3. DAS QUESTÕES DE DIREITO DE MAIOR RELEVÂNCIA PARA O JULGAMENTO DA CAUSA
À guisa de introdução, pedimos vênia por observar que nossos Tribunais Regionais Federais – acolhendo a arguição de inconstitucionalidade do art. 16, § 2º, da Lei 8.213/91, após a redação dada pela Lei 9.528/97 – vêm reconhecendo, sem discrepância, ao menor sob guarda judicial o direito aos benefícios previdenciários, via ações civis públicas intentadas pelo Ministério Público Federal, exatamente como ocorreu no caso presente.
Da mesma forma, a Turma Nacional de Uniformização da Jurisprudência, formada por Juízes Federais com notória experiência na área específica, como do conhecimento comum, também pacificou seu entendimento no sentido da inconstitucionalidade do referido art. 16, § 2º, para reconhecer a qualidade de dependente previdenciário do menor sob guarda judicial e dependência econômica do segurado.
Aliás, a proteção especial ao menor, quer sob guarda, quer sob tutela, afigura-se-nos indissociável da própria história da legislação previdenciária, que, há mais de meio século, vem proporcionando especial proteção aos menores, quer àqueles sob a condição de designados, quer àqueles sob a tutela ou a guarda judicial do segurado, conforme exsurge, por exemplo, a partir do disposto no art. 11, II, e § 2º, "b", da Lei n° 3.807, de 26.08.1960, na redação do Decreto-lei n° 66, de 21.11.1966, assim redigidos:
"Art. 11. Consideram-se dependentes dos segurados, para os efeitos desta Lei: (...)
II - a pessoa designada, que, se do sexo masculino, só poderá ser menor de 18 (dezoito) anos ou maior de 60 (sessenta) anos ou inválida; (...)
§ 2º Equiparam-se aos filhos, nas condições estabelecidas no item I, e mediante declaração escrita do segurado: (...)
b) o menor, que, por determinação judicial, se ache sob sua guarda; (...)."
Na redação primitiva da Lei nº 3.807, de 26.08.1960, já estava contemplada a pessoa designada, que vivesse sob a dependência econômica do segurado, tida como tal evidentemente a pessoa do menor sob a guarda e responsabilidade do segurado, conforme art. 11, § 1º, que dispunha:
"§ 1º O segurado poderá designar, para fins de percepção de prestações, uma pessoa que viva sob sua dependência econômica, inclusive a filha ou irmã maior, solteira, viúva ou desquitada."
Aliás, o direito à pensão por morte do segurado sempre teve como beneficiários não somente o cônjuge e os filhos menores, como igualmente pessoas outras, algumas delas na condição de designadas, incluídas como tais a companheira, o companheiro, além evidentemente dos menores e incapazes, a critério do segurado.
Inicialmente, a Lei Eloy Chaves, Decreto nº 4.682, de 24 de janeiro de 1923, que criou a Caixa de Aposentadorias e Pensões dos empregados das empresas de estradas de ferro, dispôs que:
"Art. 26. No caso de fallecimento do empregado aposentado ou do activo que contar mais de 10 annos de serviços effectivos nas respectivas empresas, poderão a viúva ou viúvo inválido, os filhos e os paes e irmãs enquanto solteiras, na ordem da successão legal, requerer pensão à Caixa creada por esta lei."
Veio o Decreto nº 20.465, de 1º de outubro de 1931, que introduziu reformas na "legislação das Caixas de Aposentadoria e Pensões", e, por sua vez, autorizou, nos termos do art. 31, § 3º, o segurado a instituir herdeiro "outro perene do sexo feminino, até 3º grau, devidamente comprovado", que vivesse "sob sua exclusiva economia", nos termos seguintes:
"Art. 31. Em caso de falecimento do associado ativo ou do aposentado, que contar cinco ou mais anos de serviço efetivo, terão direito à pensão os membros de sua família.
§ 1º Para os fins da presente lei, consideram-se membros da família do associado, para fazerem jus à pensão, na ordem sucessiva abaixo indicada, se tiverem vivido, até à morte do mesmo na sua dependência econômica exclusiva:
1 - mulher, marido inválido, filhos legítimos, legitimados, naturais (reconhecidos ou não) e adotados legalmente;
2 - pai inválido e mãe viúva;
3 - irmãs solteiras.
§ 2º A existência de beneficiários de uma qualquer das classes enumeradas no § 1º exclui do benefício qualquer dos membros das classes subseqüentes.
§ 3º O associado que não tiver herdeirona forma do presente artigo poderá, mediante declaração expressa, do seu próprio punho, com testemunhas, firma reconhecida e registro respectivo, instituir herdeiro, para o fim deste artigo, outro perene do sexo feminino, até 3º grau, devidamente comprovado, que viva sob sua exclusiva economia."
Por sua vez, o Decreto nº 22.872, de 29 de Junho de 1933, que criou "o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos", igualmente autorizou a designação de determinada pessoa que vivesse sob a dependência econômica do segurado, que perceberia "a importância correspondente à metade da pensão", conforme art. 55, nestes termos:
"Art. 55. Têm direito a pensão, deste o dia do falecimento do associado as pessoas de sua família, na ordem seguinte:
1° viuva, viuvo inválido, em concurrencia com os filhos;
2° filhos legitimos, legitimados, naturais (reconhecidos ou não) e adotados legalmente;
3°, viuva, com concorrencia com os pais do associado, desde que vivam sob a dependencia economica exclusiva do mesmo;
4º, mãe viuva e pae invalido, desde que vivam sob a dependencia economica exclusiva do associado;
5°, irmãs solteiras o irmãos invalidos, nas condições do número precedente.
§ 1º Si do associado, aposentado ou ativo, que falecer, houver filhos orfãos de mais de um matrimonio, a pensão será dividida igualmente entre todos e entregue aos seus representantes legais.
§ 2° A existencia de herdeiros de uma das classes enumeradas neste artigo excluc do beneficio qualquer dos enumerados nas classes subsequentes, sem prejuizo do disposto no paragrafo anterior.
§ 3° O associado que não tiver herdeiros poderá, mediante declaração do seu proprio punho, com testemunhas, firma reconhecida e registro no Instituto, designar como benefiario para o fim dêste artigo, determinada nada pessôa que viva sob a sua dependencia economica exclusiva, a qual perceberá a importancia correspondente á metade da pensão."
E o Decreto nº 24.615, de 8 de julho de 1934, que criou "o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários", dispôs:
"Art. 10. No caso de falecimento do associado aposentado, ou do ativo, e desde o dia em que o óbito ocorrer, terão direito à pensão as pessoas de sua família, na ordem seguinte:
1. viúva, ou viúvo inválido, em concorrência com os filhos;
2. filhos legítimos, legitimados, naturais (reconhecidos ou não) e adotados legalmente;
3. viúva, em concorrência com os pais do associado, desde que vivam sob a dependência econômica exclusiva do associado;
4. mãe viúva e pai inválido, desde que vivam sob a dependência econômica exclusiva do associado;
5. irmãs solteiras e irmãos menores ou inválidos, nas condições do número precedente.
§ 1º No caso de existirem filhos de mais de um matrimônio, a parte da pensão que cabe aos filhos será dividida igualmente entre todos e entregue aos seus representantes legais.
§ 2º A existência de herdeiros de uma das classes enumeradas neste artigo exclue do benefício qualquer dos subseqüentes, sem prejuízo do disposto no parágrafo anterior.
§ 3º O associado que não tiver herdeiros nas condições deste artigo, poderá, mediante declaração do próprio punho, com testemunhas, firma reconhecida e registro no Instituto, designar como beneficiária, para ter direito à pensão, determinada pessoa que viva sob a sua dependência econômica exclusiva."
A Lei nº 367, de 9 de setembro de 1936, que criou o "Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários", também autorizaou a designação de pessoa beneficiária de pensão, ao dispor:
"Art. 9º Para os effeitos desta lei são considerados beneficiários, na ordem das letras seguintes e desde que dependam economicamente do associado:
a) a viúva, o viúvo Invalido, os filhos de qualquer condição menores ou invalides;
b) mãe ou pae invalido;
c) irmãos menores ou invalides:
d) a pessoa sem relação de parentesco prevista neste artigo, expressamente designada, na falta de beneficiárias."
Feito este retrocesso, registra-se que a Consolidação das Leis da Previdência Social aprovada pelo Decreto nº 77.077, de 24.01.1976, e os demais diplomas que se lhe seguiram, sempre consideraram o menor sob guarda como dependente, para fins previdenciários, do guardião. Dizia o Decreto nº 77.077, de 1976:
"Art. 13. Consideram-se dependentes do segurado, para os efeitos desta Consolidação:
I - a esposa, o marido inválido, a companheira mantida há mais de 5 (cinco) anos, os filhos de qualquer condição menores de 18 (dezoito) anos ou inválidos e as filhas solteiras de qualquer condição menores de 21 (vinte e um) anos ou inválidas;
(...).
§ 2º - Equiparam-se aos filhos, nas condições do item I, mediante declaração escrita do segurado:
a) o enteado;
b) o menor que, por determinação judicial, se ache sob sua guarda;
c) menor que se ache sob sua tutela e não possua bens suficientes para o próprio sustento e educação."
Idêntica proteção ao menor sob guarda judicial continuou sendo, depois, reconhecida pelo Decreto n° 89.312, de 23.01.1984, em seu art. 10, § 2º, "b", diga-se de passagem, tudo sempre em plena harmonia com a Lei n° 3.807, de 26.08.1960 (Lei Orgânica da Previdência Social) vigente à época.
Em reforço a estes tradicionais preceitos, e neles inspirada, veio a Constituição de 1988, que, em seu art. 227, caput, e § 3º, incisos II e VI, estabeleceu o seguinte:
"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(...)
§ 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
(...)
II - garantia de direitos previdenciários;
(...)
VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de GUARDA, DE CRIANÇA OU ADOLESCENTE órfão ou abandonado (...)". [Grifamos].
Regulamentando o Texto da Lei Maior, ao tratar sobre o instituto da guarda, o Estatuto da Criança e do Adolescente, publicado em 13.07.1990, no seu art. 33, § 3º, dispôs:
"Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.
(...).
§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários." [Grifamos].
Na mesma linha da diretriz, que vinha desde a Lei n 3.807, de 1960, foi baixada a Lei n° 8.213, de 24.07.1991, que dispõe sobre os planos de benefícios da Previdência Social, cujo art. 16, § 2º, em sua redação originária, estabelecia que:
"Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qual condição, menor de 21 anos ou inválido;
(...)
§ 2º Equiparam-se a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor, que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação." [Grifamos].
Como se vê da transcrição, em sua redação primitiva, o art. 16, § 2º, da Lei nº 8.213/91 se apresentava em perfeita harmonia com a Constituição Federal (art. 227, caput, e § 3º, incisos II e VI), especialmente com o denominado princípio da proteção integral, cuja origem remonta à "Declaração dos Direitos da Criança", de 1959, aprovada, em 1989, pela "Convenção sobre os Direitos da Criança", que consagrou a "Doutrina da Proteção Integral", e o Brasil foi um dos Signatários daquela Convenção, obrigando-se, portanto, a respeitá-la.
Nessa linha de pensamento, a Constiutição de 1988 antecipou-se à "Convenção Internacional dos Direitos da Criança", que somente veio a ser aprovada, passando assim, a integrar a categoria das normas jurídicas internas, em 20 de novembro de 1989, portanto, mais de um ano depois da Constituição.
A propósito, pedimos licença para transcrever as seguintes lições do Professor José Roberto Dantas Oliva:
"A Constituição Federal de 1988, entretanto, aditando-se à proclamação da referida Convenção, adotou a Doutrina internacional da Proteção Integral, cuja origem remonta à Declaração dos Direitos da Criança, de 1959. No plano nacional, referida doutrina, a partir daí, deixou o campo teorético para transformar-se no Princípio da Proteção Integral, incorporando-se definitivamente ao ordenamento jurídico pátrio, em sede de norma constitucional.
Referido princípio é expresso, principalmente, no art. 227 da Lei Fundamental, mas, depois, no plano infraconstitucional, foi solidificado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Antes, porém, de discorremos sobre o princípio em questão, conveniente tratar da sua normatividade, situando-o no conceito moderno de que os princípios, especialmente os positivos na Constituição Federal, têm caráter obrigatório, vinculando não apenas o legislador, como também governantes e governados e o próprio Judiciário, quando da solução de casos concretos. É superada a ideia de que os princípios servem apenas de diretrizes, tendo conteúdo meramente programático. Na nova concepção, princípios e regras são espécies do gênero norma." (OLIVA, José Roberto Dantas. O Princípio da Proteção Integral e Trabalho da Criança e do Adolescente no Brasil, São Paulo, LTR, 2006, pág. 89).
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"Referido princípio, por conseguinte, exige concreção. Deve, necessariamente, pautar o exercício de poderes normativos, tanto na esfera de criação (e aí dirige-se ao legislador, impondo-lhe conduta que, se não observada, estará desconforme com a Carta Maior e será, sem dúvida alguma, inconstitucional) como na de aplicação (neste sentido, dirige-se ao Estado-Juiz, que deve aplicá-lo sem ao menos pestanejar na solução dos casos que lhe são submetidos à apreciação).
No plano não normativo, o Princípio da Proteção Integral deve guiar o comportamento de governantes e governados, em ações ou abstenções (ou, caso se prefira, no agir de forma comissiva ou omissiva), pois estes são os destinatários finais das normas jurídicas em geral." (OLIVA, José Roberto Dantas. O Princípio da Proteção Integral e Trabalho da Criança e do Adolescente no Brasil, São Paulo, LTR, 2006, pág. 101).
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"Note-se que não é uma proteção qualquer que é assegurada à criança e ao adolescente pela Constituição Federal, pelo Estatuto já referido e por outras normas (inclusive convenções internacionais ratificadas) que conferem substância ao referido princípio: é uma proteção rotulada INTEGRAL. A adjetivação, na hipótese, não é aleatória e nem despropositada. Teve finalidade de realçar que essa especial proteção, que tem caráter de absoluta prioridade, deve ser total, completa, cabal, envolvendo, como agentes da sua efetivação, família, sociedade e Estado.
Veja-se que referida proteção se espraia por todos os ramos do direito." (OLIVA, José Roberto Dantas. O Princípio da Proteção Integral e Trabalho da Criança e do Adolescente no Brasil, São Paulo, LTR, 2006, pág. 103).
Para a perplexidade de todos, entretanto, veio a ser editada a Medida Provisória n° 1.523, de 11.10.1996 (DOU 14.10.1996), convertida, após treze sucessivas reedições, na Lei nº 9.528, de 10.12.1998, passando o referido dispositivo a ter a seguinte redação:
"§ 2º O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento."
Como visto, com a nova redação do art. 16, § 2º, da Lei n° 8.213/91, atribuída por força da Lei n° 9.528/97, o menor sob guarda judicial não mais foi incluído, como era antes, no rol de dependentes do segurado para fins de benefício previdenciário, o que configura evidente tratamento discriminatório e incompatível com o princípio constitucional da proteção integral ao menor, independente de sua condição pessoal.
Ocorre, todavia, que o Estatuto da Criança e do Adolescente, no que tange à matéria, não foi modificado, conservando-se, este sim, em perfeita harmonia com as disposições de nossa Constituição Federal (arts. 5º, caput, § 2º, e 227, § 3º, II e VI).
Certo é que a nova redação do art. 16, § 2º, da Lei nº 8.213/91 fez com que expressiva quantidade de demandas, principalmente através de ações civis públicas aforadas pelo Ministério Público Federal, chegassem à Justiça Federal, e perante esta, conforme já destacamos, dos precedentes que encontramos, todos os Juízes e Tribunais Regionais Federais se posicionaram no sentido da garantia constitucional da proteção integral à infância e à adolescência, ou seja, da proteção ao menor sob guarda judicial, tendo-o reconhecido como dependente do segurado e beneficiário para fins de proteção dos órgãos de previdência social, evidentemente, durante a menoridade, em situação jurídica equivalente à dos filhos de qualquer condição.
À guisa de exemplo dos inúmeros julgados favoráveis à infância e à adolescência, no caso de guarda judicial, contrários à pretensão do INSS aqui manifestada, pode ser lembrado o da Ação Civil Pública nº 97.0057902-6, proposta pelo Ministério Público Federal, que tramitou perante a 7ª Vara Federal da 1ª Subseção Previdenciária da Circunscrição Judiciária do Estado de São Paulo, cujo pedido foi julgado procedente em 1º Grau e a sentença confirmada, via apelação cível, pelo TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO, em v. acórdão que hospedou o entendimento no sentido de que:
"(...) a atual redação do art. 16, § 2º, da Lei (8.213/91) não observa os mandamentos constitucionais de proteção integral e prioritária à criança e ao adolescente, com a garantia de direitos previdenciários (art. 227, § 3º, II, da CF), em razão de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Desprestigia o acolhimento do menor, sob a forma de guarda, à revelia da disposição do art. 227, § 3º, segundo a qual "a guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários" (...) "é a guarda que confere a tutela cautelar assistencial e social, ao lado da simples administração do patrimônio do tutelado. Os deveres do tutor de dirigir a educação, defender e prestar alimentos ao menor (art. 1.740, CC) confundem-se com o próprio conteúdo da guarda (art. 33, caput, do ECA). Ambos os institutos prestam à proteção da criança ou do adolescente que, por alguma das razões legais, não tem, em sua família originária, a garantia dos direitos à vida e desenvolvimento plenos. A finalidade protetiva permite incluir o menor sob guarda na expressão "menor tutelado" do § 2º do art. 16 da Lei nº 8.213/91." (Apelação Cível nº 2007.03.99.042384-4). [Os grifos são nossos].
Mas não só o da 3ª Região. Também o TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO hospedou julgamento favorável ao menor sob guarda judicial, acolhendo pedido do Ministério Público Federal formulado em ação civil pública, conforme ementa do v. acórdão, nestes termos:
"PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO - PROTEÇÃO DE INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS DE MENORES - GUARDA JUDICIAL - DEPENDÊNCIA PREVIDENCIÁRIA - SUPRESSÃO - INEXISTÊNCIA.
1.O Ministério Público Federal tem legitimidade para propor ação civil publica visando à condenação do INSS a admitir os menores sob guarda judicial como dependentes previdenciários dos respectivos guardiães, não apenas pelo elevado interesse social do tema como ainda pela norma do art. 210, V, da Lei 8.069, que se amoldam ao art. 127 da Lei Maior.
2.Pode ser apreciada, em ação civil pública, incidenter tantum, a alegada inconstitucionalidade de norma legal, porque a coisa julgada, mesmo sendo erga omnes (art. 16 da LACP), restringe-se ao que foi pedido pela parte, como questão principal, e efetivamente decidido pelo Estado-juiz (arts. 468 e 128 do CPC), não abrangendo as questões prejudiciais (art. 469, III, do CPC c/c. art. 19 da LACP), pelo que inexiste indevida equiparação às decisões do Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado de constitucionalidade, nem usurpação da competência constitucional do Supremo.
3.As crianças e adolescentes sob guarda, nos termos do art. 33, § 3º, do ECA, são dependentes, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários, de seus guardiães, não sendo admissível a derrogação deste dispositivo pela Lei nº 9.528/97, porquanto se trata de leis especiais e, além do mais, o direito em questão tem fundamento constitucional (art. 227, § 3º, II e VI). Vencido, em parte, o relator, que acolhia a argüição de inconstitucionalidade e submetia a questão ao Órgão Especial, nos termos dos arts. 97 da CF e 481 do CPC." (AC 254666/2000.02.01.070542-5, DJU 10/10/2003, pág. 91).
No mesmo sentido, a Ação Civil Pública nº 1999.38.00.004900-0, também proposta pelo Ministério Público Federal, que tramitou perante a 29ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais, na qual foi concedida liminar, que posteriormente foi confirmada por sentença favorável ao menor sob guarda judicial, atualmente aguardando julgamento perante o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, onde, em outro e recente julgamento, foi acolhida a argüição de inconstitucionalidade do art. 16, § 2º, da Lei n° 8.213/91, redação atual, conforme será exposto adiante.
Também é o mesmo caso da Ação Civil Pública nº 1999.43.00.000326-2, que tramitou perante a 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Tocantins, com sentença favorável ao menor, atualmente aguardando julgamento perante o Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Outra Ação Civil Pública, a de nº 1997.0003837-4, que tramitou perante a 2ª Vara Federal em Florianópolis, também mereceu decisão favorável à tese do Ministério Público Federal, que restou confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em sede de apelação, tendo sido ali "reconhecido o direito dos menores sob guarda à sua inclusão como dependentes previdenciários, em face do que estabelece o § 3º do art. 33 da Lei 8.069/90 e os arts. 5º e 227 da CF/1988" (Apelação Cível n° 1998.04.01.080271-2).
Enfim, o que mais releva é que todas as ações civis públicas propostas pelo Ministério Público Federal colheram êxito junto à Justiça Federal em 1º Grau e aos Tribunais Regionais Federais, no sentido de reconhecer aos menores sob guarda judicial os mesmos benefícios devidos aos filhos do guardião segurado. Aliás, não encontramos sequer um julgamento contrário ao direito do menor, em tais casos.
Por isso que se pede vênia por adotar os mesmos fundamentos da arguição de inconstitucionalidade, que exsurge de julgado realizado no dia 20.08.2009, cujo v. acórdão foi publicado no E-DJF1 do dia 21.09.2009, em que a Colenda Corte Especial do Tribunal Regional Federal da Primeira Região houve por bem acolher idêntico incidente suscitado em voto (vogal) do eminente Desembargador Federal CARLOS MOREIRA ALVES, para
."declarar a inconstitucionalidade do § 2º do art. 16 da Lei nº 8.213/91, na parte que excluiu o menor sob guarda judicial do rol dos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependente do Segurado"
O incidente foi suscitado durante o julgamento de recurso manifestado nos autos da Ação Civil Pública nº 1998.37.00.001311-0/MA, movida pelo Ministério Público Federal, cujo pedido foi julgado procedente em 1º Grau, estando a tese do v. acórdão que reconheceu a inconstitucionalidade daquele preceito (parágrafo 2º do art. 16 da Lei nº 8.213/91) resumida na respectiva ementa, nestes termos:
CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO - ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO § 2º DO ART. 16 DA LEI 8.213/91, COM A REDAÇÃO DADA PELA MEDIDA PROVISÓRIA 1.523, DE 11/10/96, REEDITADA E CONVERTIDA NA LEI 9.528/97 - SUPRESSÃO DO MENOR SOB GUARDA JUDICIAL DO ROL DE BENEFICIÁRIOS DO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL, NA CONDIÇÃO DE DEPENDENTE DO SEGURADO - AFRONTA AOS ARTS. 227, § 3º, II E VI, E 5º, CAPUT, DA CF/88 - INCONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA."
I - A redação original do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91 estabelecia que se equiparavam "a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação."
II - A Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97, alterou o aludido § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91, para estabelecer que "o enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento", suprimindo, portanto, o menor sob guarda judicial do rol de beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependente do segurado.
III - A Constituição Federal consagra, em relação à criança e ao adolescente, o princípio da proteção integral, cabendo à família, à sociedade e ao Estado o dever de, solidariamente, assegurar-lhes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, direitos naturais fundamentais (art. 227, "caput", da Carta Magna).
IV - O constituinte elenca, ainda, no § 3º do art. 227 da Carta Maior, sete normas indicativas das obrigações que o legislador ordinário não pode deixar de cumprir, entre as quais destacam-se a garantia, ao menor - criança e adolescente -, dos direitos previdenciários e trabalhistas, e o estímulo do Poder Público ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado.
V - "Sabemos que a supremacia da ordem constitucional traduz princípio essencial que deriva, em nosso sistema de direito positivo, do caráter eminentemente rígido de que se revestem as normas inscritas no estatuto fundamental. Nesse contexto, em que a autoridade normativa da Constituição assume decisivo poder de ordenação e de conformação da atividade estatal - que nela passa a ter o fundamento de sua própria existência, validade e eficácia -, nenhum ato de Governo (Legislativo, Executivo e Judiciário) poderá contrariar-lhe os princípios ou transgredir-lhe os preceitos, sob pena de o comportamento dos órgãos do Estado incidir em absoluta desvalia jurídica." (ADI 2.215/PE, Rel.: Min. Celso de Mello, DJU de 26/04/2001).
VI - Desse modo, a norma contida no art. 16, § 2º, da Lei 8.213/91 - na redação dada pela Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97 -, na parte em que exclui o menor sob guarda judicial da condição de dependente, colocando-o à margem da proteção previdenciária estatal, é inconstitucional, pois não se harmoniza com as garantias estabelecidas na Lei Maior, entre elas as do art. 227, caput, § 3º, II e VI, da Carta.
VII - Ademais, a discriminação trazida pela nova redação do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91 - ao excluir o menor sob guarda judicial da condição de dependente do segurado -, afronta, também, o princípio constitucional da isonomia, previsto no art. 5º, caput, da CF/88, pois, do ponto de vista essencial - não do nomen iuris do instituto jurídico sob cuja tutela vivem -, os menores sujeitos à guarda judicial de outrem necessitam dos mesmos cuidados e da mesma proteção estatal dispensada aos tutelados, diante do infortúnio da morte do guardião ou tutor, conforme o caso.
VIII - Acolhimento da arguição de inconstitucionalidade do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91, com a redação dada pela Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97, na parte em que excluiu o menor sob guarda judicial do rol dos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependente do segurado." (INREO 1998.37.00.001311-0/MA, Rel.: Desembargadora Federal Assusete Magalhães, Corte Especial, publicado no e-DJF1 de 21/09/2009, p. 222).
Prevaleceu a tese sustentada no voto proferido pela eminente Desembargadora Federal ASSUSETE MAGALHÃES, cuja transcrição é feita a seguir, na parte que consideramos essencial, para fundamentar o presente incidente de inconstitucionalidade:
"Como visto no relatório, suscita-se, no presente feito, de forma incidental, a inconstitucionalidade do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91, com a redação dada pela Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97, que subtraiu, do rol de beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependente do segurado, o menor sob guarda judicial, o qual, na redação anterior, era equiparado a filho, nas condições do inciso I do referido dispositivo legal.
O presente incidente foi suscitado nos autos de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, na qual visa compelir o INSS a admitir os menores sob guarda judicial como beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na qualidade de dependentes do segurado guardião.
O eminente Desembargador Federal Carlos Moreira Alves, em seu voto-vista, quando da apreciação da remessa necessária, pela 2ª Turma do TRF/1ª Região, bem delineou a questão a ser posta neste incidente de inconstitucionalidade:
" (...) na presente ação civil pública, julgada procedente junto ao primeiro grau da jurisdição, busca o Ministério Público Federal seja compelido o Instituto Nacional do Seguro Social a admitir a inscrição de crianças e adolescentes, sob guarda judicial, como beneficiárias do Regime Geral da Previdência Social, na qualidade de dependentes do segurado. Dos dois fundamentos substantivos da causa de pedir deduzida na lide – necessidade de se reconhecer omissão legislativa na norma inscrita no parágrafo 2° do artigo 16 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, com a redação atribuída pela Lei 9.528, de 10 de dezembro de 1997, de modo que, integrada ao disposto no parágrafo 2° do artigo 33 da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, continue admitida a qualidade, dos menores sob guarda judicial, de beneficiários do Regime Geral de Previdência Social: incompatibilidade, com a ordem constitucional, daquele dispositivo, caso outro seja o entendimento –, louvou-se no primeiro deles a ilustre autoridade judiciária singular para acolher o pleito e, com a negativa de provimento à remessa oficial, posicionou-se Vossa Excelência em igual sentido, como fazem ver os fundamentos de seu douto voto. (...).
De fato, o parágrafo 3° do artigo 33 do Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza, de modo genérico, que "a guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários", e nesse mesmo sentido se posicionou, especificamente no âmbito do Regime Geral da Previdência Social, o parágrafo 2° do artigo 16 da Lei 8.213, de 1991, em sua primitiva redação, ao equiparar aos filhos, para percepção dos benefícios nele previstos, mediante declaração do segurado, "o enteado; o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda, e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação". Com a alteração desse texto por força da Lei 9.528/97, fruto da conversão da Medida Provisória 1.523/96 e suas sucessivas reedições, mantendo a equiparação aos filhos, para fins do RGPS, apenas de enteados e menores tutelados, não é possível se pretender, em relação ao menor sob guarda judicial, omissa a disposição posterior e, por via de interpretação, à luz do disposto no preceito protetivo da criança e do adolescente, se lhe atribuir os mesmos sentido e alcance da disposição anterior, como se não houvesse sido ela objeto de qualquer modificação. Se o legislador infraconstitucional, por atuação positiva, específica e proposital, deixou de equiparar a filho, no âmbito do Regime Geral da Previdência Social, o menor sob guarda judicial, o fez com propósito inequívoco de lhe subtrair a qualidade de dependente do segurado, sendo, por óbvio, incompatível com o alcance desse objetivo interpretação da qual resulte mantida esta qualidade.
Não é possível, pois, a meu juízo, se confirmar a sentença pelo fundamento que a inspirou, de índole infraconstitucional, restando, assim, indispensável a análise da alegada incompatibilidade, com a ordem constitucional, da vigente redação do parágrafo 2° do artigo 16 da Lei 8.213/91, no que diz com a exclusão do menor sob guarda do rol dos beneficiários do Regime Geral da Previdência Social.
Nesse particular, tenho como de expressiva razoabilidade a alegação. Com efeito, o artigo 227 da Lei Fundamental é categórico sobre substanciar "dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e Comunitária", explicitando seu parágrafo 3º, inciso II, que o direito a essa proteção especial abarcará a "garantia de direitos previdenciários e trabalhistas". Quer parecer que a alteração legislativa em exame retira do menor sob guarda judicial, dependente do guardião para todos os fins e efeitos de direito, segundo o estatuto protetivo da criança e do adolescente, os direitos previdenciários, deixando-o, quando seja ele dependente de segurado do Regime Geral da Previdência Social, totalmente ao desamparo da previdência estatal. E decerto não poderá ser justificativa válida, para esse desamparo pela previdência estatal, a de ocorrência de abusos na concessão de guardas, pois se é correta a ponderação de que "os fatos claramente abusivos em detrimento do patrimônio do INSS, que é público, deram o indispensável suporte fático à mudança da lei", não é menos correta a de que não lhe servem de suporte jurídico, capaz de afastar a nota de incompatibilidade com a ordem constitucional, pois é evidente que abusos devam ser coibidos, inclusive com medidas legislativas para tal fim, não podendo, porém, tais medidas chegar ao ponto de simplesmente suprimirem do menor sob guarda judicial a proteção previdenciária, até porque, se o benefício representa a contrapartida pelas contribuições pagas pelo segurado, não se pode retirar, de quem dele é dependente, o direito de obter essa contrapartida, finalidade mesma da própria Previdência Social.
Em tais condições, Sr. Presidente, tendo por pertinente a invocada incompatibilidade, com a Lei Fundamental, do parágrafo 2° do artigo 16 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, em sua atual redação, no que diz com o menor sob guarda judicial,
e sendo indispensável, a meu sentir, para solução da lide, o controle difuso de constitucionalidade, voto no sentido de que seja suscitado, perante a Corte Especial, o competente incidente de inconstitucionalidade." (fls. 75/77 – grifos nossos) (...).
Esclareço que a jurisprudência do colendo STF ainda não examinou a questão sub judice, ou seja, de inconstitucionalidade da nova norma, em face do princípio da isonomia e do art. 227, caput, e § 3º, II e VI, da Carta Constitucional, havendo precedentes apreciando a questão apenas quanto à inexistência de direito adquirido a regime jurídico (RE 461514/RS, Rel.: Min. Ellen Gracie, DJe de 27/02/2009; RE 472.275/PE, Rel.: Min. Joaquim Barbosa, DJe de 27/03/2007).
Já a jurisprudência do egrégio STJ tem analisado a questão do direito de pensão ao menor sob guarda judicial, cujo óbito do instituidor ocorreu após a Lei 9.528/97, apenas à luz da legislação infraconstitucional, negando-lhe o direito, ante a alteração legislativa, como se esclarece no voto-vista do eminente Desembargador Federal Carlos Eduardo Moreira Alves, a fls. 75/77.
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Verifica-se, pois, que, em relação à criança e ao adolescente, a Constituição Federal consagra o princípio da proteção integral, cabendo à família, à sociedade e ao Estado o dever de, solidariamente, assegurar-lhes tais direitos naturais fundamentais, com absoluta prioridade.
O constituinte elenca, ainda, no § 3º do art. 227 da Carta Maior, sete normas indicativas das obrigações que o legislador ordinário não pode deixar de cumprir, entre as quais destacam-se a garantia, ao menor – criança e adolescente –, dos direitos previdenciários e trabalhistas, e o estímulo do Poder Público ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado.
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Danielle Perini Artifon, em artigo sobre os aspectos constitucionais da exclusão, da proteção previdenciária, do menor sob guarda judicial, aduz que "o legislador constituinte, como se depreende da leitura do texto constitucional, procurou maximizar a tutela aos direitos individuais e sociais da criança e do adolescente, estabelecendo uma normatização genérica que deve servir de parâmetro e orientação para a atividade legislativa infraconstitucional, nos mais diversos ramos do direito", servindo "de pressuposto para qualquer outra manifestação normativa que disponha sobre o assunto, de modo que o legislador ordinário, esmiuçando os preceitos e princípios insertos na Constituição Federal não pode dispor contrariamente a eles e nem limitar seu âmbito de incidência..." [06], sem autorização da própria Carta Política para tanto, sob pena de se revelarem inconstitucionais referidas normas do legislador ordinário.
José Afonso da Silva, ao analisar as normas constitucionais programáticas e a constitucionalidade das leis, assevera que aquelas "se resolvem, prima facie, num vínculo ao Poder Legislativo, quer lhe assinalem somente certo fim a atingir, quer estabeleçam, desde logo, restrições, limites, observância de certas diretrizes, critérios ou esquemas gerais, para alcançar o escopo proposto. [07] ‘Em ambas as hipóteses [sustenta Crisafulli] não há dúvida de que a inobservância das normas constitucionais programáticas por parte do órgão legislativo será motivo de invalidade, total ou parcial, do ato de exercício de seu poder, ou seja, da lei deliberada de modo contrário ou diverso de quanto disposto na constituição. Analogicamente, deve dizer-se, de resto, também nos casos de normas facultativas, quando não tenham sido respeitados os limites e as condições estabelecidos pelas próprias normas.’ [08]" [09] (grifos nossos)
Yussef Said Cahali, ao comentar o art. 34 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) – que reproduz a norma constitucional consubstanciada no referido inciso VI do § 3º do art. 227 –, afirma:
"Em realidade, o legislador, aqui, compromete-se a estimular a guarda como modalidade mais simples e corriqueira, principalmente do menor órfão ou abandonado, de colocação do mesmo em família substituta – ao lado da tutela e da adoção, modalidades mais complexas e menos usuais dessa colocação.
Acalenta-se a esperança de que o menor que caiu na orfandade ou foi relegado ao desamparo ou desprezo no ambiente doméstico encontrará na família substituta o carinho e amparo propícios ao normal desenvolvimento de sua personalidade, vencendo seus conflitos precoces.
A experiência tem demonstrado que a "convivência familiar", ainda que no seio de uma família substituta, apresenta vantagens que se sobrepõem – psicológica, moral e economicamente – às soluções buscadas por via de internação em estabelecimentos governamentais e não governamentais, na formação ou recuperação dos menores carentes.
Daí o aceno, portanto, contido no art. 34, com medidas de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios tendentes a estimular o acolhimento, sob forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado.
" [10].Desse modo, a norma contida no art. 16, § 2º, da Lei 8.213/91 – na redação dada pela Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97 –, na parte em que exclui o menor sob guarda judicial da condição de dependente, colocando-o à margem da proteção previdenciária estatal, é inconstitucional, pois não se harmoniza com as garantias estabelecidas na Lei Maior, entre elas as do art. 227, caput, § 3º, II e VI, da Carta.
Ressalte-se, outrossim, consoante preconiza o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que o Juiz deve, na exegese e na aplicação da lei, atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
O fim social da lei previdenciária é proteger os indivíduos acometidos por alguma contingência da vida e que necessitem de uma assistência estatal, a fim de minimizar os efeitos dos infortúnios, de forma a cumprir o Estado o seu papel de assegurar a dignidade da pessoa humana a todos, em especial ao menor, cuja proteção tem absoluta prioridade.
(...).
É justamente neste intuito – assegurar os meios indispensáveis à manutenção da família, ou, na hipótese discutida, do menor – que o citado art. 16 da Lei 8.213/91 arrola os beneficiários do RGPS, na condição de dependentes do segurado.
Ocorre que a legislação ordinária não pode restringir, indiscriminadamente, a proteção estatal estabelecida pelo texto constitucional.
, como destaca Danielle Perini Artifon, no artigo já mencionado, inexiste qualquer "distinção fática relevante entre a situação do enteado e menor tutelado, por um lado, e do menor sob guarda, por outro, a autorizar que se confira tratamento jurídico diferenciado a este, excluindo-o da condição de dependente e, por conseguinte, tolhendo-lhe a proteção previdenciária. Afinal, a dependência econômica do menor em relação ao segurado mostra-se invariável, seja ele enteado, tutelado ou menor sob guarda." [11]In casu
Tanto é assim, que a legislação aplicada ao imposto de renda das pessoas físicas – Lei 9.250/95 – reconhece a condição de dependente ao menor sob guarda do contribuinte:
"Art. 35. Para efeito do disposto nos arts. 4º, inciso III, e 8º, inciso II, alínea c, poderão ser considerados como dependentes:
(...)
IV - o menor pobre, até 21 anos, que o contribuinte crie e eduque e do qual detenha a guarda judicial;
V - o irmão, o neto ou o bisneto, sem arrimo dos pais, até 21 anos, desde que o contribuinte detenha a guarda judicial, ou de qualquer idade quando incapacitado física ou mentalmente para o trabalho" (grifos nossos).
Ademais, conquanto o instituto da guarda possa eventualmente ser utilizado de maneira desvirtuada – como sustenta o INSS –, para o fim primordial de obtenção do benefício previdenciário, a restrição geral – no caso, com exclusão de todos os menores sob guarda judicial da proteção previdenciária –, não se apresenta como a melhor solução, pois deixa ao desamparo previdenciário inúmeras situações nas quais há dependência econômica merecedora da tutela previdenciária. Ademais, como destacam Daniel Machado da Rocha e José Paulo Baltazar Júnior, na obra Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social, "De registrar, porém, que a guarda, como forma de colocação em família substituta que é, pressupõe a orfandade ou a perda do poder familiar pelos pais, não podendo ser entendida como tal a mera situação de dependência econômica com terceiro, como os avós, quando a criança vive com os pais." [12]
Se eventuais fraudes há, devem ser combatidas pela fiscalização, pela polícia, pelo aparelho preventivo e repressivo que o ordenamento jurídico coloca à disposição do Estado, não com a discriminação odiosa efetuada pela legislação previdenciária ora discutida, que joga, ao desamparo, o menor acolhido no seio de uma família substituta.
Conclui-se, portanto, que a discriminação trazida pela nova redação do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91 – ao excluir o menor sob guarda judicial da condição de dependente do segurado –, afronta, também, o princípio constitucional da isonomia, previsto no art. 5º, caput, da CF/88, pois, do ponto de vista essencial – não do nomen iuris do instituto jurídico sob cuja tutela vivem –, os menores sujeitos à guarda judicial de outrem necessitam dos mesmos cuidados e da mesma proteção estatal dispensada aos tutelados, diante do infortúnio da morte do guardião ou tutor, conforme o caso.
A douta Procuradoria Regional da República da 1ª Região, em parecer da lavra do ilustre Procurador Regional da República Odim Brandão Ferreira, manifestou-se pelo reconhecimento da inconstitucionalidade suscitada, nos seguintes termos, in verbis:
"(...)
III
O acórdão da Turma parece ter sido muito preciso, ao identificar o problema da tese do INSS: ela está fundada em norma legal inconstitucional e, portanto, não se sustenta.
Segundo o art. 226 da Constituição, "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". Com esse pressuposto a Constituição da República determina:
"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 3º. O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
II – garantia de direitos previdenciários e trabalhistas".
A leitura das normas transcritas parece não deixar sombra de dúvida acerca da patente inconstitucionalidade da nova redação do § 2° do art. 16 da Lei 8.213/1991, dada pela Lei 9.528/1997. Ao contrário do que corretamente acontecia anteriormente, o legislador ordinário eliminou proteção previdenciária das crianças – à qual estava obrigado por força das normas da Constituição referidas –, ao suprimir a possibilidade de os incapazes, cuja guarda tenha sido judicialmente entregue a parente diverso dos pais, se beneficiem dos planos previdenciários. Ora, se avó e neto formam família e se a pessoa capaz é segurada da previdência social, parece ululantemente óbvio que o legislador ordinário não poderia ter excluído essa espécie de incapaz da proteção previdenciária estatal.
Aliás, quando a nova redação da lei limitou a proteção constitucional do art. 227, § 3º, II, aos incapazes da família sujeitos à tutela, mas não assim aos sujeitos apenas à guarda de parente diverso dos pais, ela terminou por ofender o princípio da isonomia do caput do art. 5º da Constituição. Afinal de contas, entre as vozes mais autorizadas da Metodologia Jurídica contemporânea [13] formou-se o consenso de que a igualdade entre seres humanos portadores de características essencialmente iguais constitui a exigência básica de toda ordem jurídica, na tentativa de realização de qualquer projeto de Justiça. Por outras palavras, não se pode dispensar tratamento diversificado a duas pessoas iguais nos aspectos essenciais a serem considerados.[São nosso os destaques].
Ora, do ponto de vista essencial – não da denominação do instituto jurídico sob o qual vivem, os incapazes sujeitos à guarda de outrem necessitam dos mesmos cuidados e da mesma proteção estatal – leia-se previdenciária pública – que a lei inconstitucional, perdoe-se a contradição em termos, dispensa aos tutelados. Logo, o legislador ordinário não poderia ter-se valido dessa diferença acessória como marco para excluir certos menores e incluir outros no âmbito da proteção que a República concede às pessoas que a compõem.
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Com a declaração de inconstitucionalidade da nova redação da lei, abrem-se duas possibilidades técnicas, para a resolução do caso. Ou se considera configurada situação de vácuo normativo, ou, ao revés, há de se concluir pela continuidade da vigência da lei velha, revogada pela inconstitucional.
O afastamento da norma inconstitucional implica, no caso, a concessão da ordem, pois, em princípio, o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei revocatória revela que o direito anterior jamais deixou de viger. Essa solução, inconfundível com a repristinação [14], encontra-se hoje expressa no art. 11, § 2°, da Lei 9.868/1999, que regula a ação direta de inconstitucionalidade: "a concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário" [15].
Acerca do ponto, Jörn Ipsen afirmou:
"Evidência dogmática: continuidade da vigência do direito antigo.
A declaração de nulidade de uma lei, segundo a concepção aqui defendida, significa que ela não pode incorporar-se ao ordenamento jurídico e, por isso, não desenvolveu nenhuma eficácia normativa. Em conseqüência do dogma da norma declarada nula. Maurer acentua, com razão, que não se trata da questão de saber se o direito antigo torna-se ‘novamente’ eficaz, mas, sim, se ele ‘ainda’ é eficaz. É de acrescentar a isso apenas que, com esse modelo não se descreve a realidade, mas empreende-se uma tentativa de tratar dogmaticamente a realidade, e isso não significa algo diverso que harmonizar o ser e o dever ser. Se se leva em consideração que aqui se pensa em categorias normativas, então a evidência dogmática da continuidade do direito antigo, enquanto o novo for inconstitucional, é pouco discutível.
Como princípio vale, por isso, que o direito antigo permanece intocado e
continua a viger, na medida que a lei alteradora , inconstitucional" [16].Vê-se, portanto, que, para
Ipsen, não há outra saída senão admitir que o direito antigo, aparentemente revogado por lei inconstitucional, permaneceu em vigor, desde a sua edição.A inexorabilidade da retomada da eficácia da lei revogada como decorrência da declaração de inconstitucionalidade da lei revocatória não é correta, malgrado o tom peremptório da doutrina brasileira na proclamação desse equívoco [17]. Há pelo menos uma hipótese na qual se há de reconhecer o contrário, como argutamente notado por Klaus Schlaich:
"O contrário pode ocorrer no caso único da lei de reforma: nela pode ficar expresso que o legislador não desejou apenas melhorar o direito antigo, mas aboli-lo, de qualquer modo, e isso com certeza, mesmo no caso em que a nova regulamentação, por ser inconstitucional, não devesse
vingar. Se o desejo do legislador de revogar a situação jurídica antiga for eficaz (competência, processo e tudo o mais constitucional), então a lei de reforma, na sua nova regulamentação ineficaz (portanto, parcialmente nula), ainda tem esse efeito de revogar a disciplina antiga. Assim, dada a ausência de validade da nova regulamentação, não há nenhuma regulamentação" [18].
Nem mesmo essa ressalva se aplica ao caso, dado que, em se tratando de obrigação constitucional de proteção à família e aos menores, o legislador ordinário não poderia optar validamente pela pura e simples supressão do direito. Por outras palavras, uma vez que o legislador estava obrigado a proteger os incapazes, não lhe era dada alternativa, sobretudo a de deixar todas as categorias de menores fora da proteção do sistema previdenciário.
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Até aqui, isonomia e proteção ao menor foram tidas como simples peças de retórica jurídica. Por certo, o Judiciário não as aviltará a isso: ao contrário, mostrará que se trata, na verdade, de normas da mais alta hierarquia no nosso ordenamento e que, portanto, não podem ser desrespeitadas por ninguém. Essa, a esperança do Ministério Público Federal.
IV
Em face do exposto, o Ministério Público Federal opina por que se reconheça a inconstitucionalidade suscitada neste incidente.
" (fls. 162/167 – grifos nossos)
Por fim, frise-se que a manutenção do menor sob guarda judicial como beneficiário do RGPS, na condição de dependente do segurado, não viola os arts. 167, XI, e 195, § 5º, da CF/88, porquanto o guardião, efetivamente, contribuiu para que seus dependentes pudessem usufruir de tal benefício e, exatamente por tal razão, o benefício de pensão – observado o caráter contributivo da Previdência Social, consagrado no art. 201 da CF/88 –, era deferido, anteriormente à alteração legislativa ora impugnada, ao menor sob guarda judicial, dependente do segurado.
Portanto, à luz da doutrina e da jurisprudência do colendo STF, invocadas no douto parecer ministerial, declarada a inconstitucionalidade do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91, com a redação dada pela Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97, na parte em que excluiu o menor sob guarda judicial do rol de beneficiários do INSS, como dependente do segurado guardião, a consequência jurídica é a de que o direito anterior, ou seja, a antiga redação do aludido § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91 – que inclui o menor sob guarda judicial como dependente do segurado –, jamais deixou de viger, porque pretensamente revogada por legislação ordinária inconstitucional, e, em consequência, nula.
Vale citar, aqui, por oportuno, o ensinamento do eminente Ministro Celso de Mello, na ADI/2215/PE:
"Sabemos que a supremacia da ordem constitucional traduz princípio essencial que deriva, em nosso sistema de direito positivo, do caráter eminentemente rígido de que se revestem as normas inscritas no estatuto fundamental.
Nesse contexto, em que a autoridade normativa da Constituição assume decisivo poder de ordenação e de conformação da atividade estatal - que nela passa a ter o fundamento de sua própria existência, validade e eficácia -, nenhum ato de Governo (Legislativo, Executivo e Judiciário) poderá contrariar-lhe os princípios ou transgredir-lhe os preceitos, sob pena de o comportamento dos órgãos do Estado incidir em absoluta desvalia jurídica.
(...)
Cumpre
enfatizar, por necessário, que, não obstante essa pluralidade de visões teóricas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - apoiando-se na doutrina clássica (ALFREDO BUZAID, "Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro", p. 132, item n. 60, 1958, Saraiva; RUY BARBOSA, "Comentários à Constituição Federal Brasileira", vol. IV/135 e 159, coligidos por Homero Pires, 1933, Saraiva; ALEXANDRE DE MORAES, "Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais", p. 270, item n. 6.2.1, 2000, Atlas; ELIVAL DA SILVA RAMOS, "A Inconstitucionalidade das Leis", p. 119 e 245, itens ns. 28 e 56, 1994, Saraiva; OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO, "A Teoria das Constituições Rígidas", p. 204/205, 2ª ed., 1980, Bushatsky) - ainda considera revestir-se de nulidade a manifestação do Poder Público em situação de conflito com a Carta Política (RTJ 87/758 - RTJ 89/367 - RTJ 146/461 - RTJ 164/506, 509).(...)
Mostra-se
inquestionável, no entanto, a despeito das críticas doutrinárias que lhe têm sido feitas (CELSO RIBEIRO BASTOS, "Comentários à Constituição do Brasil", 4º vol., tomo III/87-89, 1997, Saraiva; CARLOS ALBERTO LÚCIO BITTENCOURT, "O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis", p. 147, 2ª ed., Ministério da Justiça, 1997, reimpressão fac-similar, v.g.), que o Supremo Tribunal Federal vem adotando posição jurisprudencial, que, ao estender a teoria da nulidade aos atos inconstitucionais, culmina por recusar-lhes qualquer carga de eficácia jurídica.(...)
Já se afirmou
, no início desta decisão, que a declaração de inconstitucionalidade in abstracto, de um lado, e a suspensão cautelar de eficácia do ato reputado inconstitucional, de outro, importam - considerado o efeito repristinatório que lhes é inerente - em restauração das normas estatais revogadas pelo diploma objeto do processo de controle normativo abstrato.Esse entendimento - hoje expressamente consagrado em nosso sistema de direito positivo (Lei nº 9.868/99, art. 11, § 2º) -, além de refletir-se no magistério da doutrina (ALEXANDRE DE MORAES, "Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais", p. 272, item n. 6.2.1, 2000, Atlas; CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, "A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro", p. 249, 2ª ed., 2000, RT; CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS, "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 4, tomo III/87, 1997, Saraiva; ZENO VELOSO, "Controle Jurisdicional de Constitucionalidade", p. 213/214, item n. 212, 1999, Cejup), também encontra apoio na própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, desde o regime constitucional anterior (RTJ 101/499, 503, Rel. Min. MOREIRA ALVES - RTJ 120/64, Rel. Min. FRANCISCO REZEK), vem reconhecendo a existência de efeito repristinatório nas decisões desta Corte Suprema, que, em sede de fiscalização normativa abstrata, declaram a inconstitucionalidade ou deferem medida cautelar de suspensão de eficácia dos atos estatais questionados em ação direta (RTJ 146/461-462, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 2.028-DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES - ADI 2.036-DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES).
O sentido e o alcance do efeito repristinatório foram claramente definidos, em texto preciso, por CLÈMERSON MERLIN CLÈVE ("A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro", p. 249/250, 2ª ed., 2000, RT), cuja autorizadalição assim expôs o tema pertinente à restauração de eficácia do ato declarado inconstitucional, em sede de controle abstrato, ou objeto de suspensão cautelar de aplicabilidade, deferida em igual sede processual:
"Porque o ato inconstitucional, no Brasil, é nulo (e não, simplesmente, anulável), a decisão judicial que assim o declara produz efeitos repristinatórios. Sendo nulo, do ato inconstitucional não decorre eficácia derrogatória das leis anteriores. A decisão judicial que decreta (rectius, que declara) a inconstitucionalidade atinge todos os ‘possíveis efeitos que uma lei constitucional é capaz de gerar’, inclusive a cláusula expressa ou implícita de revogação. Sendo nula a lei declarada inconstitucional, diz o Ministro Moreira Alves, ‘permanece vigente a legislação anterior a ela e que teria sido revogada não houvesse a nulidade".(ADI 2215/PE, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 26/04/2001- parte dos grifos é nossa)
Em face de todo o exposto, acolho a argüição de inconstitucionalidade do § 2º do art. 16 da Lei 8.213/91, com a redação dada pela Medida Provisória 1.523, de 11/10/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97, na parte em que excluiu o menor sob guarda judicial do rol dos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependente do segurado ("o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda").
É o voto."
No sítio eletrônico do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, colhe-se a informação de que esse v. acórdão transitou em julgado no dia 20.11.2009, na parte em que foi julgada inconstitucional a norma inscrita no art. 16, § 2º, da Lei nº 8.213/91, inicialmente pela Medida Provisória nº 1.523/96, o que implica dizer que, dados os efeitos erga omnes da sentença da ação civil pública, sob a jurisdição daquela Corte, o menor sob guarda judicial deverá ser considerado dependente do segurado da previdência social, até porque a decisão da Corte Especial do Tribunal Regional Federal não é passível de revisão por órgão fracionário daquela Corte (Seção e Turma, e.g.).
Pelos fundamentos apresentados no voto supra reproduzido, temos como incontroversa a eiva de inconstitucionalidade do parágrafo 2º do art. 16 da Lei nº 8.213/91, desde a vigência da Medida Provisória nº 1.523, de 11/10/96, convertida, depois de 13 (treze) sucessivas reedições, na Lei nº 9.528/97.
A inconstitucionalidade decorre da contrariedade ao disposto no art. 227 da Constituição Federal que, mesmo que entendido como norma programática, determina os rumos da atividade legislativa estatal, não permitindo, em hipótese alguma, que o legislador ordinário retroceda, para colidir frontalmente com as disposições normativas adotadas pela Constituição Federal, aliás, em sintonia com a tradicional legislação ordinária que sempre outorgou especial proteção ao menor sob guarda.