioritariamente a resguardar o patrimônio público, geram mera expectativa de segurança sem que surja daí a obrigação jurídica de evitar ocorrências praticadas por terceiros (art. 5º, II, da CF). Com efeito, se nem mesmo o fornecedor responde pelo fato de terceiro (art. 14, § 3º, II, do CDC), o que se dirá da ré, que, como já dito, não obteve qualquer ganho com a guarda gratuita do bem, praticando ato precário e em benefício exclusivo da parte autora.
Por sinal, se houvesse tal obrigação de resultado, pessoa alguma se preocuparia em ajudar quem quer que fosse, dado que seu ato gracioso somente lhe traria encargos sem qualquer contrapartida, sofrendo com deveres que nem mesmo os fornecedores que buscam o lucro no mercado estão submetidos. Em termos pragmáticos, seria muito mais fácil para a municipalidade proibir o uso do estacionamento, situação que apenas prejudicaria os prestadores de serviço da Praça da Juventude, aumentando ainda mais a chance de terem seu patrimônio alvo de ataque. O Poder Público, por outro lado, não teria o custo com segurança e nem mesmo veria o risco de ser processado por infortúnios ocorridos no local. Em suma, uma vez universalizada tal conduta, o maior prejudicado seria justamente o trabalhador.
Insta mencionar que a inicial, em momento algum, alegou que a ré se apropriou do bem, e nem mesmo narrou a participação do vigilante no ato, não havendo quaisquer elementos que indiquem tais situações no boletim de ocorrências (fls. 11). Destarte, mostra-se também intransitável a via dos arts. 932 e 933 do CCB, restando patente que o furto foi praticado por terceiro alheio aos quadros da Administração Pública, mediante ilícito desvinculado do contrato de estágio, bem assim do ato precário de guarda do veículo.
Desse modo, diante dos limites do libelo e da legislação aplicável à matéria, não se afigura juridicamente possível responsabilizar a demandada, pois não foi ela quem causou o dano. Assim sendo, julgo improcedentes os pedidos formulados.
4. Da justiça gratuita. Honorários advocatícios
Tenho por presentes os requisitos necessários à concessão das prerrogativas da Lei 1.060/50 c/c art. 98 do CPC, pois a declaração trazida com a peça vestibular preenche os requisitos formais e, além disso, não foi desconstituída pelo adverso, não bastando mera impugnação para tanto.
Desse modo, defiro os benefícios da justiça gratuita, inclusive com esteio no § 3º do art. 790 da CLT, valendo salientar que tal assistência é “integral” de acordo com a Lei Maior de nosso ordenamento jurídico (art. 5º, LXXIV, CF), razão pela qual mostra-se descabida qualquer cobrança de custas ou honorários sucumbenciais da parte autora, ao menos no caso em tela, tendo em vista a ausência de crédito que infirme a hipossuficiência já mencionada.
5. Considerações finais
Apenas para evitar a oposição de recurso com escopo procrastinador, consigno que o Juízo não se encontra obrigado a rebater os argumentos contingenciais e/ou as alegações meramente subsidiárias, que, por sua própria natureza, são incapazes de atingir a validade da decisão já proferida (art. 489, § 1º, IV, do CPC c/c art. 15 da IN 39/16 TST).
Por lealdade processual, impende lembrar que os embargos declaratórios não servem para discutir o conteúdo das provas e tampouco para obter a reforma do julgado, nem mesmo no tocante a eventuais critérios de atualização do débito e/ou reanálise da justiça gratuita, devendo eventuais irresignações serem dirigidas à instância revisora pelo meio impugnativo adequado. Não servem, ainda, para obstar a fluência de qualquer prazo, ressalvada a previsão do art. 897-A, § 3º, da CLT. A oposição de aclaratórios com intuito de criar embaraço poderá ser interpretada como ato atentatório à dignidade da justiça, atraindo a cominação dos artigos 77, § 3º, e 1.026, § 2º, do CPC.
Finalmente, atentem as partes que, em caso de eventual omissão ou nulidade, o próprio Tribunal é competente para complementar e sanear o feito de modo imediato, sem necessidade de baixa dos autos ao primeiro grau (art. 1.013, §§ 1º e 3º, do CPC c/c Súmula 393 do C. TST), que inclusive já encerrou sua função jurisdicional na fase cognitiva, sem qualquer necessidade de pré-questionamentos (Súmula 422 do TST e OJ 118 da SDI-1).
São estas, portanto, as razões de decidir.
III – DA CONCLUSÃO
Diante do exposto e nos termos da razão de decidir supra, que integra este dispositivo para todos os efeitos, julgo IMPROCEDENTES os pedidos formulados por XXXXX em face de MUNICÍPIO DE MOGI DAS CRUZES, que fica absolvido de qualquer condenação nestes autos (arts. 832 da CLT e 487, I, do CPC).
Custas processuais pela autora, no importe de R$ 530,00 (2% do valor da causa), de cujo recolhimento fica isenta na forma da lei (arts. 789, II e 790, § 3º, da CLT).
Intimem-se as partes.
Mogi das Cruzes - SP, 05.06.2020.
Juiz do Trabalho Substituto