A LEI ORGÂNICA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Não se discute que, no âmbito municipal, cabe à Lei Orgânica e ao Regimento Interno da Câmara Municipal a tarefa de fixar as normas a serem cumpridas pelo legislativo. Entretanto, por outro lado, não há que se discutir, também, que tais normas não podem se afastar dos chamados Princípios Constitucionais. Por exemplo, a aprovação de emendas à Lei Orgânica somente poderá ocorrer por meio de voto de pelo menos 2/3 da totalidade dos Vereadores. A exigência do quorum de 2/3 vem do artigo 29 da Constituição Federal e por isso não pode o legislador municipal alterá-lo, quando dispuser sobre a matéria, na Lei Orgânica Municipal. Da mesma forma ocorre com as contas do executivo municipal. A CF exige, também, quorum qualificado de 2/3 para rejeição, pela Câmara, do parecer prévio exarado pelo órgão de Contas competente.
Uma vez atendidos os princípios constitucionais pode o legislador trazer para a esfera municipal as normas insculpidas na Carta Magna e delinear a forma como o Município será estruturado legalmente.
No dizer de Mayr Godoy : "Ao aplicar-se a simetria constituinte dos poderes de governo, exsurge, no direito constitucional brasileiro, a Câmara Municipal, eleita pelo povo, como titular do poder organizante para, em nome do povo, que a constituiu, aprovar e promulgar a Lei Orgânica do Município." Continua o renomado Mestre : "Essa privilegiada posição do município brasileiro e de sua Câmara Municipal decorre da realidade constitucional de que, como entidade política, seus poderes são próprios, não os recebendo nem da União nem do Estado-Membro; provém da Constituição que o constituiu, daí porque sua organização cabe à sua própria Câmara, que tem de respeitar, nessa tarefa, apenas os princípios e preceitos constitucionais." (16) ( grifo nosso)
Pode ser que uma Lei Orgânica Municipal contenha disposição que diminua o quorum, para emenda-la, fixando-o em 1/3, ou maioria simples ou mesmo maioria absoluta. Será sempre uma disposição inconstitucional que não poderá prevalecer sobre disposição constitucional: "O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias , e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal..." (17) (grifamos).
Da mesma forma com respeito ao Parecer Prévio emitido pelo Tribunal de Contas nas contas do Executivo : "O parecer prévio , emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal." (18) .Não pode o legislador municipal alterar esse quorum para menos ou para mais.
Desta forma, no caso in concreto, o inciso XIV do artigo 21 da Lei Orgânica do Município, que dispõe que compete exclusivamente à Câmara Municipal julgar as contas prestadas pelos membros da de sua Mesa, já nasceu com grave vício, pois a Constituição Federal não prevê este julgamento. Se não prevê não poderia o legislador municipal criá-lo como fez, para seu próprio benefício. O artigo 31 da Carta Maior não faz, em nenhum de seus parágrafos, qualquer referencia a julgamento de Mesa Diretora ou Câmara Municipal, por parte do Poder Legislativo. Admitir o contrário seria uma agressão ao então vigente princípio da Moralidade Administrativa. Daí se conclui que a norma municipal citada foi editada em frontal agressão a preceito Constitucional. Contém vício formal, e por isto padece de inconstitucionalidade formal, conforme já ensinou o douto José Afonso da Silva: "Essa incompatibilidade vertical de normas inferiores (leis, decretos, etc) com a constituição é o que tecnicamente se chama de inconstitucionalidade das leis ou dos atos do poder público, e que se manifesta sob dois aspectos: a) formalmente, quando tais normas são formadas autoridades incompetentes ou em desconformidade com o procedimento estabelecido pela Constituição... (19)"
Mas, se mesmo após o Julgamento das Contas efetuado pelo Tribunal, entender a Mesa Diretora de coloca-lo sob o crivo do Plenário da Câmara, qualquer que seja a decisão ali tomada, certamente será anulável , uma vez que, como restou sobejamente delineado, o Tribunal de Contas tem legitimidade, competência e autonomia para Julgar as contas da Mesa Diretora da Câmara Municipal.
DAS MEDIDAS CABÍVEIS
Antes de passar ao estudo das medidas cabíveis, in casu, resta a indagação: Qual seria a finalidade precípua de tal "julgamento." ?
Note-se que inexiste finalidade e aplicabilidade da decisão da Câmara. É sabido que a finalidade dos julgamentos é a de responsabilizar os ordenadores de despesas por atos de improbidade administrativa, aplicando-lhes, quando for o caso, as sanções previstas em lei, sendo que as decisões dos Tribunais de Contas tem força de título executivo. No campo eleitoral, sabe-se que cabe ao Tribunal de Contas, por força do artigo 11, parágrafo 5º da Lei 9.504/97 (20), remeter à Justiça eleitoral a relação dos ordenadores de despesas que tiveram suas contas rejeitadas por irregularidades insanáveis e por decisão irrecorrível do órgão competente, com a finalidade de torna-los inelegíveis. A Resolução, que contrariou o Julgamento do Tribunal de Contas do Estado, não tem força legal para executar o ordenador de despesas do legislativo e muito menos para torna-lo inelegível. Nem mesmo teria a Mesa como dar ciência ao Tribunal de Contas das "irregularidades" encontradas pela Edilidade, de vez que aquele Tribunal não as encontrou, por ocasião de seu julgamento.
Enfocando o caso concreto, temos duas alternativas:
A primeira seria o mais lógico e o mais sensato. O reconhecimento, pelo Plenário da Câmara, de que a Resolução que promulgou a rejeição do julgamento das contas pelo Tribunal competente padece de ilegalidade, o que implicaria na sua retratabilidade por via de Projeto de Decreto Legislativo revogando-o . Mesmo porque, a Resolução não é , na técnica legislativa, a forma mais correta para o que se pretendeu. A Resolução, embora seja ato de interesse do Poder Legislativo e de sua exclusiva competência, produz apenas efeito interno, ao contrário do Decreto Legislativo que, tendo as mesmas características da Resolução, produz efeito externo.
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A segunda seria a busca da tutela jurisdicional, com respaldo no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal, no sentido de invalidar o ato promulgado pela Mesa Diretora da Câmara, tendo em vista que a sua ilegalidade é flagrante, e considerando que em relação ao processo legislativo municipal as reiteradas decisões do STF não deixam dúvidas de que os princípios constitucionais devem ser compulsoriamente seguidos, o que não ocorreu. Não havendo a revogação pelo próprio Órgão ou Poder que praticou o ato lesivo e ilegal cabe ao Poder Judiciário faze-lo, desde que provocado pelos meios processuais cabíveis.
CONCLUSÃO
Posto isto, de tudo concluimos que:
1) A função do Tribunal de Contas é de suma importância no contexto da Administração Pública . Constitui-se de auditorias ordinárias, assim entendido, as auditorias de rotina pré-estabelecidas, e executadas pelas Controladorias Técnicas objetivando verificar a legitimidade, legalidade dos atos contábeis, financeiros, orçamentários e patrimoniais dos Três Poderes. Nas contas do Executivo Municipal ele emite um Parecer que, por força de hábito, rotulou-se de prévio quando, na verdade, tal parecer é, tecnicamente, um parecer que o vincula à aprovação ou não das contas. Tanto que seu conteúdo somente deixa de prevalecer se o Legislativo se manifestar, por votação de 2/3 de sua totalidade, em contrário e desde que o ato administrativo que assim entender venha devidamente acompanhado de argumentos técnicos que possam contradizer o contido no parecer.
Em se tratando de Poder Legislativo sua função é de JULGAR, por força constitucional, as contas da Mesa Diretora destas Casas de Leis. À Câmara não cabe promulgar qualquer ato, nem oriundo de votação do Plenário, desconstituindo o contido no Julgamento das Contas de sua Mesa Diretora uma vez que o julgamento das contas é soberano, privativo e definitivo. É soberano porque a própria Lei Maior lhe concedeu esta soberania. É privativo porque somente o Tribunal de Contas tem competência delegada para aferir as contas públicas, não sendo possível transferir tal atribuição para outro órgão, nem mesmo por qualquer ato emanado da própria Corte. É definitivo porque ultrapassado os prazos recursais contidos em sua Lei Orgânica não cabe qualquer outro julgamento sobre o mérito da decisão. Nem mesmo pelo Poder Judiciário.
2) O Plenário não tem competência para rejulgar, por mera deliberação, as contas de sua Mesa Diretora que já foram julgadas pelo Tribunal de Contas. O ato que promulga tal decisão é perfeitamente anulável, sob pena de se permitir a imoralidade de um órgão, cujas contas fossem julgadas irregulares, rever e derrubar, por si próprio, um acórdão prolatado após exaustivas verificações, estudos e pareceres técnicos. Determina a Constituição que somente as contas anuais do Poder Executivo Municipal não estão sujeitas ao julgamento definitivo dos Tribunais de Contas.
3) Os artigos 29 e 30 da Constituição Federal deram autonomia aos municípios outorgando-lhes o direito de legislar sobre assuntos de interesse local. Outorgaram-lhe, ainda, o direito de dispor da forma de se estruturarem através de sua própria Lei Orgânica. Entretanto, a par disso, não pode o legislador municipal nela incluir normas incompatíveis com os princípios constitucionais. A Carta Magna não prevê em nenhum de seus artigos a possibilidade do Legislativo Municipal aprovar contas de sua própria Mesa Diretora, logo, não tem nenhuma lógica qualquer preceito, nesse sentido, em Lei Orgânica.
4) Quanto á eficácia da decisão do Tribunal de Contas, ela pode ser discutida e examinada pelo Poder Judiciário, tendo em vista o princípio constitucional da inafastabilidade, ressalvando-se, porém, que a manifestação do Judiciário somente se dará à vista de ilegalidade manifesta ou vício de aspecto formal . No caso especifico da consulta formulada, o ato da Mesa Diretora , consubstanciado na Resolução 005/2001, forma de proposição que só produz efeitos interna corporis, ao contrário do Decreto Legislativo, se não for revogado ou anulado pelo próprio órgão que o promulgou, deve ser apreciado pelo Poder Judiciário que poderá torna-lo nulo, eis que originado de decisão não prevista nas normas constitucionais vigentes, praticado por órgão incompetente para promulgá-lo, e, por isso proferido com defeito de formalidade.
É o parecer.
C.Itapemirim, 15.0.2001
Nelson de Medeiros Teixeira
A DVOGADO - Assessoria Jurídica e Legislativa
NOTAS
Súmula 473 do STF
Ap. Cível 89.01.23993-0/MG- DJU de 14.9.92-pág. 28.119, rel. Adhemar Maciel- . 3a Turma.
J.Cretella Jr. Dos Atos Administrativos Esenciáis- 1ª Ed. 1995-forense, pág. 448
Revista Interesse Público, 8-2000, pág. 185
Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União
Curso de Direito Administrativo, 13a ed. Malheiros Editores
Ob. Citada- pág. 220
Curso de Direito Constitucional Positivo-3a ed. Ed. Rev. Dos Tribunais, pág. 245
Curso de Direito Administrativo, Ed. Malheiros, 1994, pág. 50
Julgamento das Contas Municipais. Ed. Del Rey, 1995, pág. 57/58
Ob. Citada, pág. 58/59
Acórdão 139- TRE-ES- Processo 1.568- Classe D- Muniz Freire-ES
Acórdão 51/2000-Classe 22- Afonso Cláudio-ES. Rel. Juiz Macário Ramos Júdice Neto
Acórdão 13174-CF, art. 71,I- TSE-TP-30.09.96
Acórdão 13475-TSE-TP, 22.10.96
A Câmara Municipal, 4a ed. Ed. Leud, 1994
Constituição Federal- Artigo 29
Constituição Federal- Artigo 31, parágrafo 2º
Direito Constitucional Positivo, Rev. Dos Tribunais- 1995, pág. 16
Estabelece normas para as eleições