PARECER JURÍDICO
O homem, ainda o mais pobre – exclamou Lord Chatham, no Parlamento inglês, em 1864 – desafia, na sua quinta, todas as forças da Coroa; sua choupana pode ser frágil, o teto a tremer, o vento a assobiar entre as portas desconjuntadas; ali pode entrar a tempestade, mas o rei da Inglaterra, este não pode entrar! [01]
I – CONSULTA
Consultam-nos CONSTRUTORA MINAS CENTRO LTDA e seu sócio PAULO AFFONSO NOGUEIRA FRANCO, autores da Ação Anulatória n. 00402-2006-028-03-00-7, distribuída perante a MM. 3ª Vara do Trabalho de Betim, em 16-6-2006. Indagam, em suma:
a)as nulidades processuais que gravitam em torno da arrematação ocorrida no caso concreto são suscetíveis de argüição em sede de Ação Anulatória? Ou já estariam preclusas (em face do ajuizamento anterior de Embargos à Arrematação)?
b)podem essas nulidades ser conhecidas de ofício?
c)é possível a expropriação de bem sem Auto de Arrematação e Carta de Arrematação? Pode a Arrematação ser homologada numa tal situação?
d)a penhora de bem de família gera nulidade absoluta, que possa ser conhecida, de ofício, pelo órgão judiciário? Configurou-se, aqui, coisa julgada quanto a essa matéria?
e)é necessária a intervenção do Ministério Público, tendo em vista que o bem de família em questão (sob iminente ameaça de expropriação) é habitado por menor impúbere?
f)a matéria tem caráter constitucional? Há possibilidade de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal? Está presente o pressuposto da repercussão geral?
Examinamos a legislação e os documentos que nos foram apresentados pelos consulentes e passamos a emitir nosso
II – PARECER
Foi proposta a aludida Ação Anulatória, objetivando anular a arrematação ocorrida nos autos da demanda trabalhista n. 01874-1998-049.03.00.7 (na qual o autor fora demandado por seu ex-empregado EDVALDO CORDEIRO DA GUIA), em face de nulidades processuais ali verificadas.
Tal medida processual encontra amparo no art. 486/CPC: "Os atos judiciais, que não dependem de sentença, ou em que esta for meramente homologatória, podem ser rescindidos, como os atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil".
A propósito, ensina Humberto THEODORO JÚNIOR: "Quando não for mais possível a anulação da arrematação dentro dos próprios autos da execução, a parte interessada terá de propor ação anulatória pelas vias ordinárias. Não há sentença no procedimento de arrematação, de sorte que o ato processual em causa é daqueles que se anulam por ação comum, como os atos jurídicos em geral, e não pela via especial da ação rescisória (art. 486)" [02].
No âmbito da Justiça do Trabalho, quanto à competência, é aplicável a OJ 129 da SDI-2/TST: "Em se tratando de ação anulatória, a competência originária se dá no mesmo juízo em que praticado o ato supostamente eivado de vício".
No AUTO DE PENHORA E AVALIAÇÃO, o bem imóvel constrito é assim descrito – f. 10:
01 (hum) terreno com área de 1000 m2, localizado na Rua do Clube, 757, referente ao lote n. 39, da quadra 04, no Condomínio Retiro do Chalé, existindo nele uma casa de 307,50 m2 de construção, conforme cadastro municipal, que ora avalio em R$150.000,00 (cento e cinqüenta mil reais).
A Ação foi julgada improcedente – f. 242/247 e 253/254. Houve interposição de Recurso Ordinário (f. 256/270), atribuído, por distribuição, à Eg. Quarta Turma do Tribunal, tendo como Relator o MM. Desembargador Júlio Bernardo do Carmo e, como Revisor, o MM. Juiz Convocado Fernando Luiz G. Rios Neto – f. 288.
Vislumbra-se, na sentença, argumento no sentido de que teria havido tentativa de utilizar a Ação Anulatória como sucedâneo de Embargos à Arrematação. As questões suscitadas estariam já sepultadas pela preclusão, uma vez que os Embargos já haviam sido julgados improcedentes – em ambos os graus de jurisdição.
Ocorre, no entanto, que é já pacifico na jurisprudência o cabimento de Ação Anulatória, ainda que tenha havido, anteriormente, Embargos à Arrematação. É o que ilustra a seguinte ementa, do Superior Tribunal de Justiça:
1. Cabível a Ação Anulatória de Arrematação mesmo quando anteriormente opostos os competentes Embargos, desde que inconfundíveis as causas de pedir. 2. Recurso Especial conhecido e provido.RECURSO ESPECIAL – EMBARGOS E AÇÃO ANULATÓRIA DE ARREMATAÇÃO – CABIMENTO –
(STJ, 3ª Turma, REsp 54374/AM; 1994/0029069-1; Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito. DJ 14-10-1996, p.39003)
E, no caso em questão, é nítida a diversidade de causa de pedir (entendida esta como os fatos sobre os quais se assenta a pretensão). A ausência de garantia e pagamento tardio do lanço, v.g., não são fatos que tenham dado amparo aos Embargos à Arrematação. A mera circunstância de tal matéria ter sido omitida nos Embargos não a torna necessariamente preclusa, nem tampouco insuscetível de argüição a posteriori.
Isso porque nulidades processuais absolutas operam-se de pleno direito, podem ser alegadas em qualquer tempo e grau de jurisdição. Devem ser declaradas, até mesmo de ofício, pelo Juiz. Ensinam, a propósito, ARAÚJO CINTRA et alii: "Às vezes a exigência de determinada forma do ato jurídico visa a preservar interesses da ordem pública no processo e por isso quer o direito que o próprio juiz seja o primeiro guardião de sua observância. Trata-se, aqui, da nulidade absoluta, que por isso mesmo pode e deve ser decretada de ofício, independentemente de provocação da parte interessada" [03] (grifou-se).
Não se trata, no caso em análise, de nulidades relativas, que possam ser convalidadas pelo transcurso natural do processo. O interesse aqui visado não é exclusivamente da parte. Muito ao contrário, está-se a defender interesse público (na verdade o maior deles: a supremacia da Constituição). E é a própria Carta Fundamental que garante aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, advertindo que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, incisos LIV e LV). E não pode receber o qualificativo de "devido processo legal" a execução eivada e crivada de nulidades (mormente tendo como objeto bem de família) – como adiante se verá.
É nesse sentido a jurisprudência:
O desfazimento da arrematação, por vício de nulidade, segundo a jurisprudência consagrada neste Superior Tribunal de Justiça, pode ser declarado de ofício pelo juiz ou a requerimento da parte interessada nos próprios autos da execução.
(Superior Tribunal de Justiça. 2ª Turma. REsp 855863/RS, 2006/0114807-3, Relator Ministro Castro Meira. DJ 04-10-2006)
(grifou-se)
Se a nulidade da arrematação pode ser declarada até mesmo de ofício pelo Juiz (como no aresto acima citado), com muito maior razão (interpretação a fortiori) pode e deve ser discutida por meio da medida processual adequada, prevista no art. 486 do Código de Processo Civil pátrio.
O argumento, também exposto na sentença, de que as nulidades formais devem ser superadas, em nome do princípio da celeridade do processo trabalhista (já que este gravitaria em derredor de verbas de cunho alimentar), não tem nenhum cabimento, data venia, ao caso em exame. Isso porque o exeqüente já recebeu seu crédito. A ação está a se desenvolver, tão-somente, entre o executado e o arrematante.
O trabalhador já não está mais no processo.
E o arrematante, concessa venia, não está a pleitear verbas alimentícias.
Muito ao contrário, pretende o arrematante sua imissão na posse de bem de família – penhorado e arrematado em flagrante violação à garantia constitucional da moradia como direito social (art. 6º), bem como do devido processo legal (art. 5º, incisos LIV e LV).
Destarte, o argumento da celeridade não se justifica aqui.
Não se consagra a celeridade processual à custa do sacrifício de garantias fundamentais protegidas pela Carta Maior.
II.2 – Primeira Nulidade Processual – ausência de garantia e pagamento tardio do lanço
O Réu RENATO ANDRADE BARBOSA, em demanda trabalhista, arrematou, em 28-4-2004, bem imóvel, pelo lanço de R$90.000,00 (noventa mil reais) – cf. certidão de f. 13. O prazo para depósito venceria no dia seguinte: 29-4-2004.
O art. 888, § 2º, da CLT dispõe: "O arrematante deverá garantir o lance com o sinal correspondente a 20% (vinte por cento) do seu valor". O § 4º acrescenta: "Se o arrematante, ou seu fiador, não pagar dentro de 24 (vinte e quatro) horas o preço da arrematação, perderá, em benefício da execução, o sinal de que trata o § 2º deste artigo, voltando à praça os bens executados".
No caso em exame, o Arrematante, além de não garantir, pagou o lanço total somente em 03-5-2004, ultrapassando o prazo legalmente fixado.
Extemporaneamente, em 03-5-2004, o Arrematante pediu a juntada das guias do depósito – f. 14/15. Não obstante, apesar de estar frontalmente contrária ao disposto no art. 888, §§ 2º e 4º da CLT, foi homologada a arrematação, em 06-5-2004 (cf. decisão de f. 17).
Essa circunstância ensejaria nulidade?
Não temos dúvida em afirmar que sim, pois, no caso em exame, nem sequer houve assinatura do Auto. O art. 694, caput, do CPC (aqui subsidiariamente aplicável – art. 769/CLT) estabelece que, somente se: "Assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo serventuário da justiça ou leiloeiro, a arrematação considerar-se-á perfeita, acabada e irretratável, ainda que venham a ser julgados procedentes os embargos do executado".
Todavia, ainda que assim não fosse, o § 1º daquela regra processual dispõe que, em caráter excepcional, a arrematação poderá ser tornada sem efeito (mesmo após a assinatura do auto correspondente), desde que ocorra uma das hipóteses ali enumeradas (incisos I a VI). E o segundo inciso é categórico: "se não for pago o preço ou se não for prestada a caução". Nesse caso, o § 4º do art. 888/CLT é claro: "não só será desfeita a arrematação como o arrematante perderá, em prol da execução, o sinal de 20% que havia depositado para garantir o lanço, retornando à Praça os bens apreendidos" [04].
Tal nulidade foi rejeitada na sentença, com a seguinte fundamentação – f. 244/245:
Reza o artigo 888, da CLT, que participando da Praça, o interessado em adquirir o bem deve garantir o seu lance com sinal de 20% e pagar o preço total em 24 horas.
No caso dos autos, a Praça ocorreu em 28-4-2004, não houve apresentação de qualquer sinal, tendo o licitante depositado o valor total do lance somente em 03-5-2004.
Violado, portanto, o dispositivo legal supracitado.
Ainda assim, a presente ação anulatória está fadada à total improcedência.Isto porque, a despeito da irregularidade apontada, o Juízo da execução entendeu que deveria homologar a arrematação.
Tendo ciência do fato, o executado, ora 2º Autor, apresentou Embargos à Arrematação, em nove laudas, argüindo as mais variadas teses de defesa, nada dizendo sobre a indigitada inobservância do prazo de pagamento do lanço.
Tais Embargos foram rejeitados e a arrematação foi mantida pelo E. TRT, em sede de agravo de petição.
A arrematação restou então definitivamente consolidada, não sendo viável, agora, que os executados pretendam revolver matéria já decidida, trazendo argumento "esquecido" naquela oportunidade.
A preclusão é evidente, até porque, no Processo do Trabalho, cabe ao interessado argüir toda e qualquer nulidade de forma concentrada, na primeira oportunidade que tiver para manifestação (CLT, art. 795).
(grifou-se)
A violação do art. 888/CLT é, assim, expressamente admitida na sentença, quando se diz: "Violado, portanto, o dispositivo legal supracitado", deixando claro que a ofensa a esse dispositivo é inequívoca.
Enfim, como se vê, a nulidade foi rejeitada, não no mérito, mas por não ter sido argüida na primeira oportunidade (a dos Embargos à Arrematação). Buscou-se amparo no art. 795/CLT.
Sobre essa regra do Texto Consolidado, Mozart Victor RUSSOMANO, com a autoridade de quem, além de Professor [05], foi Ministro do Colendo Tribunal Superior do Trabalho [06], ensina: "Continua, aqui, o legislador da Consolidação esquecendo que, na ‘teoria das nulidades’, existem vícios que interessam à ordem social e que, por isso, podem ser apontados pelas partes, pelo Ministério Público e, ex officio, pelos próprios juizes (...)" (grifou-se).
Ainda em derredor do mesmo artigo legal, preleciona:
O ato nulo de pleno direito, exatamente porque é "né mort", como dizem os franceses, sê-lo-á sempre, quer seja, quer não seja alegada a nulidade. Por isso, o interesse coletivo autoriza o juiz a declarar o vício insanável, com base na letra expressa do Código Civil, art. 146, parágrafo único.
O dispositivo epigrafado não ponderou essas circunstâncias. Estabeleceu que a declaração das nulidades, no processo trabalhista, dependerá do pronunciamento das partes.
Dessa forma, a nulidade absoluta de um ato praticado por pessoa incapaz se transformará em absoluta validade, a partir do momento em que o interessado resolver não a levantar.
A solução pode ser prática e facilitar, em muito, o andamento da causa. Mas atrita com princípios jurídicos elementares e leva a situações insustentáveis.
Mais adiante, continua RUSSOMANO, com sua habitual precisão científica:
Prosseguindo no seu massacre à "teoria das nulidades", o consolidador, no mesmo art. 795, estipula que a parte deve argüir a nulidade à primeira vez que falar nos autos ou em audiência, perdendo – como se tem entendido – o direito da argüição da nulidade, sempre que não o fizer.
Cumpriria, aqui, uma vez mais, distinguir, como distinguimos nas "observações gerais" desta Seção, entre as nulidades de pleno direito, que podem ser apontadas em qualquer momento processual, visto que até ex officio o juiz pode argüi-las, e as nulidades dependentes de rescisão. Quanto a estas, que dependem da iniciativa do prejudicado, seria admissível que seu silêncio implicasse concordância com o ato, tal qual foi celebrado, não se permitindo alegação posterior da mesma nulidade. No tocante àquelas, porém, não se pode colocar o interesse privado acima do interesse público, nem as exigências do direito pela conveniência social podem ficar sujeitas à argúcia da parte e de seu procurador em levantar, de imediato, a lacuna jurídica que seja encontrada.
A Consolidação, ainda melhor acentuando seu ponto de vista, estipula – nos §§ 1º e 2º do artigo em tela – que, de todas as nulidades, só poderão ser espontaneamente declaradas aquelas que se fundamentarem em competência do foro. (...) Há problemas sociais e jurídicos tão importantes ou mais importantes que os problemas de jurisdição e competência. Sempre que as normas que os disciplinam forem feridas por nulidades, a Consolidação deveria, igualmente, permitir sua declaração ex officio [07].
(grifou-se)
Ora, pode haver problema social e jurídico maior que a expropriação de bem (mormente o bem de família – elevado à categoria de direito social pelo art. 6º da Constituição da República), sem observância do devido processo legal? É a própria Carta Constitucional – hierarquicamente superior ao art. 765/CLT – que proclama: ninguém será privado de seus bens sem o due process of law (art. 5º, inciso LIV). Por isso mesmo a nulidade em tela tem caráter absoluto, podendo ser argüida em qualquer oportunidade.
Cabe, aqui, a lição de Jean CRUET: "Vê-se, todos os dias, a sociedade reformar a lei. Nunca se viu a lei reformar a sociedade" [08].
II.3 – Segunda nulidade processual – INEXISTÊNCIA DE AUTO DE ARREMATAÇÃO – homologação de ato jurídico inexistente – oportunidade de remição do bem
Dispõe o art. 693/CPC, com a recente redação dada pela Lei n. 11.382, de 06-12-2006: "A arrematação constará de auto que será lavrado de imediato, nele mencionadas as condições pelas quais foi alienado o bem". E, nos termos do art. 694, do mesmo diploma legal, somente após a assinatura do auto, pelo juiz, pelo arrematante e pelo serventuário ou leiloeiro se perfaz a arrematação. Antes disso, pois, a arrematação não se opera – e não existe no mundo jurídico.
Estes dois artigos do CPC são de plena aplicabilidade no processo do trabalho, como ensinou Eduardo Gabriel SAAD: "A arrematação consta de auto lavrado vinte e quatro horas depois de realizada a praça ou leilão (art. 693, do CPC). Assinado o auto pelo juiz, a arrematação se aperfeiçoa. Contudo, o art. 694, do CPC, admite seu desfazimento por via de nulidade (...)" [09].
Celso NEVES assevera que "o procedimento oral do praceamento se reduz a escrito, mediante auto, que é a expressão documental da arrematação [10]".
No caso em análise, não houve auto de arrematação.
Consequentemente, não houve arrematação, pois esta somente se perfaz com o auto respectivo – art. 694/CPC. Preleciona Manoel Antônio TEIXEIRA FILHO:
Segue-se que os embargos à expropriação devem ser oferecidos após a assinatura do auto respectivo (arrematação ou adjudicação), opinião igualmente partilhada por FREDERIDO MARQUES e JOSÉ ANTÔNIO DE CASTRO. É que não se pode pensar em arrematação ou adjudicação (contra os quais se lançarão os embargos em exame) se o auto correspondente não se encontra ainda assinado, pelo juiz, pelo escrivão, pelo arrematante ou adjudicatário e pelo porteiro ou leiloeiro; só depois disso é que o ato de alienação se torna perfeito e acabado (CPC, art. 694, caput), sendo, conseguintemente, precipitada a oposição de embargos sem a necessária formalização do auto.
(...)
O pressuposto fundamental, aliás, para o aforamento dos embargos sobre os quais estamos a discorrer é – como nos parece óbvio – a expropriação judicial de bens do devedor, decorrente de arrematação ou de adjudicação e desde que esteja assinado o auto respectivo. Daí vem que se a expropriação ainda não havia sido realizada, ou, havendo sido, o auto ainda não se encontrava assinado, os embargos não devem ser admitidos, por faltar o pressuposto legal que lhe justifica a existência e a utilização prática [11].
O que houve, aqui, é a estranha figura de uma "homologação" (de quê?), não prevista no CPC, nem tampouco na CLT – f. 17. No mesmo ato, foi determinada a intimação do executado para oposição de embargos (apesar da inexistência de arrematação perfeita e acabada – art. 694/CPC).
E a oportunidade para o executado remir o bem?
Não foi dada essa garantia ao executado.
É precisamente no período compreendido entre o praceamento e a lavratura do auto de arrematação que pode o executado exercer o direito de remição.
No caso em tela, ao tempo do praceamento, a redação do art. 693/CPC era: "A arrematação constará de auto, que será lavrado 24 (vinte e quatro) horas depois de realizada a praça ou o leilão". E, ainda, vigorava o art. 788, inciso I, do CPC, que dispunha: "O direito a remir será exercido no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, que mediar entre a arrematação dos bens em praça ou leilão e a assinatura do auto (art. 693)". O mesmo Celso NEVES esclarece: "Entre um e outro deve intercorrer o prazo de 24 horas (...). Já agora, com essa intercorrência, há tempo bastante para obstar que a arrematação se consume, por remição, tanto da arrematação como da própria execução" [12].
Em Minas Gerais, esse direito de remição sempre foi pacificamente reconhecido nos Tribunais:
Anula-se o processo de execução, a partir da hasta pública, se não foi respeitado o prazo de vinte e quatro horas entre a praça do imóvel e a lavratura do auto de arrematação, exigência do art. 693 do CPC, cuja observância se impõe, para que não fique o devedor-solvente embaraçado no seu direito de remir (Ap.Cív. 9348, TAMG, Lemi 116/940) [13].
Esse prazo de 24 horas não existia na vigência do Código de 1939.
Curioso notar que, com a recente alteração do art. 693/CPC, em face da Lei 11.382, de 06-12-2006 (que suprimiu o prazo de 24 horas), houve inusitado retrocesso, retornando-se ao sistema do Código de 1939 – art. 986. O prazo em questão se tornou flutuante, como era ao tempo do antigo Código:
No sistema do Código de 1939, o termo final para o exercício de remir era flutuante, dependente da assinatura do auto de arrematação ou da sentença de adjudicação. A arrematação considera-se perfeita e acabada após a assinatura do respectivo auto. A sentença de que fala a lei somente é necessária na hipótese de adjudicação. Assim, o executado poderá remir o bem sob arrematação, se exercitar esse direito antes de se tornar esta perfeita.
No mesmo sentido a 4ª Câmara do Tribunal de Alçada Civil de São Paulo: "De acordo com o disposto no art. 986 do Código de Processo Civil: ‘Realizada a praça, o executado poderá, até a assinatura do auto de arrematação ou até que seja publicada a sentença de adjudicação, remir todos os bens penhorados ou qualquer deles (...)" [14].
Assim, com o retorno ao sistema do Código de 1939, não tendo havido, até o presente momento, lavratura do auto de arrematação, tem-se que continua em aberto o prazo para remição. Mas esse direito que o ordenamento processual dá ao executado lhe foi abruptamente cassado, na medida em que ele foi intimado para oposição de embargos. Trata-se de mais uma nulidade processual.
O arrematante pediu CARTA DE ARREMATAÇÃO, em 28-5-2004, que jamais foi expedida (cf. despacho de 31-5-2004) – f. 12.
Enfim, como se vê, o AUTO DE ARREMATAÇÃO deveria ter sido lavrado em 24 horas. Mas não o foi. Na demanda principal (proc. 01874/1978), não existe o Auto, nem tampouco Carta de Arrematação. Assim, foi homologado ato processual inexistente.
II.4 – Terceira nulidade processual – quitação do valor da execução – apego à literalidade de regra processual em detrimento do princípio da instrumentalidade das formas – subversão da utilidade do processo (tornando-o "fim em si mesmo") – ofensa ao princípio da igualdade das partes (art. 125, inciso I, do CPC)
Na demanda trabalhista, as partes se conciliaram (f. 744 da causa principal). Na audiência realizada em 20-9-2005 (f. 742 dos mesmos autos), constou da ata:
Pelo reclamante foi dito que recebeu a importância de R$1.700,00 dos reclamados, dando quitação pelo objeto da execução.
(...)
Pelo arrematante foi dito que a arrematação está acabada, mas que admite conversar com os reclamados acerca dessa questão.
(...)
Sendo assim, homologo o acordo firmado entre o reclamante e os reclamados, extinguindo a execução quanto aos mesmos.
Prossegue o feito em relação ao arrematante e os reclamados.
(grifou-se)
Como se vê, o Arrematante não faz tanta questão do bem, já que "admite conversar com os reclamados acerca dessa questão". E por que razão o admite?
Porque, para ele, não se trata de bem família, nem tampouco de direito social – art. 6º da Lex Fundamentalis. Para ele, o interesse é meramente patrimonial, sem nenhum caráter moral. Sua dignidade como pessoa humana, erigida em fundamento do Estado brasileiro (art. 1º, inciso III, da Constituição), da qual a moradia constitui parte integrante (art. 6º) não está em discussão.
Estivesse em causa a dignidade do arrematante (art. 1º, III, da Carta Política), nela compreendida o direito social de moradia (art. 6º) e ele não admitiria, de forma alguma, "conversar com os reclamados acerca dessa questão".
E por quê?
Simplesmente porque
A dignidade humana é valor que não se negocia, como realmente sempre o foi, por isso nasce a ânsia de promovê-la já. Compreende-se, então, o apelo para que o Direito seja o elemento transformador da sociedade. Mas não se pode esquecer que a sociedade contemporânea não tem a pureza das primitivas, e já não aceita profetas com suas tábuas de leis. Quer fazer o seu destino e quer ser agente da sua história [15].
Dispõe o art. 651/CPC: "Antes de adjudicados ou alienados os bens, pode o executado, a qualquer tempo, remir a execução, pagando ou consignando a importância atualizada da dívida, mais juros, custas e honorários advocatícios".
Ao julgar os Embargos à Arrematação (propostos às f. 102/109), o d. Juízo (cf. sentença de f. 86/88) reconheceu que foi pago ao exeqüente seu crédito. Mas argumentou que, tendo o pagamento ocorrido após a arrematação, em nada afetaria a constrição judicial. Textualmente: "(...) inexistindo amparo legal para o acolhimento desse pagamento tardio" – f. 87. A sentença foi confirmada por Acórdão da Eg. 7ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho – f. 89/92.
Ensina Celso NEVES que "a arrematação, conceitualmente, é um procedimento destinado à conversão de bens penhorados em dinheiro, para, com este, pagar-se o exeqüente, não obrigado ao aliud pro alio [16]" (grifou-se).
A finalidade última da arrematação, portanto, é pagar o exeqüente. E essa finalidade foi aqui alcançada. O exeqüente já foi pago.
Desse modo, acima do apego à literalidade do art. 651/CPC, que coloca o momento da arrematação como marco temporal para o exercício do direito de remição da execução está um dos princípios que orienta todo o ordenamento processual: a instrumentalidade das formas.
Processo é instrumento. DINAMARCO não discrepa: "Todo instrumento, como tal, é meio; e todo meio só é tal e se legitima, em função dos fins a que se destina. O raciocínio teleológico há de incluir então, necessariamente, a fixação dos escopos do processo, ou seja, dos propósitos norteadores da sua instituição [17]".
A ultimação da expropriação de bem imóvel, que aqui se processa, mesmo após a quitação do crédito do exeqüente, apenas para dar cumprimento à expressão literal do art. 651/CPC, está a subverter a lógica do sistema, tornando o processo um fim em si mesmo. É precisamente o que a doutrina processual repudia com veemência:
Fala-se da instrumentalidade do processo, ainda, pelo seu aspecto negativo. Tal é a tradicional postura (legítima também) consistente em alertar para o fato de que ele não é um fim em si mesmo e não deve, na prática cotidiana, ser guindado à condição de fonte geradora de direitos. Os sucessos do processo não devem ser tais que superem ou contrariem os desígnios do direito material, do qual ele é também um instrumento (à aplicação das regras processuais não deve ser dada tanta importância, a ponto de, para sua prevalência, ser condenado um inocente ou absolvido um culpado; ou a ponto de ser julgada procedente uma pretensão, no juízo cível, quando a razão estiver com o demandado). Uma projeção desse aspecto negativo da instrumentalidade do processo é o princípio da instrumentalidade das formas, segundo o qual as exigências formais do processo só merecem ser cumpridas a risco, sob pena de invalidade dos atos, na medida em que isso seja indispensável para a consecução dos objetivos desejados [18].
(Grifou-se)
Essa subversão é ainda mais gritante no processo do trabalho, no qual a aplicação das regras do CPC (in casu: art. 651) é meramente subsidiária – art. 769/CLT e o princípio da instrumentalidade das formas, acentuado pelo formalismo moderado, vigora com muito maior força.
Se a letra da lei está em conflito com o princípio informador dessa mesma lei, deve o intérprete dar primazia ao princípio. O apego excessivo à literalidade, em detrimento dos valores que a ordem jurídica quer ver realizados, é o caminho direto para a concretização da máxima de CÍCERO: summum jus, summa injuria (de officiis, liv.I, cap.13). Noutras palavras: o Direito, aplicado com o máximo de rigor, pode gerar o máximo de injustiça.
É como ensinou Geraldo ATALIBA:
Se, em dada situação, surge aparência de divergência entre uma regra e um princípio – antes de qualquer outra coisa –, o intérprete dá à regra interpretação harmoniosa e coerente com as exigências do princípio. O que não se consente é que este seja, por qualquer forma, negado, diminuído, contrariado ou esvaziado por força de simples regra.
É inadmissível e, pois, redondamente errada a conclusão de qualquer trabalho exegético contrastante com a direção apontada por um princípio. É inaceitável qualquer interpretação que importe ignorar, anular um princípio.
(...)
Se nem mesmo ao Congresso – que tem o poder constituinte derivado – é lícito expedir lei em sentido negador das exigências dos princípios capitulares, com maior razão não podem os intérpretes – sejam administrativos, sejam judiciais – aportar a conclusões exegéticas que conduzam ao mesmo resultado [19].
Cumpre notar que, no caso em exame, o apego à forma foi solenemente afastado quando o d. juízo admitiu a ausência de garantia, bem como o pagamento tardio do lanço, superando a literalidade do art. 888, §§ 2º e 4º, da CLT. Mas essa mesma literalidade (in casu: art. 651/CPC) foi considerada insuperável quando operou em detrimento do executado.
A nosso ver, esse posicionamento do juízo viola a orientação contida no art. 125, inciso I, do CPC: ao Judiciário compete assegurar as partes igualdade de tratamento.
Que igualdade é essa em que, para uma das partes (executado), a norma (art. 651/CPC) é aplicada, rigorosa e estritamente, na sua expressão literal, ao passo que, para a outra (arrematante), admite-se, tranqüila e serenamente, a superação da forma (art. 888, §§ 2º e 4º da CLT)?
Acerca do art. 125, inciso I, do CPC, que consagra o princípio da igualdade das partes, ensinou Celso Agrícola BARBI: "O mandamento dirige-se, em primeiro lugar, ao legislador, para que elabore as leis processuais de modo a fixar essa igualdade. Mas dirige-se, em segundo lugar, ao juiz, para que ele, na parte em que tem arbítrio, procure assegurar às partes igualdade de tratamento" [20].
Não se pode olvidar que igualdade é matéria constitucional – que habita no plano dos valores.
Conceituando o princípio da isonomia ou da igualdade formal, CELSO RIBEIRO BASTOS ("in" Comentários à Constituição do Brasil, 2º vol., Ed. Saraiva, 1989, p.5 e seguintes) advertia ser ele o mais vasto dos princípios constitucionais, não se vendo recanto onde ele não seja impositivo. Não assegura nenhuma situação jurídica específica, mas na verdade garante o indivíduo contra toda má utilização que possa ser feita da ordem jurídica. Tratando de igual forma todos os que estejam em idêntica situação perante a lei, estar-se-á prevenindo o cidadão contra o arbítrio e a discriminação infundada.
Ensinava também o eminente constitucionalista que o princípio da igualdade não se dirige somente ao legislador, impedindo que este faça leis arbitrárias, mas também atinge diretamente aos particulares e ao próprio Estado. Conclui que a isonomia, no direito moderno, além de ser um princípio informador de todo o sistema jurídico, assume também a condição de um autêntico direito subjetivo.
Aliás, que é a igualdade senão o maior valor plantado em nossa Constituição, identificado por muitos como a própria Justiça? [21] Como tem sempre afirmado José Souto Maior BORGES, "o princípio da igualdade não está na Constituição; o princípio da igualdade é a Constituição! Todas as regras, postulados, preceitos e definições inseridos no Texto Supremo se articulam e se organizam em busca desse valor maior que é a igualdade...".
Enfim, há, no caso em tela, nítido conflito de valores.
Se a Ação Anulatória, ao final, for julgada procedente, será anulada a arrematação. Conseqüência da nulidade é o retorno das partes ao statu quo ante. O arrematante reaverá o lanço ofertado. E a casa retornará à propriedade do Autor.
Se, ao revés, a Ação Anulatória, ao cabo, for julgada improcedente, será mantida a arrematação. Conseqüência: a família NOGUEIRA FRANCO perderá sua moradia.
Qualquer que seja a decisão final, o único que não tem nada a perder é o trabalhador hipossuficiente – Reclamante da demanda trabalhista – que, de há muito, já recebeu seu crédito.
Em qual das duas decisões possíveis haverá Justiça – finalidade última do Direito?
II.5 – Quarta nulidade processual – falta de intervenção (necessária) do Ministério Público – interesse público – menor impúbere habitando o bem de família sob ameaça iminente de expropriação – direito social de moradia (art. 6º da Constituição da República)
Conforme documentação que nos foi apresentada, o consulente PAULO AFFONSO NOGUEIRA FRANCO habita o imóvel juntamente com sua companheira MARIA DE FÁTIMA LIMA (união estável) e a filha do casal: VITÓRIA LIMA FRANCO, que conta, atualmente, apenas 10 (dez) anos de idade. E lá reside desde seu nascimento.
Essa circunstância torna imprescindível, no feito, a intervenção do Ministério Público.
O art. 83 da Lei Complementar 75, de 20-5-1993 (Estatuto do Ministério Público da União), dispõe sobre a competência do Ministério Público, enumerando suas atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho. O inciso V é categórico: propor as ações necessárias à defesa dos direitos e interesses dos menores. O art. 112 acrescenta: "Os Procuradores do Trabalho serão designados para funcionar junto aos Tribunais Regionais do Trabalho e, na forma das leis processuais, nos litígios trabalhistas que envolvam, especialmente, interesses de menores e incapazes".
O art. 82, inciso I, alínea a, do Regimento Interno do Eg. Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região, estabelece que, recebidos, registrados e autuados, os processos serão imediatamente distribuídos aos respectivos Relatores, que os remeterão ao Ministério Público do Trabalho, obrigatoriamente, quando envolver interesse de incapaz.
No mesmo sentido, o art. 82, inciso I, do CPC prevê que compete ao Ministério Público intervir nas causas em há interesses de incapazes. E o art. 84 é preciso ao fixar que a não intervenção do Ministério Público, quando a lei a considera obrigatória, gera nulidade absoluta. Intervindo como fiscal da lei, o Ministério Público poderá requerer medidas ou diligências necessárias ao descobrimento da verdade – art. 83, inciso II.
No caso que ora se examina, está presente, inequivocamente, o interesse de menor incapaz, sendo, pois, obrigatória a intervenção do Ministério Público do Trabalho, sob pena de nulidade absoluta.
E o interesse do incapaz, aqui presente, não é, como poderia parecer à primeira vista (em exame superficial), meramente patrimonial.
Definitivamente não.
O interesse aqui visado não é simplesmente material!
Não é o simples direito à propriedade do bem...
Muito acima disso, trata-se de seu direito social à moradia. O diploma garantidor é a própria Carta Fundamental:
Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000)
(grifou-se)
Direitos sociais (como é o de moradia) enquadram-se na órbita da dignidade humana, como ensina José AFONSO DA SILVA:
é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a no caso dos direitos sociais, ou invocá-la para construir "teoria do núcleo da personalidade" individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana" [22].Dignidade da pessoa humana
(grifou-se)
Nessa mesma ordem de idéias, anotou Celso Ribeiro BASTOS: "A referência à dignidade da pessoa humana parece conglobar em si todos aqueles direitos fundamentais, quer sejam os individuais clássicos, quer sejam os de fundo econômico e social. Em última análise, a dignidade tem uma dimensão também moral" [23].
Enfim, como dito, não se trata apenas de garantir ao menor o direito à propriedade do bem imóvel.
Trata-se, muito antes disso, de seu direito social de moradia – garantido pela Carta Fundamental. Cuida-se, em última análise, de sua dignidade humana (da qual a moradia é elemento integrante) – enfocada pela dimensão moral e psíquica.
Para qualquer criança, a perda da moradia, da casa que aprendeu a amar desde seu nascimento, aquela em cujo seio conviveu com os pais, o recanto onde até então viveu, aprendeu, regozijou-se e sofreu – é muito mais traumática e violenta que para qualquer adulto.
Como se vê, reduzir a presente discussão a um direito meramente patrimonial é aviltá-la impiedosamente.
Está em questão, portanto, indubitavelmente, interesse social e moral de menor incapaz. Ou seja: trata-se aqui de direitos irrenunciáveis do incapaz. Daí a necessidade de intervenção obrigatória do Ministério Público.
Se, por um lado, o Direito não socorre aos que dormem (como asseverou o MM. Magistrado sentenciante), há de proteger, sim, os filhos do dormientibus, que não podem ser penalizados pelo sono ao qual não deram causa. Importando, para cá, vetusto princípio do Direito Penal, cabe lembrar que "nenhuma pena passará da pessoa do condenado" (art. 5º, inciso LXV, da Carta Fundamental).
Sugere-se, pois, que se faça requerimento dirigido ao Exmo. Relator, em Memorial ou Razões finais, invocando a necessária e obrigatória intervenção do Ministério Público do Trabalho – cuja falta é geradora de nulidade absoluta.
II.6 – Impenhorabilidade do bem de família – matéria de ordem pública em torno da qual não se opera a preclusão – proteção constitucional – as noções de "coisa julgada aparente" e "coisa julgada inconstitucional"
Dispõe o art. 1º, caput, da Lei n. 8.009, de 29-3-1990: "O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses desta Lei".
Houve ajuizamento de embargos à arrematação, por meio dos quais foi suscitada a matéria. Naquela oportunidade, o MM. Julgador monocrático argumentou que, por não ter havido ajuizamento de embargos à execução, estaria preclusa a argüição de impenhorabilidade do bem. É o que consta de sua sentença – f. 86/88:
Razão não assiste ao Embargante. As matérias alegáveis em sede de embargos à arrematação devem estar relacionadas com fatos acontecidos após o julgamento da penhora, vale dizer, posteriormente à decisão de embargos à execução. Entretanto, no caso dos autos, o ora embargante deixou transcorrer "in albis" o prazo para interposição de Embargos à Execução, conforme atesta a certidão de decurso de prazo de fl. 410 dos autos. Sendo assim, a esta altura, descabem as alegações de nulidade (...) e impenhorabilidade do bem de família. Tais matérias encontram-se fulminadas pela preclusão.
A marcha processual não pode retroagir para socorrer àqueles que dormem em detrimento da celeridade exigida nos processos trabalhistas, de natureza alimentar.
(grifou-se)
Como já dito anteriormente, não está em discussão crédito de natureza alimentar (ao contrário do que asseverou o d. Juízo). Já houve acordo e quitação, de tal sorte que o trabalhador não mais figura no processo.
No que tange à preclusão, também divergimos, venia rogata. A penhora de bem de família incute, no processo, nulidade absoluta, insuscetível de convalidação. A matéria é de ordem pública e, por isso mesmo, argüível em qualquer momento processual na instância ordinária e cognoscível de ofício pelo Julgador. Nesse sentido já decidiu o Colendo Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSO CIVIL – EMBARGOS À ARREMATAÇÃO – FORMALIDADES DA PENHORA – INVIABILIDADE – ART. 746, CPC. IMPENHORABILIDADE ABSOLUTA. BEM DE FAMÍLIA. LEI N. 8.009/90. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. EXAME DE OFÍCIO. POSSIBILIDADE. INSTÂNCIA ESPECIAL. NECESSIDADE DE PREQUESTIONAMENTO. RECURSO DESACOLHIDO.
I – Os embargos à arrematação não se prestam ao exame de irregularidades da penhora levada a efeito na execução, salvo se se tratar de impenhorabilidade absoluta, que pode ser alegada em qualquer momento nas instâncias ordinárias por ser matéria de ordem pública.
II – Na instância especial, a apreciação de nulidade absoluta, como a impenhorabilidade do bem de família, depende de prequestionamento.
(STJ, 4ª Turma. Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. REsp 327593/MG; Recurso Especial 2001/0056061-9. Julgamento 19-12-2002. Pub. DJ 24-2-2003 p.238)
(grifou-se)
Do corpo do voto do Ministro Relator extrai-se o seguinte trecho:
A propósito, a jurisprudência desta Corte se norteia pela possibilidade de argüir-se em qualquer tempo, ou mesmo ser apreciada de ofício, a impenhorabilidade absoluta, como exemplificam os REsps n. 192.133-MS (DJ 21-6-1999) e 262.654-RS (DJ 20-11-2000), com estas ementas, no pertinentes:
"I – Em se tratando de nulidade absoluta, a exemplo do que se dá com os bens absolutamente impenhoráveis (CPC, art. 649), prevalece o interesse de ordem pública, podendo ser ela argüida em qualquer fase ou momento, devendo, inclusive, ser apreciada de ofício".
"II – O executado pode alegar a impenhorabilidade de bem constrito em embargos à arrematação e mesmo que não tenha ele suscitado o tema em outra oportunidade, inclusive em sede de embargos do devedor, pois tal omissão não significa renúncia a qualquer direito, ressalvada a possibilidade de condenação do devedor nas despesas pelo retardamento injustificado, sem prejuízo de eventual acréscimo na verba honorária, a final".
(grifou-se).
Na análise desse Acórdão ficou claro que o Colendo Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade de argüir-se a questão, até mesmo de ofício, em qualquer momento da instância ordinária. E somente não adentrou no cerne dessa discussão pela falta do prequestionamento, invocando a Súmula 282/STF: "É inadmissível o Recurso Extraordinário quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada".
Vê-se que o Exmo. Ministro Sálvio de Figueiredo TEIXEIRA, Relator do Acórdão, é coerente com o que leciona na doutrina: "Em se tratando de condições da ação, mesmo que haja decisão a respeito, não há preclusão enquanto a causa estiver em curso, podendo o Judiciário apreciá-la mesmo de ofício (RP 3/142). Nas instâncias especial e extraordinária, a apreciação depende de prequestionamento" [24].
Não apenas o Superior Tribunal de Justiça, mas também o próprio Tribunal Superior do Trabalho comunga desse mesmo entendimento, como ilustra recentíssimo aresto, recentemente prolatado:
I – AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE SENTENÇA.
BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. OPORTUNIDADE DE ARGÜIÇÃO. DIREITO SUBJETIVO MATERIAL PÚBLICO.
1. Entende-se literalmente violado o artigo 5º, inciso LIV, da Constituição de 1988, em evidente desrespeito ao princípio do devido processo legal, quando o Regional, sob o fundamento de inovação suscitada em sede recursal, não conhece de agravo de petição no qual o terceiro executado suscita impenhorabilidade do bem de família.
2. Agravo de instrumento a que se dá provimento.
II – RECURSO DE REVISTA.EXECUÇÃO DE SENTENÇA.
BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. OPORTUNIDADE DE ARGÜIÇÃO. DIREITO SUBJETIVO MATERIAL PÚBLICO.
1. Questionada a penhora do imóvel, por se tratar de bem de família, tutelado pela Lei nº 8.009/90, tal alegação deve merecer apuração judicial, em que pese não ter sido questionada nos embargos de terceiro. Em face do entendimento sedimentado na jurisprudência, no sentido de que a impenhorabilidade, no caso, pode ser argüida até o exaurimento da execução, porquanto se trata de matéria de ordem pública, evidencia-se que o óbice da inovação recursal não tem o condão de impedir o exame da incidência do benefício legal, quando deduzido por terceiro, nos autos da execução, sob pena de desrespeito ao princípio do devido processo legal insculpido no artigo 5º, LIV, da Constituição de 1988.
2. Recurso de revista conhecido e provido.
(PUBLICAÇÃO: DJ - 20/04/2007 PROC. Nº TST-RR-232/2004-007-7-40.6 A C Ó R D Ã O 5ª Turma. Ministro Relator Emmanoel Pereira)
(grifou-se)
Do corpo do Acórdão extrai o seguinte excerto:
Na fase de execução de sentença, em regra, não cabe recurso de revista, salvo nas hipóteses de ofensa direta e literal a norma constitucional, consoante os termos do artigo 896, § 2º, da CLT e da Súmula nº 266 do Tribunal Superior do Trabalho.
É de se reconhecer, porém, que o Regional desrespeitou o princípio do devido processo legal insculpido no artigo 5º, LIV, da Constituição de 1988, ao não conhecer do agravo de petição sob o fundamento de inovação suscitada em sede recursal, deixando de apreciar a argüição, promovida pelo terceiro executado, de impenhorabilidade do bem de família. Logo, concluindo pela ocorrência de afronta ao artigo 5º, LIV, da Constituição de 1988, dou provimento ao agravo de instrumento, para determinar o processamento do recurso de revista.
(...)
2. MÉRITO
Caracterizada a afronta ao artigo 5º, LIV, da Constituição de 1988, dou provimento ao recurso de revista, para, afastado o óbice da inovação recursal, determinar o retorno dos autos ao Tribunal Regional, a fim de que examine a argüição de impenhorabilidade do bem de família, ao abrigo da Lei nº 8.009/90, como entender de direito.
ISTO POSTO
ACORDAM os Ministros da Quinta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, dar provimento ao agravo de instrumento para determinar o processamento do recurso de revista. Também por unanimidade, conhecer do recurso de revista por violação do artigo 5º, LIV, da Constituição de 1988, e, no mérito, dar-lhe provimento, para, afastado o óbice da inovação recursal, determinar o retorno dos autos ao Tribunal Regional do Trabalho, a fim de que examine a argüição de impenhorabilidade do bem de família, ao abrigo da Lei nº 8.009/90, como entender de direito.
Brasília, 21 de março de 2007.
EMMANOEL PEREIRA
Ministro Relator
(Grifou-se)
No que tange ao caso ora em análise, foi-nos apresentada comprovação satisfatória de que o imóvel penhorado é bem de família: contas de energia elétrica em nome do consulente PAULO AFFONSO NOGUEIRA FRANCO; declaração prestada pelo CONDOMÍNIO RETIRO DO CHALÉ dando conta de que ele reside no imóvel desde 1989; Certidões dos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º OFÍCIOS DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DE BELO HORIZONTE declarando que ele não figura como proprietário ou promitente comprador de nenhum imóvel transcrito ou matriculado naquelas Serventias. E lá ocorreu o recebimento de todas as citações e intimações da demanda. Cópia da documentação respectiva segue anexa a este Parecer.
Proteção à moradia é, hoje, matéria alçada ao plano constitucional, mormente após a Emenda Constitucional n. 26, de 2000, que alterou a redação do art. 6º da Carta Maior, nos seguintes termos: "São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".
Note-se que o termo "moradia" não constava da redação originária desse dispositivo. Essa reforma, portanto, elevou a moradia à condição de direito social. Após a Emenda 26, a jurisprudência, admitindo que o direito à moradia elevou-se ao ponto de gozar de especial proteção constitucional, passou a entender que a impenhorabilidade do imóvel residencial, prevista na Lei n. 8.009, de 29-3-1990, ao contrário das hipóteses previstas no art. 649/CPC, não visa a proteção do devedor, mas o direito de moradia da família que nela habita [25]. Tal interpretação jurisprudencial evidencia que não se há de entender por direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, apenas aquelas prestações positivas proporcionadas pelo Estado.
Ao revés, a compreensão jurisprudencial moderna do direito social de moradia, plenamente compatível com o art. 226 da Carta Maior ("A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado"), admite essa tutela especial também no plano das relações e conflitos de ordem privada que deságuam no litígio.
Nessa ordem de idéias, emerge, aqui, o princípio do não aviltamento do devedor: "Embora, como dissemos, tenha o credor posição de preeminência, a execução não deve afrontar a dignidade humana do devedor, expropriando-lhe bens indispensáveis à sua subsistência e à dos membros de sua família; por esse motivo, a lei tornou insusceptíveis de penhora (...) determinados bens, que atendem a essa necessidade vital do devedor e também a circunstância de ordem sentimental, religiosa, profissional e outras" [26] (grifou-se).
A matéria, pois, é indubitavelmente de ordem pública. A proteção é constitucional.
Ao contrário do que sustenta o Réu, não se vislumbra a ocorrência da coisa julgada no caso em tela. Penhora é matéria de execução. E a execução, que ainda não se ultimou aqui, está a se desenvolver maculada pelo vício da nulidade absoluta, razão pela qual as decisões nela prolatadas não podem ser revestidas pelo manto da intangibilidade. O que há, em casos tais, é aquilo que Humberto THEODORO JÚNIOR tem chamado de "aparência de coisa julgada".
Ainda que de coisa julgada se tratasse, a proteção constitucional seria insuperável. Não se admite, nos tempos hodiernos, a coisa julgada inconstitucional. Nesse sentido tem pregado a doutrina moderna, destacando-se as lições de Humberto THEODORO JÚNIOR e Juliana CORDEIRO DE FARIA:
Nada obstante, sempre que se fala em decisão judicial, à míngua de literatura a respeito, tem-se a falsa impressão de que o seu controle de constitucionalidade, no direito brasileiro, é possível apenas enquanto não operada a coisa julgada, através do último recurso cabível que é o extraordinário previsto no art. 102, III, da CF. Após verificada esta última, a imutabilidade que lhe é característica impediria o seu ataque ao fundamento autônomo de sua inconstitucionalidade. Corresponde aludida idéia ao modelo de Supremacia da Constituição buscado no Estado de Direito?
Pensamos que não. A coisa julgada não pode suplantar a lei, em tema de inconstitucionalidade, sob pena de transformá-la em um instituto mais elevado e importante que a lei e a própria Constituição. Se a lei não é imune, qualquer que seja o tempo decorrido desde a sua entrada em vigor, aos efeitos da inconstitucionalidade, por que o seria a coisa julgada?
A única explicação para que não se tenha, até o momento, no direito brasileiro, enfrentado o tema, resulta, ao que pensamos de uma visão distorcida da idéia de imutabilidade inerente ao conceito de coisa julgada [27].
E nem se diga que a desconstituição da coisa julgada estaria a reclamar o manejo de Ação Rescisória:
A decisão judicial transitada em julgado desconforme a Constituição padece do vício da inconstitucionalidade que, nos mais diversos ordenamentos jurídicos, lhe impõe a nulidade. Ou seja: a coisa julgada inconstitucional é nula e, como tal, não se sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais. Ora, no sistema das nulidades, os atos judiciais nulos independem de rescisória para a eliminação do vício respectivo. Destarte, pode a qualquer tempo ser declarada nula, em ação com esse objetivo (...)
Nada obstante e porque as nulidades podem ser decretáveis até mesmo de ofício, como é a hipótese de inconstitucionalidade, a eleição da via rescisória, ainda que inadequada, para a argüição da coisa julgada inconstitucional não importa na impossibilidade de conhecer-se do vício. O que se deve ter em mente é o fato de que a admissibilidade da rescisória, nesta hipótese, é medida extraordinária diante da gravidade do vício contido na sentença.
Em verdade, a coisa julgada inconstitucional, à vista de sua nulidade, reveste-se de uma aparência de coisa julgada, pelo que, a rigor, nem sequer seria necessário o uso da rescisória. Esta tem sido admitida pelo princípio da instrumentalidade e economicidade.
(...)
Os Tribunais, com efeito, não podem se furtar de, até mesmo de ofício, reconhecer a inconstitucionalidade da coisa julgada – o que pode se dar a qualquer tempo, seja em ação rescisória (não sujeita a prazo), em ação declaratória de nulidade ou em embargos à execução [28].
Nesse estudo, Humberto THEODORO JÚNIOR e Juliana CORDEIRO DE FARIA chegaram às seguintes conclusões:
1.O vício da inconstitucionalidade gera invalidade do ato público, seja legislativo, executivo ou judiciário;
2.A coisa julgada não pode servir de empecilho ao reconhecimento da invalidade da sentença dada em contrariedade à Constituição Federal;
3.Em se tratando de sentença nula de pleno direito, o reconhecimento do vício de inconstitucionalidade pode se dar a qualquer tempo e em qualquer procedimento, por ser insanável;
4.Não se há de objetar que a dispensa dos prazos decadenciais e prescricionais na espécie poderia comprometer o princípio da segurança das relações jurídicas. Para contornar o inconveniente em questão, nos casos em que se manifeste relevante interesse na preservação da segurança, bastará recorrer-se ao salutar princípio constitucional da razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja: o Tribunal, ao declarar a inconstitucionalidade do ato judicial, poderá fazê-lo com eficácia ex nunc, preservando os efeitos já produzidos como, aliás, é comum no direito europeu em relação às declarações de inconstitucionalidade [29].
(grifou-se)
Porém, a Ação Anulatória não tratou da matéria (impenhorabilidade do bem de família), seja em sua petição inicial – f. 06/09, seja no recurso – f. 256/270. Sugere-se, pois, que a parte interessada requeira ao Eg. Tribunal Regional do Trabalho, em Memorial ou Razões Finais, a apreciação ex officio desta matéria – por se tratar de nulidade absoluta. Trata-se da última decisão da causa a ser proferida na instância ordinária. Daí a necessidade do prequestionamento – exigido, embora injustificavelmente, pela Súmula 297/TST:
Nova redação - Res. 121/2003, DJ 21.11.2003PREQUESTIONAMENTO. OPORTUNIDADE. CONFIGURAÇÃO -
I. Diz-se prequestionada a matéria ou questão quando na decisão impugnada haja sido adotada, explicitamente, tese a respeito.
II. Incumbe à parte interessada, desde que a matéria haja sido invocada no recurso principal, opor embargos declaratórios objetivando o pronunciamento sobre o tema, sob pena de preclusão.
III. Considera-se prequestionada a questão jurídica invocada no recurso principal sobre a qual se omite o Tribunal de pronunciar tese, não obstante opostos embargos de declaração.
II.7 – Do caráter constitucional das nulidades processuais aqui verificadas – violação ao princípio do devido processo legal
A Carta Maior dispõe, em seu art. 5º:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
A propósito, ensina Paulo Emílio Ribeiro de VILHENA:
"(...) o desenvolvimento do iter procedimental, nodularmente movido pelo juiz, não se mostra tarefa fácil e é exatamente em seus meandros e em seus movimentos pendulares que o magistrado imprime todo o seu potencial de primeiro destinatário da ordem jurídica, fazendo atuar a garantia básica do processo, que é a sua contextura formal, de que resulta o primeiro princípio, o chamado due process of law pelo lado do curso procedimental.
Não pode o juiz, em qualquer esfera da jurisdição, abstrair-se de tal princípio, resguardado pelo art. 5º, LIV e LV, da Constituição da República (...).
A garantia instrumental precede a qualquer outra, porque nos contornos formais de cada ato processual e em seu sucessivo encadeamento acha-se incrustada a força teleológica do bem de vida que se visa a alcançar ou resguardar no processo [30].
(Grifou-se).
Como já afirmado linhas atrás, não pode receber o qualificativo de "devido processo legal" a execução eivada e crivada de nulidades (mormente tendo como objeto bem de família e o direito social de moradia).
É indubitável que os princípios processuais são garantias constitucionais. "A relação existente entre Constituição e Processo é apontada por vários publicistas, desde que o texto fundamental traça as linhas essenciais do sistema processual consagrado pelo Estado. A Constituição determina muitos dos institutos básicos do processo, daí as conclusões que acentuam, cada vez mais, as ligações entre a Constituição e o Processo" [31].
O Direito Processual tem suas linhas mestras traçadas pelo Direito Constitucional [32]. A não realização da garantia do devido processo legal macula todo o feito com o vício da nulidade absoluta. Sobre as garantias do devido processo legal, discorrem CINTRA et alii:
Entende-se, com essa fórmula, o conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, do outro, são indispensáveis ao correto exercício da função jurisdicional. Garantias que não servem apenas aos interesses das partes, como direitos públicos subjetivos (ou poderes e faculdades processuais) destas, mas que configuram, antes de mais nada, a salvaguarda do próprio processo, objetivamente considerado, como fator legitimante do exercício da jurisdição [33].
II.8 – Da possibilidade de conhecimento da matéria pela Suprema Corte – o pressuposto da repercussão geral
Como derradeiro quesito, indagam-nos os consulentes se a matéria aqui debatida é suscetível de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal.
A Constituição da República dispõe:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
a) contrariar dispositivo desta Constituição;
§ 3º - No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.
(Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
(grifou-se)
Referindo-se expressamente a "causa decidida em última instancia", o art. 102 pressupõe a passagem do feito pelo Tribunal Superior do Trabalho. Melhor dizendo: é necessário exaurir a via de recursos na esfera trabalhista.
Muito embora a Ação Anulatória seja, em si, causa autônoma, não se confundindo com os recursos cabíveis na execução, é indubitável que, no caso presente, ela está a incidir na execução. E, a propósito, o art. 896, § 2º, da CLT estabelece: "Das decisões proferidas pelos Tribunais Regionais do Trabalho ou por suas Turmas, em execução de sentença, inclusive em processo incidente de embargos de terceiro, não caberá Recurso de Revista, salvo na hipótese de ofensa direta e literal de norma da Constituição Federal (Redação dada pela Lei nº 9.756, de 17.12.1998)" (grifou-se). No mesmo sentido reza a Súmula 266/TST:
RECURSO DE REVISTA. ADMISSIBILIDADE. EXECUÇÃO DE SENTENÇA - Revisão da Súmula nº 210 - Res. 14/1985, DJ 19.09.1985
A admissibilidade do recurso de revista interposto de acórdão proferido em agravo de petição, na liquidação de sentença ou em processo incidente na execução, inclusive os embargos de terceiro, depende de demonstração inequívoca de violência direta à Constituição Federal.
(Res. 1/1987, DJ 23.10.1987 e DJ 14.12.1987)
É o recurso violatio legis de que trata a Súmula 221/TST:
(incorporada a Orientação Jurisprudencial nº 94 da SBDI-1) - Res. 129/2005 - DJ 20.04.2005RECURSOS DE REVISTA OU DE EMBARGOS. VIOLAÇÃO DE LEI. INDICAÇÃO DE PRECEITO. INTERPRETAÇÃO RAZOÁVEL.
I - A admissibilidade do recurso de revista e de embargos por violação tem como pressuposto a indicação expressa do dispositivo de lei ou da Constituição tido como violado. (ex-OJ nº 94 - Inserida em 30.05.1997)
II - Interpretação razoável de preceito de lei, ainda que não seja a melhor, não dá ensejo à admissibilidade ou ao conhecimento de recurso de revista ou de embargos com base, respectivamente, na alínea "c" do art. 896 e na alínea "b" do art. 894 da CLT. A violação há de estar ligada à literalidade do preceito. (ex-Súmula nº 221 - Res. 121/2003, DJ 21.11.2003)
Quando a Ação Anulatória ataca o auto de arrematação (que, no caso em exame, nem sequer existiu), demonstrando inequivocamente violação direta a norma da Constituição da República, o cabimento do Recurso de Revista é pacífico. É o que ilustra recente aresto, no qual o Colendo Tribunal Superior do Trabalho deu provimento a Agravo de Instrumento para que a Revista fosse apreciada em seu mérito – e, no mérito, o Recurso de Revista foi provido:
Para prevenir possível violação do artigo 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988, (...) faz-se mister a reforma do r. despacho, para melhor exame das alegações contidas no recurso de revista. Agravo de instrumento provido.AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA – NULIDADE DO AUTO DE ARREMATAÇÃO – AÇÃO ANULATÓRIA – CABIMENTO – ARTIGO 5º, LIV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 –
RECURSO DE REVISTA – NULIDADE DO AUTO DE ARREMATAÇÃO – AÇÃO ANULATÓRIA – CABIMENTO – (...) ARTIGOS 5º, LIV, E 20, VII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – VIOLAÇÃO – É cabível a presente ação anulatória, nos termos do artigo 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988, ajuizada contra arrematação (...).
Recurso de revista provido.
(TST – 6ª T. Relator Ministro Horácio Senna Pireis – RR – 1010/2004-005-08-40.7 – Pub.DJ 01/12/2006)
Ocorrendo, no entanto, insucesso no julgamento do Recurso de Revista, será cabível, ainda, o Recurso de Embargos:
Art. 894 CLT – Cabem embargos, no Tribunal Superior do Trabalho, para o Pleno, no prazo de 5 (cinco) dias a contar da publicação da conclusão do acórdão:
b) das decisões das Turmas contrárias à letra de lei federal, ou que divergirem entre si, ou da decisão proferida pelo Tribunal Pleno, salvo se a decisão recorrida estiver em consonância com súmula de jurisprudência uniforme do Tribunal Superior do Trabalho.
Somente então será cabível o Recurso Extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, como prevê o já mencionado art. 102 da Constituição da República. É pacificamente reconhecido, hoje, que todo esse percurso processual é necessário. Já se foi, de há muito, o tempo em que se discutia a possibilidade de interposição de Recurso Extraordinário, do julgamento de Turma do Tribunal Regional, diretamente para a Suprema Corte [34].
À mesma conclusão chegam SÜSSEKIND et alii: "Nos termos do art. 103, III, da Constituição, das decisões do Tribunal Superior do Trabalho somente caberá recurso para o Supremo Tribunal Federal quando contrariarem a Carta Magna, direta ou obliquamente. Assim, e na conformidade da orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal, são irrecorríveis, através de recurso extraordinário, as decisões dos Tribunais Regionais e as das Turmas do Tribunal Superior, por não se ter, nesses casos, exaurido a via de recursos na esfera trabalhista" (grifou-se) [35].
Assim, somente no caso de insucesso no julgamento do mérito do Recurso de Revista (para Turma do TST) e do Recurso de Embargos (para o Pleno) será cabível o Recurso Extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, demonstrando-se, uma vez mais, a violação direta a norma da Carta Maior.
Ocorre que o § 3º do art. 102 da Carta Constitucional, incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 31-12-2004, acrescentou novo pressuposto de admissibilidade para o Recurso Extraordinário: a demonstração, pelo recorrente, da "repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso".
Pergunta-se, logo de início: existe questão constitucional que não gere "repercussão geral"?
Seja como for, essa exigência já está regulamentada pelo CPC, em seu art. 543-A, recentemente acrescentado pela Lei n. 11.418, de 2006:
Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.
§ 1º Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.
§ 2º O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral.
§ 3º Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.
§ 4º Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário.
§ 5º Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
§ 6º O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
§ 7º A Súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão.
A propósito, comentou, recentemente, Humberto THEODORO JÚNIOR: "A partir de agora, os ministros do Supremo Tribunal Federal só receberão os recursos extraordinários que considerarem ter repercussão política, econômica, jurídica ou social que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. Ou seja: recursos cujo tema discutido não atinja a sociedade em geral devem deixar de fazer parte das sessões da Corte" [36].
Enfim, é cabível o Recurso Extraordinário, para o Supremo Tribunal Federal, por violação direta a norma da Constituição, desde que exaurida a via de recursos na esfera trabalhista e demonstrado o pressuposto da "repercussão geral".
Mas que se deve entender por esse instituto (repercussão geral)?
Trata-se, tão-somente, da ressurreição da antiga e temida "argüição de relevância da questão federal", criada pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal, por meio da Ementa Regimental n. 3, de 12-6-1975, posteriormente contemplada pela Constituição de 1967.
O art. 327, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (de 27-10-1980) dispunha: "Entende-se relevante a questão federal que, pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigir a apreciação do recurso extraordinário pelo Tribunal" (grifou-se).
Naquela época, falava-se em "reflexos"...
Fala-se, hoje, em "repercussão"...
Qual a diferença?
Mudou-se apenas o nome desse odioso instituto processual, provavelmente na tentativa de sepultar as críticas que a doutrina lhe fez à época. Uma das flechadas mais contundentes foi disparada por José Joaquim Calmon de PASSOS:
Se toda má apreciação do Direito representa gravame ao interesse público na justiça do caso concreto (único modo de se assegurar a efetividade do ordenamento jurídico), não há como se dizer irrelevante a decisão em que isso ocorre (...).
Logo, volta-se ao ponto inicial. Quando se nega vigência à lei federal ou quando se lhe dá interpretação incompatível, atinge-se a lei federal de modo relevante e é do interesse público afastar esta ofensa ao direito individual, por constituir também uma ofensa ao direito objetivo, donde ser relevante a questão federal que configura.
(...)
Não há injustiça irrelevante! Salvo quando o sentimento de Justiça deixou de ser exigência fundamental na sociedade política. E, quando isso ocorre, foi o Direito mesmo que deixou de ser importante para os homens [37].
Evandro Lins e SILVA – com a autoridade de quem foi Ministro do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, criticou a falta de objetividade dessa exigência:
A maior resistência ao alvitre da adoção da relevância, naquela época, partiu da corrente que considerava o requisito arrojado e de penosa aplicação na prática, pela dificuldade de encontrar dados objetivos capazes de oferecer uma definição concreta do que seja "questão federal relevante". (...) O que é relevante para uns, não o será para outros [38].
O juízo de atendimento (ou não) dessa exigência, no passado, como hoje, dá margem a interpretações político-subjetivas (e não jurídico-objetivas).
BARBOSA MOREIRA tentou identificar critérios objetivos para a definição da relevância:
a) questão capaz de influir concretamente, de maneira generalizada, numa grande quantidade de casos; b) decisão capaz de servir à unidade e ao aperfeiçoamento do Direito ou particularmente significativa para seu desenvolvimento; c) decisão que tenha imediata importância jurídica ou econômica para círculo mais amplo de pessoas ou para mais extenso território da vida pública; d) decisão que possa ter como conseqüência a intervenção do legislador no sentido de corrigir o ordenamento positivo ou de lhe suprir lacunas; e) decisão que seja capaz de exercer influência capital sobre as relações com Estados estrangeiros ou com outros sujeitos de Direito Internacional Público [39].
Pensamos que, na verdade, qualquer violação à Constituição da República é relevante. Falar em "relevância de questão constitucional" é pleonasmo...
No presente caso concreto, como admitir que a discussão acerca do direito social de moradia, protegido por normas constitucionais – arts. 6º e 226, possa ser irrelevante?
Outra discussão aqui travada é: a falta de argüição da impenhorabilidade do bem de família, em determinada medida processual, gera preclusão? Ou, por ser matéria de ordem pública, objeto de proteção constitucional, geradora de nulidade absoluta, pode ser alegada em qualquer momento processual ou grau de jurisdição? Como imaginar que um pronunciamento da Suprema Corte, acerca dessa matéria, não provoque "repercussão geral"? Há milhares de executados, por esse Brasil afora, em idêntica situação. São tantos os que se encontram nesse quadro aflitivo que, de há muito, o Supremo Tribunal Federal já deveria ter sumulado a questão.