I - Relatório
Trata-se de questionamento acerca da inclusão, ou não, dos juros e multa da dívida ativa tributária na base de cálculo do repasse ao Legislativo Municipal.
O atual entendimento do Município de _____________ não inclui os juros e multa da dívida ativa tributária no cálculo do repasse à Câmara Municipal, por compreender que essas receitas não constituem receitas tributárias, vez que não podem ser subsumidas ao conceito de tributo constante do art. 3º do CTN.
II - Fundamentação
Para melhor compreensão do questionamento formulado, faz-se necessária a leitura sistemática do art. 29-A da Constituição Federal, que determina os limites e a base de cálculo do repasse do Executivo ao Legislativo Municipal:
"Art. 29-A. O total da despesa do Poder Legislativo Municipal, incluídos os subsídios dos Vereadores e excluídos os gastos com inativos, não poderá ultrapassar os seguintes percentuais, relativos ao somatório da receita tributária e das transferências previstas no § 5º do art. 153 e nos arts. 158 e 159, efetivamente realizado no exercício anterior:
(...)
§ 2º. Constitui crime de responsabilidade do Prefeito Municipal:
I – efetuar repasse que supere os limites definidos neste artigo;
(...)" (grifos não constam do original).
Portanto, infere-se que tanto os gastos do Legislativo como os repasses dos valores oriundos do Executivo, são limitados a percentuais sobre uma mesma base de cálculo, qual seja, a soma da receita tributária e das transferências previstas no § 5º do art. 153 e nos arts. 158 e 159.
Ainda que fruto também de algumas controvérsias acerca de sua delimitação, as transferências previstas fogem do escopo deste estudo, que se concentrará em definir o conceito da chamada receita tributária, nos termos previstos na Constituição Federal, buscando concluir pela inclusão, ou não, dos juros e multa da dívida ativa tributária no rol de elementos integrantes de sua composição.
A Lei nº 4.320/64, que "estatui as normas gerais de direito financeiro para a elaboração e controle dos orçamentos", preceitua em seu art. 11 que a receita classificar-se-á em Receitas Correntes e Receitas de Capital. Conforme o § 1º do mesmo dispositivo:
"§1º. São Receitas Correntes as receitas tributárias, de contribuições, patrimonial, agropecuária, industrial, de serviços e outras e, ainda, as provenientes de recursos financeiros recebidos de outras pessoas de direito público ou privado, quando destinadas a atender as despesas classificáveis em Despesas Correntes" (grifo não consta do original).
O mesmo art. 11, agora em seu § 4º, vem determinando a seguinte classificação:
"§ 4º. A classificação da receita obedecerá ao seguinte esquema:
RECEITAS CORRENTES
Receita tributária
Impostos
Taxas
Contribuições de Melhoria
(...)
Transferências Correntes
Receitas Diversas
Multas
Cobrança da Dívida Ativa
Outras Receitas Diversas
(...)" (grifos não constam do original).
Portanto, a Lei Geral do Direito Financeiro estabelece que a receita orçamentária é composta pelas receitas correntes mais receitas de capital, sendo que nas receitas correntes é que se incluem as chamadas receitas tributárias, compreendidas, segundo o mesmo dispositivo legal, pelos impostos, taxas e contribuições de melhoria.
Já a dívida ativa, assim como as multas, são classificadas como receitas diversas, ou seja, categoria distinta e autônoma de receitas correntes, mas no mesmo nível classificatório das receitas tributárias.
Tal determinação, respeitadas as nuances terminológicas, é corroborada pela Secretaria do Tesouro Nacional, que, no uso de suas atribuições e conforme art. 50, § 2º, da LC nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), detalha a aludida classificação através do Anexo I da Portaria Interministerial nº 163/2001, que dispõe que a Receita da Dívida Ativa Tributária, bem como, as Multas e Juros de Mora, como Outras Receitas Correntes e não como Receita Tributária propriamente dita. Confira-se:
"(...)
1100.00.00 Receita Tributária
1110.00.00 Impostos
(...)
1120.00.00 Taxas
(...)
1130.00.00 Contribuição de Melhoria
(...)
1900.00.00 Outras Receitas Correntes
1910.00.00 Multas e Juros de Mora
1920.00.00 Indenizações e Restituições
(...)
1930.00.00 Receita da Dívida Ativa
1931.00.00 Receita da Dívida Ativa Tributária
1932.00.00 Receita da Dívida Ativa Não-Tributária
(...)" (grifos não constam do original).
Dessa forma, sob a ótica do direito financeiro, conforme legislação pertinente citada, têm-se como gênero as receitas correntes e receitas de capital, como espécies da primeira, entre outras, as receitas tributárias e receitas diversas (ou outras receitas correntes), sendo sub-espécies das receitas tributárias, os impostos, taxas e contribuições de melhoria, e sub-espécies das receitas diversas (ou outras receitas correntes), as multas, juros, a receita da dívida ativa etc.
Em uma visão restrita e simplista das normas supra, concluiria-se, prematura e equivocadamente, que a receita tributária é composta tão somente de impostos, taxas e contribuições de melhoria, não se incluindo, portanto, nem a receita da dívida ativa tributária, muito menos, os juros e multas dela decorrentes, ambos classificados como categorias autônomas.
Ocorre que o próprio preâmbulo da lei em comento, assim como seu art. 1º, definem que ela "estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal (...)" (grifos não constam do original). Assim, o fim a que se destina a Lei nº 4.320/64 não é outro senão o de estabelecer regras para a elaboração dos orçamentos e balanços dos entes públicos, ou seja, regular de forma geral o planejamento e a execução da atividade financeira do Estado.
Neste escopo, não se deve confundir classificação orçamentária com classificação jurídica. A primeira visa determinar as categorias em que se divide e subdivide um determinado conjunto, segundo critérios de aplicação próprios do sistema orçamentário. A segunda busca a categorização dos elementos conforme a sua natureza jurídica.
Logo, ainda que orçamentariamente classificadas em categorias distintas, não se pode olvidar que a receita oriunda da dívida ativa tributária, bem como, os juros e multa dela decorrentes, comungam com a receita tributária da mesma origem jurídica, qual seja, ambas decorrem de uma obrigação tributária.
Aqui, faz-se necessária uma digressão para o aclaramento do conceito de obrigação tributária (art. 113, CTN) em cotejo com o conceito de tributo (art. 3º, CTN), utilizado, este último, como fundamento do entendimento do Município de ____________ acerca da exclusão da multa e juros da dívida ativa tributária da base de cálculo do repasse do Executivo para o Legislativo Municipal.
O art. 3º do Código Tributário Nacional dispõe que:
"Art. 3º. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada" (grifo não consta do original).
Já o art. 113 do mesmo diploma legal preceitua que:
"Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.
§ 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.
(...)" (grifo não consta do original).
Portanto, observa-se que o conceito de obrigação tributária (art. 113, CTN) é mais amplo do que o de tributo (art. 3º, CTN), pois abrange tanto este, quanto a penalidade pecuniária decorrente. Na esteira deste entendimento o insigne tributarista Aliomar Baleeiro assim se manifestou:
"(...) tanto o tributo propriamente dito e seus consectários (atualização monetária e juros), como as sanções pecuniárias (que decorrem de fato ilícito) são agrupados sob o título de obrigação principal (...) o conceito de obrigação principal é, portanto, mais amplo do que o de tributo propriamente dito, pois tributo não se confunde com sanção de ato ilícito" (BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, 11ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 701).
Na mesma linha de raciocínio Kyioshi Harada afirma:
"(...) pode-se definir obrigação tributária como uma relação jurídica que decorre da lei descritiva do fato pela qual o sujeito ativo (União, Estados, DF ou Município) impõe ao sujeito passivo (contribuinte ou responsável tributário) uma prestação consistente em pagamento de tributo ou penalidade pecuniária (...)" (HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário, 12ª ed., São Paulo: Atlas, 2004, p. 447).
Voltando a lição de Baleeiro:
"(...) é indiscutível que tributo não se confunde, tecnicamente, com sanção. Entretanto a expressão tributo pode significar obrigação tributária lato sensu, que abarca as multas e sanções específicas. O art. 3º do CTN, corretamente, dispõe que tributo não é sanção de ato ilícito. Mas, apesar disso, o mesmo CTN inclui, no seio das chamadas obrigações tributárias principais, o tributo propriamente dito e as multas de toda natureza quer sejam de revalidação, formais, isoladas ou punitivas" (BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, 11ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 863).
Sabe-se, ainda, que é da obrigação tributária que decorre o crédito tributário, e neste sentido o art. 139 do CTN é explícito ao afirmar que:
"Art. 139. O crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta".
Pela lição do prof. Hugo de Brito Machado, crédito tributário é:
"(...) o vínculo jurídico, de natureza obrigacional, por força do qual o Estado (sujeito ativo) pode exigir do particular, o contribuinte ou responsável (sujeito passivo), o pagamento do tributo ou da penalidade pecuniária (objeto da relação obrigacional)" (MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, 24ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 168) (grifos não constam do original).
Para Kiyoshi Harada:
"O crédito tributário nada mais é do que a própria obrigação tributária principal formalizada pelo lançamento, ou seja, tornada líquida e certa pelo lançamento. A obrigação tributária principal, como já vimos, consiste no pagamento de tributo ou de pena pecuniária. O crédito tributário nada mais é do que a conversão dessa obrigação ilíquida em líquida e certa, exigível no prazo estatuído na legislação tributária. Do ponto de vista material, obrigação e crédito se confundem. As partes são as mesmas, o objeto é idêntico e o vínculo jurídico, idem. Surgida a obrigação, deve a Fazenda declarar sua existência, através do lançamento, apurando o quantum e identificando o sujeito passivo, quando então, aquela obrigação passará a existir sob a denominação de crédito tributário" (HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário, 12ª ed., São Paulo: Atlas, 2004, p. 463) (grifos não constam do original).
A importância destas conceituações não é outra senão identificar a origem da receita tributária. Não se pode definir o conteúdo da receita tributária a partir do conceito literal e restritivo de tributo. A questão é mais ampla. A receita tributária decorre do efetivo pagamento de créditos tributários. Por sua vez, estes decorrem de obrigações da mesma natureza que abarcam tanto os tributos em sentido estrito, como as penas pecuniárias decorrentes.
Petrônio Braz em sua obra "Direito Municipal na Constituição" afirma que:
"São rendas tributárias do Município os rendimentos decorrentes da arrecadação dos tributos municipais, das transferências provenientes de sua participação na distribuição dos tributos da União e do Estado e as provenientes de seus serviços e atividades" e segue: "As multas decorrentes dos impostos e taxas inscrevem-se como renda tributária, por serem acessórios desses tributos" (BRAZ, Petrônio. Direito Municipal na Constituição, 5ª ed., São Paulo: LED, 2003, p. 445 e 448) (grifos não constam do original).
Acessório aí sob a luz do direito civil e não do tributário. O pagamento das penas pecuniárias é expressamente considerado objeto da obrigação tributária. Assim, para a caracterização da receita tributária como a efetivação do pagamento de um crédito tributário, deve-se fundar a análise sobre o conceito de obrigação tributária e não de tributo.
Neste ponto, retornando a análise para a dívida ativa tributária propriamente dita, o art. 201 do CTN dispõe que:
"Art. 201. Constitui dívida ativa tributária a proveniente de crédito dessa natureza, regularmente inscrita na repartição administrativa competente, depois de esgotado o prazo fixado, para pagamento, pela lei ou por decisão final proferida em processo regular" (grifos não constam do original).
De fato, é o crédito de natureza tributária não adimplido no momento oportuno que, após sua inscrição, compõe a dívida ativa tributária. Este crédito tributário, como anteriormente visto, origina-se da obrigação tributária, cujo objeto é o pagamento tanto dos tributos como das penalidades pecuniárias.
Reforçando este entendimento, o § 2º do art. 2º da Lei nº 6.830/80 (Lei de Execução Fiscal) também preceitua que:
"§ 2º - A Dívida Ativa da Fazenda Pública, compreendendo a tributária e a não tributária, abrange atualização monetária, juros e multa de mora e demais encargos previstos em lei ou contrato" (grifos não constam do original).
E mais, da leitura do próprio texto da Lei nº 4.320/64, que, mesmo classificando a receita da dívida ativa tributária em categoria distinta da multa e juros dela decorrentes (art. 11, § 4º), expressamente define, em seu art. 39, §§ 2º e 4º, que:
"(...)
§ 2º - Dívida Ativa Tributária é o crédito da Fazenda Pública dessa natureza, proveniente de obrigação legal relativa a tributos e respectivos adicionais e multas, e Dívida Ativa não Tributária são os demais créditos da Fazenda Pública...;
(...)
§ 4º - A receita da Dívida Ativa abrange os créditos mencionados nos parágrafos anteriores, bem como os valores correspondentes à respectiva atualização monetária, à multa e juros de mora e ao encargo de que tratam o art. 1º do Decreto-Lei nº 1.025, de 21 de outubro de 1969, e o art. 3º do Decreto-Lei nº 1.645, de 11 de dezembro de 1978.
§
Isto posto, ainda que não possam ser subsumidas ao conceito stricto sensu de tributo constante no art. 3º do CTN, os juros e multa da dívida ativa tributária subsumem-se ao conceito mais amplo de obrigação tributária, conforme art. 113, § 1º do mesmo diploma legal, caracterizando-se, portanto, como receita tributária.
III - Conclusões
Em face das análises e dos entendimentos esposados, e em resposta ao questionamento acerca da inclusão, ou não, dos juros e multa da dívida ativa tributária na base de cálculo do repasse ao Legislativo Municipal, conclui-se que:
1. A identificação da receita tributária sob a ótica do direito financeiro, é restrita a sua classificação segundo critérios próprios do sistema orçamentário, que não deve ser confundida com a classificação jurídica de seus elementos;
2. O crédito tributário decorre da obrigação tributária e tem a mesma natureza jurídica desta que, além do próprio tributo, tem por objeto o pagamento também das penas pecuniárias pertinentes;
3. Para a caracterização da receita tributária, deve-se levar em consideração o conceito mais amplo de obrigação tributária (art. 113, CTN) e não o conceito restrito de tributo propriamente dito (art. 3º, CTN), pois não só o pagamento de tributos alimentam a receita tributária, mas sim o pagamento de créditos tributários em geral;
4. A dívida ativa tributária constitui-se de créditos tributários inadimplidos, sendo que os juros e multas pertinentes são objeto de pagamento do próprio crédito e, conseqüentemente, integrantes também da própria dívida;
5. Por fim, para fins do repasse constitucional de valores do Executivo ao Legislativo municipal, os juros e multa da dívida ativa tributária devem ser incluídos na base de cálculo, pois configuram-se como receitas tributárias, vez que se subsumem ao conceito de obrigação tributária constante no art. 113, §1º, do CTN.
É a manifestação.
S.M.J.
Belém, 17 de março de 2006.
ALBERTO JATENE
OAB/PA 11.793