Ementa
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. AQUISIÇÃO DE IMÓVEL PARA ALUGUEL. ATRASO NA ENTREGA. AÇÃO DE RESCISÃO DO CONTRATO CUMULADA COM RESSARCIMENTO. FIGURA DO INVESTIDOR OCASIONAL. APLICAÇÃO DO CDC. POSSIBILIDADE. DETERMINAÇÃO DE RETORNO DOS AUTOS PARA ORIGEM. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1.
Relatório
O presente parecer versa sobre agravo interno interposto pela BRAZILIAN MORTGAGES COMPANHIA HIPOTECÁRIA junto do BANCO PAN S/A, em razão de recurso especial provido dos autores MARCELO KNOEPFELMACHER e JULIANA ROSENTHAL KNOEPFELMACHER, em razão de conflito envolvendo adquirição de imóvel pelas partes autoras, em litisconsórcio, sobre o conceito de consumidor – se os autores da ação ora analisada se enquadram como “investidores ocasionais” e, portanto, consumidores ou não.
Decidiu o ministro relator do caso RAUL ARAÚJO negou provimento ao recurso das empresas rés e o retorno do caso para a instância de origem, visto que houve dissidência entre o STJ e o TJSP, porquanto este nega aos autores a condição de consumidores, logo vulneráveis, mas aquele entende, firmado em sua jurisprudência, que cabe mitigação da teoria finalista se constatada a vulnerabilidade das partes autoras.
Serão analisados os seguintes pontos ao longo da fundamentação do presente parecer jurídico:
O conceito de consumidor: teoria finalista e hipóteses de mitigação desta;
Vulnerabilidade: se pode ou não, procede ou não procede, uma pessoa jurídica, quiçá sociedade empresária, ser considerada consumidora e, logo, vulnerável;
Incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC): como norma de ordem pública na proteção dos vulneráveis nas relações de consumo, cabe em juízo a aplicação às pessoas jurídicas privada ou não procede;
Fundamentação jurídica
Em primeiro plano, evidencia-se que o conceito de consumidor é até subjetivo, sendo difícil na doutrina e na jurisprudência defini-lo, visto haver divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema. As principais correntes existentes hoje, majoritárias na doutrina e dissidentes na jurisprudência, são as teorias finalista e finalista aprofundada ou mitigada.
A teoria finalista é consagrada no caput do art. 2° do CDC, enunciando este: “Art. 2º. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (BRASIL, 1990). Essa teoria se atém a dois conceitos que caracterizam o consumidor: ser destinatário fático final do serviço e destinatário fático econômico. O primeiro diz que consumidor é aquele que retira o produto ou serviço da cadeia de produção, não sendo intermediário nem produtor; o segundo diz que consumidor é aquele que não utiliza o produto ou serviço para aferição de lucros. Desse modo, constrói-se um conceito restritivo de consumidores, não adotada pela corte superior ora analisada no caso em questão, com, por exemplo, microempresários (MEI) ou empresas de pequeno porte (EPP), mesmo sendo caracterizados como vulneráveis e até hipossuficientes, não são consumidores fático finais.
Já a teoria finalista aprofundada acaba mitigando o conceito estrito de consumidor do caput do art. 2° do CDC, ao ampliar – com uma interpretação extensiva – o rol de consumidores. A exemplo: um MEI pode ser considerado consumidor em determinado caso concreto, mas deve-se constatar por exame probatório sua vulnerabilidade e, talvez, hipossuficiência. É uma teoria, a qual o presente autor se filia, mais abrangente, tendo em vista que há empresas que, apesar de não serem destinatários fático econômicos, possuem vulnerabilidade perante outras sociedades empresárias, mitigando e ampliando, ante o exposto, o conceito estrito e restritivo do caput do art. 2° do CDC.
De acordo com TARTUCE (2024, p. 32) “Todo consumidor é sempre vulnerável, característica intrínseca à própria condição de destinatário fático final do produto ou serviço (...) Portanto, pode-se dizer que a vulnerabilidade é elemento posto da relação de consumo e não um elemento pressuposto, em regra.” O eminente doutrinador diz isso em relação a uma caraterística do art. 4, I do CDC, dizendo:
Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; (BRASIL, 1990).
Decerto que o presente autor concorda com Flávio Tartuce, mas ampliando aquele para pessoas jurídicas ou sociedades empresárias – vide MEI e EPP –, porquanto a vulnerabilidade não é elemento restrito ao consumidor pessoa física, mas também à pessoa jurídica. Esta também possui tutela na doutrina e na jurisprudência, inclusive no caput do art. 2° do CDC, que amplia o título de consumidor para a pessoa jurídica de Direito Privado. A pessoa jurídica se ancora na teoria da ficção, porém também é capaz de contrair direitos e obrigações, mesmo não sendo pessoa natural. Ela (pessoa jurídica) possui personalidade, como o direito à honra e imagem objetivas (SANTANA, 2009). Diante disso, por que não poderia estender o conceito de consumidor à essas pessoas de direito privado?
Em último ponto, vale destacar se a incidência da Lei 8.078/1990 é procedente em determinados casos. Acredita o presente autor que sim, pelo quesito da vulnerabilidade da pessoa jurídica frente a outras sociedades empresárias. Ela pode ter vulnerabilidade técnica, econômica, fática ou até mesmo o que MARQUES (2021) chama de vulnerabilidade informacional. Uma microempresa pode não ter o devido acesso à informação adequada, tutelada no art. 6, III do CDC, não ter conhecimento técnico sobre o produto ou serviço adquirido (por não ser sua área de atuação, por exemplo), fática (por alguma limitação de fato).
Transcreve-se a ementa do julgado que se escreve sobre:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. AQUISIÇÃO DE IMÓVEL PARA ALUGUEL. ATRASO NA ENTREGA. AÇÃO DE RESCISÃO DO CONTRATO CUMULADA COM RESSARCIMENTO. FIGURA DO INVESTIDOR OCASIONAL. APLICAÇÃO DO CDC. POSSIBILIDADE. DETERMINAÇÃO DE RETORNO DOS AUTOS PARA ORIGEM. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1.
1. Segundo a jurisprudência do STJ, "o adquirente de unidade imobiliária, mesmo não sendo o destinatário final do bem e apenas possuindo o intuito de investir ou auferir lucro, poderá encontrar abrigo da legislação consumerista com base na teoria finalista mitigada se tiver agido de boa-fé e não detiver conhecimentos de mercado imobiliário nem expertise em incorporação, construção e venda de imóveis, sendo evidente a sua vulnerabilidade. Em outras palavras, o CDC poderá ser utilizado para amparar concretamente o investidor ocasional (figura do consumidor investidor" (REsp 1.785.802/SP, Relator Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/2/2019, DJe de 6/3/2019). Essa é a situação dos autos.
2. Outrossim, a questão referente à incidência da norma específica da Lei 4.591/64 deve ser analisada pelo Tribunal de Justiça, com o retorno dos autos para a origem, sob pena de supressão de instância.
3. Agravo interno desprovido. Manutenção da decisão que deu parcial provimento ao recurso especial dos autores da demanda, ora agravados, determinando o retorno dos autos para o Tribunal de Justiça.
(AgInt no REsp n. 1.829.360/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 11/11/2024, DJe de 29/11/2024).
O presente caso, no primeiro tópico da ementa, diz sobre o “investidor ocasional” que, nesse julgado, é aquele que aluga imóvel para benefício próprio. Entretanto, como pode-se ver no inteiro teor do acórdão, o Relator Ministro RAUL ARAÚJO, em seu voto, afirmou que nos autos atestava-se a vulnerabilidade das partes autoras, visto que os autores possuíam desconhecimento técnico a respeito do mercado imobiliário, constatando a vulnerabilidade técnica, apesar de não serem consumidores fático econômicos finais.
Conclusão
Conclui-se, diante do exposto, que nos casos em que houver, comprovadamente, a vulnerabilidade técnica, informacional, fática ou econômica entre uma das partes do contrato, é louvável a aplicação da teoria finalista mitigada, visto que as pessoas jurídicas – apesar da teoria da ficção ser predominante na doutrina e na jurisprudência – possuem personalidade jurídica, contraindo direitos e obrigações com pessoas jurídicas mais hiper suficientes que elas, a exemplo dos microempresários e empresários de pequeno porte. Saúda-se, portanto, o voto do Ministro Relator RAUL ARAÚJO, agindo acertadamente, com lucidez e concisão exemplar.
Referências bibliográficas
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Decreto Presidencial nº 2.181, de 20 de março de 1997, Brasília, DF, 1997. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078compilado.htm. Acesso em: 9 dez. 2024.
MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcellos; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 9 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2021.
SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. 1 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, v. 38.
TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: Direito Material e Processual. 13 ed. São Paulo: Editora Método Grupo GEN, 2024.