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Doação de imóvel, sem encargo, a ente público: desnecessidade de anuência legislativa

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Agenda 13/05/2011 às 08:19

Empresa privada fez doação pura e simples de bem imóvel a município, liberalidade que foi aceita pelo Prefeito. Foi alegada nulidade do negócio por ausência de anuência prévia da Câmara Municipal.

Ementa: Doação pura e simples de bem imóvel a município por empresa privada. Aceitação pelo Prefeito da liberalidade sem anuência prévia da Câmara Municipal. Alegada nulidade do negócio por ausência da formalidade. Desnecessidade do controle prévio parlamentar. Direito Positivo municipal. Princípios constitucionais da Separação de Poderes e da Juridicidade Administrativa. Regime jurídico de aquisição de bens imóveis pelo ente local. Métodos de interpretação jurídica. Princípios de hermenêutica constitucional. Validade do contrato. Ato jurídico perfeito.


I - Da Consulta

1.Honrou-me o eminente Advogado Doutor Tullo Cavallazzi Filho, com a seguinte consulta:

"Prezado Dr. Ruy Espíndola,

Com o intuito de (...) elaboração de parecer jurídico acerca de caso sob os nossos cuidados, tomo a liberdade de apresentar-lhe resumidamente os fatos em discussão.

Trata-se de doação (sem ônus e sem encargo) realizada por um particular ao Município de Florianópolis.

Após a consulta ao órgão de planejamento (IPUF) e à Procuradoria do Município (PGM) o Prefeito Municipal recebeu resposta positiva para o recebimento da doação e, após a lavratura da competente escritura pública de doação assinada pelo proprietário e pelo Prefeito Municipal, procedeu-se ao registro imobiliário.

Ocorre que passados 3 (três) meses da doação e perfectibilizado o ato jurídico, a Câmara Municipal de Florianópolis, por sua Procuradoria, opôs-se ao Projeto de Lei que daria nome à Rua projetada sobre o imóvel, argumentando, em síntese, que a referida doação ocorreu de maneira irregular, uma vez que ausente a autorização/anuência da Câmara Municipal para a ocorrência do ato.

Referida doação teria ocorrido, segundo a Câmara de Vereadores, com afronta ao artigo 39 da Lei Orgânica do Município que diz:

"ART. 39. Cabe à Câmara Municipal, com sanção do Prefeito, dispor sobre todas as matérias de competência do Município, e especialmente sobre:

(...)

VIII – aquisição de bens imóveis, quando se tratar de doação;"

Ao fim, pergunta-me:

a) "A doação do imóvel de propriedade do particular para o Município, à luz da legislação federal e municipal, pode ocorrer com a simples concordância do chefe do Executivo Municipal?"

b) "É obrigatória a anuência, concordância ou autorização expressa da Câmara de Vereadores para o ato?"

c) "Foi regular a doação realizada neste caso?"


II – Documentos sub examen:

2. Junto aos termos da consulta, foram apresentados os seguintes documentos:

a) cópia integral dos autos de processo legislativo pertinente ao projeto de lei 11.449/2005, apresentado pelo Vereador Juarez da Silveira, que tinha por fim dar nome de "Alameda Santa Mônica" ao imóvel objeto de doação;

b) escritura pública de doação em que é doadora a Empresa Pronta Empreendimentos e Participações S/A, através de seus sócios, Engenheiro Paulo Cezar Maciel da Silva e Economista Mauricio Haberli, e donatário o Município de Florianópolis, representado pelo Prefeito Municipal Dário Berger, realizada no Cartório Maria Alice, 4º Subdistrito da Comarca de Florianópolis;

c) Parecer jurídico subscrito pelo Procurador da Câmara Municipal de Florianópolis, Doutor Roberto Polli;

d) Parecer legislativo subscrito pelos integrantes da Comissão de Viação e Obras Pública da Edilidade de Florianópolis, Vereadores João Itamar da Silveira, Jaime Tonello e Deglaber Goulart.

e) Ofício do Presidente da Edilidade, Vereador Marcílio Ávila, endereçado ao Juiz Roberto Lucas Pacheco, questionando a escritura de doação ratificada e assinada pela Tabeliã Maria Alice Costa da Silva, bem como a resposta que essa ofertou ao Juiz, manifestando-se sobre os termos do referido ofício.

f) Documentos e informes verbais que noticiam a ocorrência de demandas populares questionando a ausência de autorização legislativa para realização da doação sob exame.


III – Do Enfrentamento das Questões

03. Para o adequado enfrentamento das questões que a indagação suscita, se faz necessário ponderação prévia, em caráter teórico geral, de conceitos e idéias pré-compreensivas sobre separação de poderes e princípio da juridicidade administrativa, contrato de doação e seu uso para aquisição de bens imóveis pela administração pública. Depois será feita análise do Direito Positivo nacional e municipal, bem como da doutrina, para enquadramento jurídico dos fatos sob análise e precisa resposta aos quesitos da consulta.

a) Separação de Poderes e Princípio da Juridicidade Administrativa

I

4. Separação de Poderes ou Separação de Funções, como atualmente é chamada, em sua origem tinha uma finalidade específica: proteger a liberdade política dos cidadãos (Montesquie, Espírito das Leis, Livro XI). Entendia-se que era preciso dividir as funções de poder, para limitá-lo. Não deveria um mesmo órgão ou homem ou grupo de homens, concentrar em si mesmos, o poder de fazer as leis, o poder de decidir segundo as leis e o poder de executá-las. Deveriam permanecer distintas, inconcentradas em único órgão ou agentes, a função legislativa, a função judicial e a função administrativa [01].

5. Era preciso dividir o poder para poder refreá-lo, contê-lo. Era preciso que o poder soberano do Estado, embora uno segundo as teses de Jehan Bodin (Os Seis livros da República), fosse dividido em braços, em segmentos, em órgãos que exercitariam funções que lhe seriam específicas, preponderantes, todavia não exclusivas. Por isso a tripartição clássica "Poder Legislativo, Poder Judiciário e Poder Executivo".

6. Foi no Direito Constitucional norte-americano que essa idéia foi enriquecida com a teoria dos "freios e contrapesos" (Thomas Colley, Princípios Gerais de Direito Constitucional Norte-Americano, São Paulo, Revista dos Tribunais). Para essa teoria os poderes do estado não são estanques, têm conecções, vasos comunicantes. Um poder atua sobre o outro segundo regras e princípios pré-estabelecidos na Constituição. A Constituição estrutura e organiza a ação limitante de um órgão de poder sobre o outro. A Constituição estabelece o círculo constitucional de competências de cada poder, e autoriza, em certos casos, a ação limitante, controladora, fiscalizadora, anulatória, julgadora, impugnadora, referendatária, legitimante de um poder sobre outro. Assim a separação de poderes não seria apenas um princípio garantia de direitos individuais, mas também de garantias institucionais [02], de garantia do exercício livre, coordenado, harmônico dos poderes constitucionais entre si – garantia entre os poderes e garantia intra-poder.

7. Essas construções teóricas encontram origem ideológica em importante concepção do constitucionalismo liberal: todo estado em que não houver constituição escrita onde se tenha positivado a separação de poderes e estabelecidos os direitos fundamentais, não tem constituição, não é estado de direito, nem estado constitucional (Nelson Saldanha, Estado Moderno e Separação de Poderes, São Paulo, Saraiva). Essa concepção está presente na teoria constitucional contemporânea, no constitucionalismo hodierno, e, principalmente, nas constituições atuais, como a brasileira de 1988 (artigo 2º). Nela, a separação de poderes é objeto de reserva de Constituição, ou seja, o que cabe na matéria atinente ao princípio da separação deve estar tratado diretamente, expressa e/ou implicitamente, no texto constitucional.

8. Essa reserva de constituição se justificaria, entre tantas razões, por exigência de regulação firme, segura e estável das relações e controles recíprocos entre os órgãos de poder, especialmente entre o Legislativo e o Governo, aqui entendido como Executivo, sem descurar-se do Judiciário. Essa exigência político-jurídica revela-se no ideário que afirma que é na Constituição que as linhas mestras e toda a matéria pertinente ao tema separação de poderes se exaure, especialmente no que toca às competências/atribuições dos órgãos de poder, não só em relação às suas tarefas e missões constitucionais relativamente à sociedade, mas, especialmente, nas suas relações entre si e nas suas relações intra-poderes, ou melhor: no que toca ao relacionamento entre os poderes legislativo, executivo e judiciário, tudo deve estar positivado através de regras jurídicas contidas e exauridas no texto constitucional.

9. Segundo Hans Kelsen a matéria referente à separação de poderes, suas funções, seus agentes, suas prerrogativas, seus procedimentos mínimos de atuação, deve ser objeto de reserva de constituição, pois tratá-la em legislação ordinária é permitir que as relações entre poderes, que devem ser regradas estavelmente, possam ser alteradas por maiorias parlamentares circunstanciais, o que implicaria grande instabilidade nas relações institucionais entre os Poderes do Estado (Teoria Geral do Direito e do Estado, São Paulo, Martins Fontes). Assim não fosse o jogo do poder não teria regras claras, precisas, garantidoras de calculabilidade e segurança jurídicas (Noberto Bobbio, "Governo dos Homens ou Governo das Leis",O Futuro da Democracia – uma defesa das regras do jogo, 4 ed, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989, p. 151/171).

10. Nesse víeis, o que estivesse seguro hoje, através regra positiva, facilmente seria alterado amanhã, quando forças políticas circunstantes pudessem mudar, ordinariamente, o cenário estabelecido pelo Direito. É próprio da teoria das constituições rígidas, que a matéria de separação de poderes seja dura, clausulada com petrialidade (artigo 60, § 4º, III, CR), como limite material ao poder constituinte de segundo grau, ao poder de reforma da Constituição. Desta forma a matéria não estaria resguardada somente diante da ação do legislador ordinário, mas também do legislador de reforma constitucional (Oswaldo Bandeira de Mello, Teoria das Constituições Rígidas, 2 ed, São Paulo, José Bushatsky, 1980, 248 p.)

11. As medidas de ordem político-jurídica que justificam a limitação das hipóteses de relacionamento e controle recíprocos entre os órgãos constitucionais de poder, especialmente entre o Legislativo e o Executivo, seriam as seguintes, segundo Diego Valadés:

"

a. Responsabilidade: os órgãos de poder devem atuar dentro da esfera de sua competência, sem excesso nem defeito. Ir mais além de suas faculdades, ou deixar de cumprir com suas responsabilidades, afeta os direitos dos governados e, por isso, vulnera o Estado de Direito.

b. Efetividade: os instrumentos de controle devem aplicar-se para que cada órgão de poder atue estritamente no âmbito de suas atribuições, não para evitar, obstaculizar ou condicionar essa atuação.

c. Publicidade: os controles não podem ser utilizados para troca de favores políticos. Os entendimentos subrepetícios que concernem a forma de exercer ou de não por em prática os controles, com o propósito de alcançar consensos políticos, atenuam, neutralizam e inclusive cancelam os efeitos jurídicos e políticos dos controles. Os consensos para a modificação ou atuação das instituições não devem adotar-se em prejuízo do exercício dos controles.

d. Estabilidade: os controles devem ser exercidos de maneira responsável e não para dirimir problemas de antagonismos pessoais ou de luta pelo poder. Não devem se confundir as expressões "a luta pelo poder", que se regula pelas normas eleitorais, "as lutas no poder", que se limitam a acomodar interesses, tendências, correntes ou pessoas, "as lutas contra o poder", que às vezes se praticam em nome das liberdades públicas. Os controles não são instrumentos de combate, senão de integração e se aplicam para dar estabilidade às instituições.

e. Regularidade: os controles devem ser exercidos de maneira pré-ordenada e sistemática." [03] (sublinhamos!)

12. Neste sentido tudo o que autoriza um poder do Estado de Direito a interferir em outro, deve estar expressamente regrado no texto constitucional, indene de dúvidas, vertido em forma clara, a ser interpretado sempre de forma estrita, segundo o "princípio da interpretação liberal" - competências se interpretam de forma estrita, garantias e direitos fundamentais de forma ampla.

13. Somente com apoio nesse entendimento é que é possível ao Judiciário invalidar as leis produzidas pelo Legislativo, por força dos dispositivos constitucionais que tratam da matéria e da processualística do controle de constitucionalidade (e. g., artigos 97, 102, I, a, CF). É possível ao Presidente indicar membros da Suprema Corte, que passarão por sabatina e aprovação do Senado, por que a Constituição da República expressamente dispõe a respeito (art. 101, parágrafo único, CF). É exigível do Presidente da República, pelo Congresso Nacional, autorização para declarar a guerra, celebrar a paz e permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente (art. 49, II, CF).

14. Também é a Constituição Federal, regra do artigo 49, XVII, que legitima e autoriza a interferência legislativa no Executivo Federal, mediante exigência de autorização prévia, para aprovar a alienação ou a concessão de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares.

15. Esses exemplos nos dão real idéia do princípio da separação de poderes estabelecido e concretizado em nossa vigente Constituição, através regras constitucionais de competência, normas de atribuições aos poderes constituídos. Para compreendermos a importância, extensão e profundidade desse princípio estruturante (art. 2º, CF) se faz necessário o conhecimento integral do Texto Magno, para se aquilatar do bloco de normas constitucionais, princípios e regras, que lhe conformam a função, estrutura e realidade normativa na Constituição Federal de 1988 [04].

16. Em nosso sistema constitucional vários são os controles exercidos sobre a Administração Pública, atividade praticada em todos os poderes constituídos: controles administrativos, legislativos e jurisdicionais. São muito importantes, para os fins deste parecer, os controles exercíveis pelo Legislativo sobre a atividade de administração pública desempenhada pelo Executivo. Basta ver lições de Diogenes Gasparini, Direito Administrativo, 9 ed., São Paulo, Saraiva, 2004, p. 790/823.

17. Gasparini trata dos meios de controle legislativo sobre a Administração Pública, e entre esses mecanismos destaca a comissão parlamentar de inquérito, pedido de informação, convocação de autoridades, função jurisdicional, fiscalização contábil, financeira e orçamentária, e também o que chama participação na função administrativa. [05]

18. Esse último mecanismo, típico meio de controle do Legislativo sobre o Executivo, autorizado, expressamente, pela Constituição, revela um dos pontos jurídicos nodais do presente parecer. Vejamos seu conceito com Diogenes Gasparini:

"Em mais de uma passagem a Constituição da República outorga ao legislativo competência para participar da função administrativa realizada, precipuamente, pelo Executivo. A contribuição dos órgãos legiferantes para a validade da atuação da Administração Pública acaba redundando em controle, já que lhe cabe aprovar ou autorizar essa atuação. Essas atribuições foram, pela Lei Maior, concedidas ao Congresso Nacional ou a uma de suas Casas. Nos Estados-Membros e Municípios iguais atribuições são autorizadas às Assembléias Legislativas e às Câmaras dos Vereadores, guardadas, evidentemente, as respectivas competências e o que dispuserem as Constituições e as Leis Orgânicas dos Municípios." [06]

19. Nesta linha, fácil concluir que o princípio da separação de poderes se amplifica em importância nos Estados de forma federal, como o Brasil, pois além da Constituição central, da Constituição federal, existem as Constituições locais, as Estaduais e Municipais. Nossa Constituição da República consagrou federalismo tripartite, sendo três espécies de entidades federadas para as quais nosso Direito reconhece Constituição: a Federal, a Estadual e a Municipal [07].

20. Embora a única Constituição fruto de Poder Constituinte Originário seja a federal, e as outras, estaduais e municipais, sejam fruto de Poder Constituinte Decorrente, todas são Constituições, pois, entre outras funções, estabelecem regras para a separação de poderes em cada nível de governo federativo, obedecendo, é claro, os princípios constitucionais estabelecidos, os princípios constitucionais sensíveis e as normas centrais estatuídas na Constituição Federal, além de terem de respeitar o sistema de garantias e direitos fundamentais estatuídos na Lei fundamental central. [08]

21. Além dessas normas que devem ser respeitadas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem reiterando o que devem as entidades federadas, em matéria de separação de poderes, respeitar como simetria ao texto constitucional federal:

"Separação e independência dos Poderes: freios e contrapesos: parâmetros federais impostos ao Estado membro. Os mecanismos de controle recíproco entre os Poderes, os ‘freios e contrapesos’ admissíveis na estruturação das unidades federadas, sobre constituírem matéria constitucional local, só se legitimam na medida em que guardem estreita similaridade com os previstos na Constituição da República: precedentes. Conseqüente plausibilidade da alegação de ofensa do princípio fundamental por dispositivos da Lei estadual 11.075/98-RS (inc. IX do art. 2º e arts. 33 e 34), que confiam a organismos burocráticos de segundo e terceiro graus do Poder Executivo a função de ditar parâmetros e avaliações do funcionamento da Justiça (...)." (ADI 1.905-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 05/11/04) (sublinhamos!)

"A fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é um dos contrapesos da Constituição Federal à separação e independência dos Poderes: cuida-se, porém, de interferência que só a Constituição da República pode legitimar. Do relevo primacial dos 'pesos e contrapesos' no paradigma de divisão dos poderes, segue-se que à norma infraconstitucional — aí incluída, em relação à Federal, a constituição dos Estados-Membros —, não é dado criar novas interferências de um Poder na órbita de outro que não derive explícita ou implicitamente de regra ou princípio da Lei Fundamental da República. O poder de fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é outorgado aos órgãos coletivos de cada câmara do Congresso Nacional, no plano federal, e da Assembléia Legislativa, no dos Estados; nunca, aos seus membros individualmente, salvo, é claro, quando atuem em representação (ou presentação) de sua Casa ou comissão." (ADI 3.046, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 28/05/04) (sublinhamos!)

"Afronta os princípios constitucionais da harmonia e independência entre os Poderes e da liberdade de locomoção norma estadual que exige prévia licença da Assembléia Legislativa para que o Governador e o Vice-Governador possam ausentar-se do País por qualquer prazo. Espécie de autorização que, segundo o modelo federal, somente se justifica quando o afastamento exceder a quinze dias. Aplicação do princípio da simetria." (ADI 738, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 07/02/03) (sublinhamos!).

"Norma que subordina convênios, acordos, contratos e atos de Secretários de Estado à aprovação da Assembléia Legislativa: inconstitucionalidade, porque ofensiva ao princípio da independência e harmonia dos poderes." (ADI 676, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 29/11/96). No mesmo sentido: ADI 770, DJ 20/09/02; ADI 165, DJ 26/09/97. (sublinhamos!)

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22. E no plano municipal, o princípio da separação de poderes também tem sua importância, até mesmo por que a Lei Orgânica Municipal é uma Constituição, como já afirmamos alhures:

"i) porque que seu nomen juris não é o que define sua natureza, mas sim a sua estrutura e função na ordem jurídica nacional e municipal;

ii) por ser produto do exercício do poder constituinte decorrente municipal, veículo da capacidade federativa auto-organizatória conferida aos municípios;

iii) por ser norma de normas, norma normarum, por regular o processo de produção normativo no âmbito municipal, pré-definindo a forma e a matéria das leis infra-orgânicas, numa relativa relação de infra e supra-ordenação normativa, ao modo da explicitação kelsiana;

iv) também constitui fundamento de validade das leis e demais atos normativos ou não normativos municipais, tendo supremacia no âmbito local municipal, não podendo ser violada em suas regras ou princípios;

v) organiza, limita e autoriza a ação dos poderes e dos agentes públicos municipais, estabelecendo, igualmente, mesmo em face de sua limitada capacidade de conformação constituinte decorrente, novos núcleos de direitos fundamentais individuais e/ou coletivos.

vi) o modo de sua produção inicial e o processo de sua reforma se assemelham, em tudo, com o modo de produção e reforma da Constituição Estadual, tendo, inclusive, um quorum muito elevado para sua aprovação originária – 2/3 - (art. 29, caput, da CR)." [09]

23. Em conclusão ao raciocínio exposto neste ponto, atente-se para lição muito apropriada à consulta:

"A função de controle e fiscalização da Câmara Municipal mereceu do Constituinte de 1988 destaque idêntico ao da função legislativa, na medida em que o art. 29, IX, da CF [hoje, XI] as coloca entre os preceitos obrigatórios a serem observados na elaboração das leis orgânicas municipais.

A função de controle e fiscalização da Câmara sobre a conduta do executivo tem caráter político-administrativo e se expressa em decretos legislativos e resoluções do plenário, alcançando unicamente os atos e agentes que a Constituição da República, em seus arts. 70 e 71, por simetria, e a lei orgânica municipal, de forma expressa, submetem à sua apreciação, fiscalização e julgamento. (...). Exerce ainda a Câmara o controle legislativo de determinados atos ou contratos do Executivo, através de autorização prévia ou aprovação posterior, mas somente nos casos e limites expressos na Lei orgânica do Município." Cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 7 ed., São Paulo, Malheiros, 1994, p. 443/444.

24. Tendo em conta o conjunto das ponderações introdutórias acima expostas sobre a separação de poderes, podemos concluir, sumariamente, quanto a sua aplicação ao presente parecer:

a) pelo princípio constitucional da separação de poderes, toda e qualquer intervenção de um poder constituído na atividade de outro deve estar regrado na Constituição, através de normas claras, precisas, expressas, havendo, quanto à matéria, verdadeira reserva de constituição, não podendo lei ordinária introduzir norma de controle sem que haja autorização prévia na Lei fundamental regente;

b) os controles de poder político devem ser vertidos em normas constitucionais, e expressam a forma legítima, constitucional, de um poder controlar, intervir, fiscalizar a ação de outro;

c) na federação brasileira, onde cada entidade da federação tem a sua própria Constituição, a matéria da separação de poderes em nível estadual e municipal é tratada, respectivamente, na Constituição estadual e na Lei Orgânica Municipal, devendo essas constituições guardar simetria com o quanto ordenado no plano federal, sob pena de invalidade das disposições contrastantes com a Constituição central.

d) a disciplina dos controles entre Executivo e Legislativo municipais deve estar regrado por normas constitucionais municipais simétricas com as normas constitucionais federais, dispondo, com regras expressas, sobre a forma e oportunidade que ensejam ao Legislativo interferir na função administrativa a ser desempenha pelo Executivo. A falta de tal disciplina expressa na Lei Orgânica Municipal, ilegitima e invalida a exigência de controle;

e) a autorização para alienar bens imóveis que deve ser dada pelo Legislativo ao Executivo Municipal enquadra-se numa das espécies de controle político-parlamentar sobre a função administrativa desempenhada pela Chefia da administração pública local.

II

25. Para que haja segurança e previsibilidade nas relações estabelecidas entre os cidadãos e os poderes constituídos, e entre esses poderes, entre seus agentes e seus órgãos, é necessário que o atuar, o agir, o afazer daquele que exerce função pública esteja pré-determinado por norma jurídica, por regra de direito ou princípio normativo, esses podendo ser expressos ou implícitos [10]. O Direito deve disciplinar a atuação dos órgãos de poder, mormente quando o órgão de poder tem tantos relacionamentos com os demais órgãos de estado e com a sociedade, como é o caso da função administrativa desempenhada pelo Executivo, seja o Executivo federal, estadual ou municipal.

26. Assim, para atender as exigências de previsibilidade e segurança jurídicas é que foi cunhado, no âmbito do Direito Público, o princípio da legalidade administrativa (artigo 37, caput, da CF), também chamado, por último, pelos estudiosos de lentes mais avançadas, de princípio da juridicidade administrativa [11], para se demonstrar que a submissão da função administrativa não é somente à lei, às suas regras jurídicas, mas a outras normas constantes de Constituições [princípios e regras constitucionais, federais, estaduais ou municipais], contratos, regulamentos, instruções normativas, normas de diferentes estalões, onde a lei ocuparia o lugar de destaque, mas não de exclusividade, pois é através da atividade legislativa que o maior número de limites, contenções, deveres, procedimentos e obrigações são endereçados ao poder público e à sua função administrativa.

27. Nessa visão [12] mais aberta do princípio da legalidade administrativa, como princípio da juridicidade administrativa, compreende-se que o dever de respeito à lei, é o dever de respeito às normas que dimanam da ordem jurídica globalmente considerada, em todos os seus escalões normativos e ramos do Direito; de normas cuja natureza seja de regra ou princípio; cujo conteúdo revele normas de competência, normas materiais ou normas processuais; normas de direito público ou normas de direito privado; normas produzidas por fontes federais, estaduais ou municipais; normas de cunho constitucional, legal, infralegal ou contratual.

28. O princípio da juridicidade administrativa é princípio entre outros princípios constitucionais. Ele pressupõe o acato, para sua plena realização no plano do Direito, de outros princípios igualmente relevantes para se entendê-lo princípio efetivado frente a cada ato ou negócio jurídico praticado pelo agente público em prol da Administração Pública: e g., princípio da boa fé, da economicidade, da legitimidade da despesa pública, da moralidade, da publicidade, da segurança jurídica, da proteção da confiança.

29. Assim, cada ato jurídico praticado pela Administração Pública, sejam atos contratuais ou não contratuais, atos administrativos ou meros atos de administração, atos praticados entre órgãos de estado, órgãos administrativos ou atos com interferência ou conexão com atividades particulares, devem respeito, em cada caso, a um bloco de legalidade, a um bloco de juridicidade, que, muitas vezes, pode considerar normas constantes de Constituição federal, estadual ou municipal, normas que estão no Código Civil ou na legislação civil estravagante, normas de natureza puramente administrativa, produzidas em cada esfera de governo para regular o Direito Administrativo pertinente a cada unidade federativa, normas contratuais, etc.

30. Muitas vezes o princípio da juridicidade administrativa reclama que antes da prática de algum ato ou negócio jurídico, se verifiquem todas as suas formalidades, como exige o Código Civil, e. g., artigos 104, 107, 108, 166, IV, V e VII, ou mesmo a Lei de Ação Popular, exemplificativamente, como normas materiais, o artigo 2°, letras "b" e "c", parágrafos único, letras "b" e "c".

31. A juridicidade administrativa reclama sempre a verificação de norma constitucional ou legal a determinar especial autorização ou aprovação para a prática de atos ou negócios jurídicos, como aqueles atos praticáveis pelo Legislativo que interferem na função administrativa desempenhada pelo Executivo, ao realizar negócios respeitantes a gestão patrimonial da Administração Pública, como aquisição ou alienação de bens públicos, móveis ou imóveis, como poderia ser ato aceitando doação sem encargos levada a efeito por doador particular a Município donatário. Negócio jurídico de doação como o ora sob exame.

32. Assim, para aferição da validade de qualquer ato administrativo é necessário sempre constatar sua correspondência ao Direito como sistema de normas e não somente à lei em sua expressão literal. É necessário ter em conta a complexidade, amplitude e extensão do princípio da juridicidade administrativa, em seu enraizamento constitucional.

33. Para os objetivos deste parecer, além e ao lado do princípio da juridicidade administrativa, é preciso focarmos, brevemente, outros princípios jurídicos, já tratados em trabalho nosso de doutrina:

"(...) princípios constitucionais jusadministrativos. Esses princípios promovem ou contêm a ação administrativa pelas suas otimizações principiológicas, potencializam o atuar das regras, através de interpretações que lhe são conformes e realizadoras.

Para dar transparência, confiabilidade, eficiência, segurança e legitimidade nas relações entre o estado e a pessoa humana, entre a autoridade e a liberdade, entre as normas de competência-estatal e as normas de direitos fundamentais, faz-se imprescindível o conhecimento, a atenção, o uso e o respeito ao núcleo de princípios constitucionais pertinentes à atividade administrativa, sob pena de se frustrarem os objetivos e as promessas do Estado Democrático de Direito.

O princípio do Estado Democrático de Direito (...) exige transparência, publicidade, respeito ao devido processo legal, tanto em sua dimensão substantiva quanto adjetiva; exige o respeito aos padrões de juridicidade dimanados das Constituições (federal, estadual e municipal), das leis e dos contratos, e demais atos normativos reconhecidos pela ordem jurídica como válidos e vinculantes. Acima de tudo, este princípio fundamental, este princípio estruturante [13] impõe a inteligência dos princípios administrativos como princípios que devem orientar a ação da administração na perseguição de fins públicos matizados por elevados valores constitucionais democráticos (...).

Além disso, esse princípio quer garantir a segurança de expectativas das pessoas; exige (...) segurança de suas posições jurídicas, de seus direitos e interesses no âmbito de uma ordem democrática; exige que todas as instituições, sejam as verticais (federal, estadual e municipais), sejam as horizontais (executivo, legislativo e judiciário), se contenham na ordem do Direito." [14]

34. Nesse mesmo estudo, ainda dissemos:

"O Princípio da Legalidade/Liberdade (art. 5°, inciso II, da CR) impõe que toda intervenção na esfera de direitos, na esfera de liberdades da pessoa se opere através da lei, ato jurídico-político votado pelo povo, através de seus representantes (desdobramento do Princípio Republicano), aqui especialmente os representantes do legislativo e do executivo em atuações conjugadas; a criação de direitos, de obrigações, de proibições e sanções, para ter racionalidade, calculabilidade, regulação das expectativas dos indivíduos, deve-se dar por intermédio da lei (desdobramento do Princípio do Estado Democrático de Direito).

E a legalidade, a lei, sua juridicidade, deve-se dar no plano da Constituição, da constitucionalidade, pois não é qualquer lei que pode restringir ou ampliar direitos, mas somente aquela que atendeu aos seus pressupostos materiais e formais constitucionais de validade. É o princípio da legalidade lido e aplicado em conjunto, em casamento com o princípio da constitucionalidade (...).

A lei define as competências da administração pública, o tempo de mandato de seus agentes, as condições de validade do exercício do poder administrativo, seus controles, as faculdades e poderes dos cidadãos sobre os quais incidem os poderes da administração. Enfim, a relação entre a liberdade e a autoridade, entre o indivíduo e a administração, entre a autonomia do cidadão e o círculo de atividades administrativo-públicas deve ser regulada pela lei e a ela deve se submeter, sob pena de aplicação das sanções correspondentes encontráveis na ordem jurídica." [15] (sublinhamos!)

"O Princípio da Segurança Jurídica (art. 5°, caput e seu inciso XXXVI, da CR) impõe que as relações jurídicas, as posições de direito delas decorrentes, se já validamente consolidadas, se fruto de coisa julgada, ato jurídico perfeito ou direito adquirido não sejam tocadas, bulidas no sentido de revogá-las ou modificar-lhe os efeitos já consolidados." [16] (sublinhamos!)

"O Princípio da Economicidade também logra sede expressa no artigo 70, caput, da CR. Por ele se exige que o administrador público haja de modo a otimizar a ação estatal no sentido de "... encontrar a solução mais adequada economicamente na gestão da coisa pública. A violação manifesta do princípio dar-se-á quando constatado vício de escolha assaz imperfeita dos meios ou parâmetros voltados para obtenção de determinados fins administrativos.

Este princípio possui um conteúdo econômico no sentido "que os parcos recursos do Estado devem ser empregados visando aos melhores resultados econômicos ‘do ponto de vista qualitativo e quantitativo’ (...)." [17](sublinhamos!)

"O Princípio da Legitimidade está previsto no artigo 70, caput, da Constituição Federal. Por ele nosso Direito positivou, de forma mais peremptória, um olhar mais substancialista, material, não meramente formal por sobre os atos administrativos e sua fiscalização. Nele se fundamenta a necessidade de o Administrador consultar a aspiração geral, a vontade dos cidadãos, auscultar suas carências e desejos vertidos em interesse público. Atos, despesas e receitas legítimas são aquelas que atendem aos anseios populares, anseios estes, em uma federação, medido em cada unidade federativa, em cada povo nela existente.(...) Assim, não só a legitimidade das despesas e receitas públicas poderá ser questionada (...), todo e qualquer ato administrativo, ainda que não relacionado diretamente à despesa e receita, desde que imponha encargos a Administração e seus administrados, com conseqüências sobre direitos coletivos e individuais, e desde que se enseje a hipótese, poderá ser discutido tendo como viés o princípio da legitimidade. (...)." [18]

35. Tendo em conta essas ponderações, é necessário concluir que todo e qualquer ato ou negócio realizado pela Administração Pública deverá atender ao regime do direito, ao sistema jurídico, à juridicidade administrativa, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, tanto quanto a capacidade de seus agentes como quanto à competência dos órgãos encarregados de realizar o ato ou de fiscalizar sua legítima realização. E o conjunto de normas que enredam à prática de algum ato ou negócio deve ser buscado em diferentes pontos da ordem jurídica, em normas federais, estaduais ou municipais, em normas de direito privado ou de direito público, em normas constitucionais, legais ou infralegais.

36. Somente tendo em conta a extensão e amplitude do princípio da juridicidade administrativa é que poderemos bem aferir a valia jurídica, a legitimidade, a conformidade à ordem do Direito de um negócio jurídico realizado pela Administração Pública.

b) Contrato de Doação e seu uso para Aquisição de Bens Imóveis pela Administração Pública

I

37. A doação, como instituto jurídico, é tipicamente instituto de Direito Privado, de Direito das Obrigações, de Direito Civil Contratual. Sua tipicidade é manifesta pela regulação que lhe confere o Código Civil, artigos 538 a 564. É um dos mais formais contratos de nosso Direito, sob os quais muitas normas incidem para sua realização, ditando-lhe a forma para sua adequada valia jurídica.

38. Pessoais físicas ou jurídicas, essas públicas ou privadas, ao realizarem doações, devem observar seus contornos legais definidos no Direito Civil, ainda que no caso de pessoa jurídico-pública, ao lado das normas do Código Civil, existam outras regras de cunho legal ou constitucional que devem ser observadas na prática de aquisições ou alienações através de doação.

39. Vejamos contornos conceituais e aspectos legais da doação, segundo o civilista Vitor Frederico Kümpel, Direito Civil 3 – Direito dos Contratos, São Paulo, Saraiva, 2005:

"Doação é o negócio jurídico bilateral em que uma pessoa (doador) se obriga a transferir bens corpóreos ou incorpóreos de seu patrimônio, por liberalidade, a outrem (donatário), que simplesmente aceita ou presta um encargo. Não obstante o art. 538 do CC discipline que na doação a pessoa transfere um bem de seu patrimônio, na realidade, é um contrato que só produz efeitos obrigacionais, não ocorrendo a transferência obrigatoriamente no momento da liberalidade. Isso significa que a tradição, para o bem móvel, ou o registro, para o imóvel, são os atos que transferem a propriedade e são sempre supervenientes ao momento da manifestação de vontade." (p. 151).

"... a doação é um contrato, ou seja, aperfeiçoa-se por meio da convergência de duas vontades, a doador e do donatário..." (p.152).

É "contrato unilateralapesar de aperfeiçoar-se com duas vontades, somente o doador tem prestação, pois o donatário apenas aceita, já, que em princípio, não é obrigado a dar, fazer ou não fazer qualquer coisa. Caso seja fixado um encargo ao donatário, o contrato passa a ser unilateral imperfeito, ou seja, incide prestação para as duas partes (...). O encargo não tem qualquer equivalência econômica com a prestação do doador (...)." (p. 153). (sublinhamos!).

É "contrato gratuitoa doação implica sempre vantagem econômica para o donatário e desvantagem para o doador, pouco importando se a doação é pura e simples ou com encargo. Muito embora esta última modalidade seja denominada por lei doação onerosa (art. 562 do CC), a nomenclatura é infeliz, na medida que a onerosidade implica equivalência econômica das prestações, sendo esse elemento inexistente no contrato de doação. A grande marca do contrato é a vontade do doador de ter perda econômica (...), donatário (...) sempre terá vantagem econômica." (p. 153) (sublinhamos!).

É "contrato formalcom a finalidade de proteger o doador, em virtude da perda econômica que sofre, a doação é um dos contratos mais formais do Código Civil. Conforme o art. 541 do CC, a doação de bem imóvel deverá ser feita por escritura pública (...)." (p. 153). (sublinhamos!)

"Aceitação do donatário – caso a doação fosse um ato unilateral prescindiria da aceitação do donatário; porém, por se tratar de contrato, jamais se torna perfeita enquanto não houver aceitação por parte dele. Deverá, como em qualquer contrato, haver a convergência de vontade entre o animus donandi do doador e aceitação da liberalidade por parte do donatário. A doação pura e simples é aquela cuja aceitação, além de expressa, pode ser presumida, tendo em vista nenhum prejuízo ao donatário (...). Porém, na hipótese de doação com encargos, ela será sempre expressa por implicar um ônus aposto a uma liberdade." (p. 155). (sublinhamos!).

"Doação pura e simples

É a doação típica, aquela na qual o doador transfere bens ao donatário, que simplesmente os aceita. Somente o doador favorece o donatário, sem lhe exigir ou impor qualquer contraprestação, além de não haver cláusula que implique modalidade, ou seja, não há qualquer condição, termo, encargo ou prazo." (p. 161).

40. Tendo em conta esses elementos doutrinais, é correto afirmar que quando a administração pública se envolve em contrato de doação, ela poderá figurar tanto na qualidade de doadora, quanto na de donatária. E dependendo de sua posição na relação contratual, o regime jurídico da espécie poderá variar, havendo mais ou menos normas a serem observadas para a valia do negócio jurídico. Isso depende do regime de direto público aplicável aos bens públicos.

41. A importância dos bens públicos para o Direito exige tratamento legal diferenciado relativamente aos bens de propriedade dos particulares. A administração pública precisando adquirir ou alienar bens, especialmente bens imóveis, necessita atentar para regime jurídico que pode variar na conformação das suas normas, conforme os fins e os meios do negócio jurídico, bem como a posição contratual em que se encontrar.

42. Para Marçal Justen Filho, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2005:

"Não existe um regime jurídico único, aplicável a todos os bens públicos. Existem diversos regimes, variáveis em vista das características dos bens e das finalidades a que se destinam a satisfazer. (...). Os regimes de direito público têm natureza restritiva das faculdades de uso, fruição e disponibilidade dos bens. A extensão das restrições é variável conforme o regime jurídico aplicável. (...)." (p. 703);

43. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 7 ed., São Paulo, Malheiros, 1994, ao falar de doação, aquisição e alienação de bens imóveis pelo Município, ensina:

"Doação é o contrato pelo qual uma pessoa (doador), por liberalidade, transfere do seu patrimônio um bem para o de outra (o donatário), que o aceita (...). É contrato civil, e não administrativo, fundado na liberdade do doador, que pode ser com encargo.

O Município pode fazer doações de bens móveis ou imóveis desafetados do uso público, e comumente o faz para incentivar construções e atividades particulares de interesse local e convenientes à comunidade. Essas doações podem ser com ou sem encargos, e em qualquer caso dependem de lei autorizativa que estabeleça as condições para sua efetivação, e de prévia avaliação do bem a ser doado, não sendo exigível licitação para o contrato alienativo (Lei 8.666/93, art. 17, I, "b")." (p. 245.)

"O Município, no desempenho normal de sua administração, adquire bens de toda espécie e os incorpora ao patrimônio público para realização de seus fins. Essas aquisições ou são feitas contratualmente, pelos instrumentos comuns do Direito Privado, sob a forma de compra, permuta, doação , dação em pagamento, ou se realizam compulsoriamente por desapropriação ou adjudicação em execução de sentença, ou ainda, se efetivam por força de lei na destinação de áreas públicas nos loteamentos (...)." (p. 254.)

"A alienação de bens imóveis do Município (venda, permuta, doação etc), sendo ato que excede dos de simples administração, exige expressa autorização da Câmara. (...) daí a regra segundo a qual o prefeito, toda vez que tiver necessidade de dispor de bens, ou de onerar o Município com encargos extraordinários, deverá obter autorização especial da Câmara.

As leis orgânicas exigem, em regra, quorum e tramitação especial para aprovação das proposições que autorizam a venda, permuta e doação de bens imóveis, assim como para a constituição de ônus e assunção de encargos extraordinários para a Municipalidade. Tais autorizações, portanto, devem atender, na sua elaboração, a todos os requisitos especiais previstos na legislação local organizatória do Município e aos trâmites regimentais que se referirem à espécie em deliberação." (p. 507.) (sublinhamos!)

44. Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 5 ed., São Paulo, Malheiros, 1994, ao falar de alienações e aquisições pela Administração Pública, e, especificamente, alienações de bens públicos imóveis, afirma:

"Os bens públicos se adquirem pelas mesmas formas previstas no direito privado (compra e venda, doação, permita etc) e mais, por formas específicas de direito público, como a desapropriação ou a determinação legal." (p. 442). (sublinhamos!)

"A administração (...) para alienar bens públicos depende, no caso de bens imóveis, de autorização legislativa (...). Dita alienação deve ser precedida de avaliação do bem e de licitação (...). Nas órbitas estaduais e municipais, as respectivas leis estabelecem as mesmas exigências." (p. 442).

45. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Curso de Direito Administrativo, 10 ed., Rio de Janeiro, Forense, 1992, ao expor sobre a transferência pela administração de bens públicos imóveis a terceiros, discorre sobre a necessidade de autorização legislativa segundo a ordenação legal de cada entidade federada respectiva:

"Se a Administração decide transferir o domínio de um bem público a terceiros, deverá fazê-lo sob o regime público, uma vez que o preço a ser percebido será, substitutivamente, um bem público: uma receita pública eventual.

Para obtenção das melhores condições de alienação, a licitação é obrigatória, sempre precedida de avaliação, em que se fixará o mínimo exigível.

Distingui-se a alienação de bens imóveis, em que poderá ser obrigatória a autorização legislativa, se assim o dispuser a legislação estadual ou municipal, competentes para disciplinar a gestão administrativa patrimonial (...)." (p. 127)

46. Hely Lopes Meirelles, em outro trabalho, parecer sobre "Bem Público – Alienação sem Autorização Legislativa", em seu livro Estudos e Pareceres de Direito Público, Vol. V, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, p. 163/164, discorre sobre as conseqüências de falta de autorização na alienação de bem imóvel por doação, ou seja, sendo o Município doador, e não havendo doação legislativa:

" - É nula alienação de imóvel municipal sem autorização legislativa da Câmara

- Anulada a alienação devem as pares ser restituídas ao status quo ante

(...).

"2. No âmbito municipal, a alienação de imóveis públicos exige autorização legislativa, avaliação prévia e concorrência, inexigível este último requisito somente nos casos de doação, permuta e investidura, cujos contratos visam pessoas ou bens certos, o que afasta o procedimento licitatório. Cumpridas as exigências legais e administrativas, a alienação de imóvel municipal a particular se formaliza pelos instrumentos e com os requisitos da legislação civil, ou seja, escritura pública e transcrição no registro imobiliário.

3. Desatendidos os requisitos prévios da alienação, o contrato translativo da propriedade pública ao particular é nulo, e assim deve ser declarado pelo Judiciário - e somente pelo Judiciário – em ação adequada, uma vez que a Administração não tem poderes para rescindir unilateralmente contratos civis, nem para invalidar atos de registro público (...)." (sublinhamos!)

47. Diogenes Gasparini, Direito Administrativo, 9 ed., São Paulo, Saraiva, 2004, ao tratar da doação como meio de aquisição ou alienação de bens pela Administração, e, especificamente, ao enfrentar o tema da doação quando a administração pública for donatária:

"Com base no art. 538 do Código Civil, pode-se definir a doação como o contrato segundo o qual uma pessoa, chamada doador, por liberalidade, transfere um bem do seu patrimônio para o patrimônio de outra, designada donatário, que o aceita. Tanto o doador como o donatário podem ser pessoas físicas ou jurídicas, e estas, públicas ou privadas. Assim, o Município, pessoa jurídica de Direito Público interno (art. 41, III, do CC), ou outra das pessoas políticas, não só pode doar, como receber em doação qualquer bem, isto é, pode figurar numa ou noutra das extremidades do contrato, ocupando a posição de doador ou donatário. Destarte, observados os limites e as vedações legais, qualquer bem pode ser doado, como qualquer pessoa pode ser doadora ou donatária." (p. 734).

48. E sobre ponto nodal de nossa consulta, pontua com clareza:

"A administração Pública, para receber bens imóveis por doação, não necessita de lei autorizadora, salvo se com encargo." (p. 735).

49. Das considerações e doutrina exposta sobre contrato de doação e seu uso para aquisição de bens públicos imóveis pela administração pública, podemos sumariar algumas conclusões importantes para este parecer:

a) o contrato de doação é negócio jurídico regido pelo Direito Civil, em que qualquer pessoa jurídica de direito público pode figurar como doadora ou donatária, para alienar ou adquirir bens móveis ou imóveis, com ou sem encargo;

b) como doadora de bem imóvel, a pessoa jurídica de direito público deverá realizar avaliação prévia do bem a ser doado e licitação, além de tomar autorização legislativa específica, segundo normas prevista na Lei fundamental da entidade federada respectiva.

c) como donatária de bem imóvel, a pessoa jurídica de direito público, para o aceite da doação não precisará tomar autorização legislativa específica, salvo se for doação com encargo e a legislação federal, estadual ou municipal a exigir;

d) só haverá nulidade de doação de bem imóvel, feita pelo Município a terceiros, por falta de autorização legislativa prévia para o negócio jurídico, se a Lei orgânica municipal a exigia e o Prefeito Municipal não a buscou ou tendo-a a buscado, não a obteve.

e) só haverá nulidade de doação de bem imóvel aceito por Município donatário, por falta de autorização legislativa específica para o aceite, se, havendo encargos e regra orgânica específica, não buscou o Prefeito Municipal o beneplácito legislativo, ou postulando-o não lhe foi concedido pela Câmara de Vereadores.

c) Lei Orgânica Municipal de Florianópolis não exige autorização legislativa específica para aquisição de bens imóveis por intermédio de doação, seja com ou sem encargos

50. Expendidos os pressupostos teóricos gerais nos tópicos precedentes, verificaremos se no Direito Positivo Municipal de Florianópolis, existe norma jurídica que exije autorização legislativa específica para o aceite de bem imóvel adquirido por doação sem encargos. Compulsemos as disposições normativas municipais que tratam de aquisição, alienação e gestão patrimonial pelo Executivo. E a partir de agora passaremos a argumentar tendo em conta os fatos concretos que ensejaram este parecer.

51. Antes de qualquer passo, necessário destacar que a Câmara Municipal de Florianópolis, através de sua Procuradoria Jurídica, como se deflui da consulta e dos documentos que a instruem, entende nula a doação sem encargo de bem imóvel feita pela doadora Pronta Empreendimentos e Participações S/A, em 15 de abril do corrente, ao donatário Município de Florianópolis, por escritura pública. Alega que teria havido transgressão a regra do inciso XVIII, do artigo 39 da Lei Orgânica Municipal, norma que exigiria, na exegese do ilustre Procurador Roberto Polli, prévia autorização legislativa para aquisição do imóvel objeto deste parecer. E como não teria havido autorização prévia ao negócio jurídico de doação aceito pelo Município donatário, inválida seria a doação.

52. De fato, é preciso deixar patente, para realização jurídica do negócio de doação, não houve autorização legislativa específica, como demonstram consulta e seus documentos.

53. Revolvendo a legislação municipal [19], preponderantemente a Lei Orgânica Municipal vigente, apontamos as normas que nos auxiliam a responder a questão fático-jurídica pertinente à espécie. Destacamos todas as normas apropriadas à solução da consulta, no que toca a LOM de Florianópolis. Normas que diretamente, ou como meros vetores hermenêuticos, conferem sustentáculo normativo à nossa resposta:

"Art. 9°

- Compete ao Município prover o que é de interesse local e do bem-estar de sua população como, dentre outras, as seguintes atribuições:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

XIV - dispor sobre a administração, utilização, aquisição e alienação dos bens públicos;

Art. 13 - Cabe ao Poder Executivo a administração dos bens municipais, respeitada a competência da Câmara quanto àqueles utilizados em seus serviços.

Art. 14 - A alienação de bens municipais, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será sempre precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas, sob pena de nulidade:

I - quanto a imóveis, dependerá de autorização legislativa e concorrência, dispensada esta nos seguintes casos:

a) doação, constando da lei e da escritura pública os encargos do donatário, o prazo de seu cumprimento e a cláusula de retrocessão;

Art. 33- O Governo do Município é exercido pelos Poderes Legislativo e Executivo, que devem coexistir harmônicos e independentes entre si.

Parágrafo Único- É vedado aos poderes do Município delegação recíproca de atribuições.

Art. 39- Cabe a Câmara Municipal, com a sanção do Prefeito, dispor sobre todas as matérias de competência do Município, e especialmente sobre:

I - assuntos de interesse local, inclusive suplementando a legislação Federal e a Estadual (...).

VII - alienação e concessão de bens imóveis;

VIII - aquisição de bens imóveis, quando se tratar de doação;

Art. 40- Compete privativamente à Câmara Municipal;

VI - autorizar o Prefeito a se ausentar do Município, quando a ausência exceder 15 (quinze) dias;

VII - conceder licença ao Vice-Prefeito e aos Vereadores para afastamento do cargo;

XVII - autorizar referendo e convocar plebiscito;

Art. 65 - O Poder Executivo Municipal é exercido pelo Prefeito com auxílio dos Secretários ou Diretores equivalentes.

Art. 74- São atribuições privativas do Prefeito Municipal:

I - Exercer, com auxílio dos Secretários, ou Diretores equivalentes, a direção superior da administração Municipal."

54. Comecemos por aplicação do método de interpretação gramatical, depois o método teleológico, e, por último, o método sistemático, sem descuidar os elementos de específica hermenêutica constitucional [20].

55. Nessa linha, é preciso ter em conta o dispositivo argüido pela Câmara como transgredido com a efetivação do contrato em foco, o inciso VIII, do artigo 39, da LOM:

a) literalmente o verbo "dispor", indica que a regra constante do dispositivo tem cunho eminente processual-legislativo, ou seja, é regra de procedimento legislativo, pois trata do que cabe ser regulado, estatuído, produzido como regra geral e abstrata através de processo legislativo ordinário, pois o Prefeito atuará em sua função sancionadora legislativa. Ou melhor, em verdade, a regra não estatuí um dever de consulta prévia ao Legislativo pelo Executivo, não impõe a solicitação de autorização para a prática de qualquer ato administrativo, que precise ser legitimado pela ação fiscalizadora do Legislativo. No dispositivo não se consagra controle próprio à função fiscalizadora da Câmara de Vereadores, ao contrário, tipifica-se norma própria à sua função legislativa em coadjuvância com o Executivo.

Apenas por precisão e comprovação exauriente de nossos argumentos é que trazemos à baila lições de De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, Rio de Janeiro, Forense, 1987, Volume II:

"DISPOR. Na linguagem comum, dispor, do verbo latino disponere, possui uma variedade de significações: colocar, pôr em ordem, determinar, resolver, governar, estatuir, etc.

Embora, na terminologia jurídica, todas as acepções do verbo dispor possam ter as necessárias aplicações, mais geralmente é empregado no sentido de alienar, constituir direitos, estatuir ou estabeceler uma regra." (p. 101). (negritamos!)

"DISPOSIÇÃO GERAL. É a regra jurídica instituída em lei de um modo genérico, servindo, assim, de norma jurídica para todos os casos da mesma natureza.

E, nesta razão, claramente se diferencia de disposição especial, que ou é exceção de regra geral ou restringe direitos, mas somente os casos em si mesmos especificados.

Enquanto as regras gerais ou disposições gerais formam o Direito Comum, as regras ou disposições especiais constituem Direito Singular (Jus Singulare)." (p. 102/103). (sublinhamos!)

Ainda em sua acepção literal, o dispositivo prevê conduta que deverá prover em tese, em abstrato, através de lei geral, normas legais municipais disciplinadoras do procedimento administrativo de aquisição de bens por doação, assim como a Lei Municipal n. 639/64 disciplinou, como vimos em nota de rodapé de número 18, neste parecer, a alienação de bens imóveis por doação.

Também o termo "Cabe a Câmara, com a sanção do Prefeito" existente no dispositivo, ratifica a conclusão ora alvitrada, a demonstrar, simetricamente com os artigos 48, caput, da Constituição Federal e 39 da Constituição estadual, que se trata de norma de processo legislativo, de regra que revela a função legislativa da Câmara Municipal e não sua função fiscalizadora de atos administrativos a serem praticados pelo Executivo.

Essa tese é reforçada diante da literalidade do artigo 14, inciso I, letra "a", da LOM, que revela função fiscalizadora da Câmara Municipal de Florianópolis – e não legislativa -, quando trata do controle legislativo municipal sobre o executivo nas hipóteses de alienação de bens imóveis do Município por doação, dizendo que, na falta de lei autorizativa, nula será a doação – e só nesta hipótese, não no de aquisição por doação!

Luis Roberto Barroso, Constituição da República Federativa Anotada, São Paulo, Saraiva, 1998, ao tratar do artigo 48, caput, Constituição da República, simétrico ao artigo 39 da LOM em comento, afirma:

"As matérias previstas neste artigo [art. 48, CRFB] são tratadas, normalmente, em leis ordinárias (art. 59, III)." (p. 156).

Também o cotejo literal entre o artigo 39, inciso VIII, com dispositivos I e XIV do artigo 9° da LOM permite concluir que se trata de norma de processo legislativo, norma que instrumentaliza a função legislativa, e não a função fiscalizadora do Legislativo florianopolitano.

Em último lanço de argumentação pela interpretação literal, quisesse o constituinte florianopolitano ter estatuído hipótese de controle prévio do legislativo em atos de aceite de doação com ou sem encargo quando donatário o Município, teria utilizado a mesma forma lingüística vertida no artigo 14, I, letra "a", da LOM, ao tratar, de verdade, da hipótese de controle do legislativo quando o Município for doador de imóveis.

b) tendo em conta o método teleológico, vemos que o dispositivo do artigo 39, VIII, simétrico, como dito, com os artigos 48 da CF e 39 da CESC, é norma pré-destinada a atender o processo normativo de produção de regras gerais e abstratas, e não a exigir autorização legislativa para práticas de atos do Executivo. Aliás, em verdade, as autorizações legislativas especiais são normas concretas e específicas, vertidas em decisão legislativa que apenas tem a forma de lei, mas que, em verdade, são atos administrativos de controle Legislativo sobre atos administrativos praticáveis pelo Executivo.

Assim, teleologicamente, finalisticamente legislar é prover em tese e em abstrato, e autorizar é prover em específico e em concreto – o primeiro verbo exterioriza função legislativa da Câmara, o segundo função fiscalizadora da Edilidade.

Por tanto, o resultado do método teleológico corrobora a tese concluída com a aplicação do método literal: o inciso VIII, do artigo 39, da LOM, não consagra hipótese de exigência de autorização legislativa específica da Câmara para aquisição, por doação, de imóvel pelo Município.

c) a aplicação do método sistemático deve se dar em dois níveis, concomitantemente: (i) a sistematicidade da própria LOM e a (ii) sistematicidade da ordem jurídica globalmente considerada, neste último será sistemático-comparativo, em virtude da exigência constitucional de simetria da ordenação municipal com o ordenado na Constituição Federal.

A sistemática da LOM revela que o Legislador constituinte florianopilitano, em nível de Constituição municipal, quis exaurir o regime jurídico dos bens públicos municipais - incluídas, neste regime, as normas que tratam de autorização legislativa para alienação de bens imóveis – nos artigos 12 a 16 da LOM, Capítulo IV, "Dos Bens Municipais". Nesse capítulo sequer há remissão ao artigo 39, VIII, da LOM, para eventual guarida à exegese da Procuradoria da Câmara Municipal.

No artigo 39 da LOM, todas as matérias nele [21] tratadas dizem respeito às competências legislativas do Município estatuídas no artigo 30 e seus incisos da Constituição da República. Esse artigo só pode ser lido na conexão sistemática com os artigos 53, I e II, 55 a 61, 74, II, III e V da LOM, que tratam do processo legislativo, do processo de produção de leis ordinárias e complementares por ação conjunta do Legislativo e Executivo municipais, como é curial em nosso sistema constitucional, até mesmo em decorrência do princípio da separação de poderes pré-ordenado no plano federal.

Por outro lado, é no artigo 40 da LOM [Capítulo II, Secção IV, da "Competência Exclusiva da Câmara"], que poderia também ter tratado o Constituinte florianopolitano de eventual autorização do Legislativo a ser dada ao Executivo toda vez que esse desejasse adquirir imóvel por doação, pela simples razão de o artigo 40 da LOM ser paralelo, simétrico aos artigos 49 da CF e 40 da CESC. No dispositivo 40 da LOM constam variegados atos de provimento concreto, não normativos, que dizem respeito à função propriamente fiscalizadora da Câmara, exemplo do que prescrevem os incisos VI e X ao versarem sobre autorização ao Prefeito para ausentar-se do Município e a regra de fiscalização de controle da Câmara sobre atos do Executivo, respectivamente. Assim, também é no artigo 49 da Constituição da República, especialmente em seu inciso XVII, onde se exige aprovação do Congresso Nacional para alienação ou concessão de terras públicas superiores a 2.500 hectares; e no artigo 40 da CESC, exige-se aprovação prévia da Assembléia Legislativa de proposta de empréstimo externo.

A interpretação sistemática corrobora a mesma tese alcançada com aplicação dos métodos literal e teleológico: o inciso VIII, do artigo 39, da LOM, não consagra hipótese de exigência de autorização legislativa da Câmara para aquisição, por doação, de imóvel pelo Município. Todavia revela ponto demais importante: nesta matéria houve silêncio eloqüente (Clémerson Cléve) do constituinte municipal, deixando de regrar a matéria de aquisição de bem imóvel por doação em nível constitucional para que fosse ela regrada por norma infraconstitucional, por força do próprio inciso VIII do artigo 39 da LOM, pois nenhuma outra norma da LOM estatui a conclusão a que chegou a Procuradoria da Câmara Municipal: que haverianulidade na doação objeto deste parecer por ausência de autorização legislativa específica "estatuída" no referido dispositivo.

d) em sede de interpretação especificamente constitucional, alguns princípios [22] devem ser observados, e chegaremos ao mesmo resultado da interpretação jurídica clássica:

- O princípio da "justeza" ou da conformidade funcional: "... tem em vista impedir, em sede de concretização da constituição, a alteração da repartição de funções constitucionalmente estabelecida. O seu alcance primeiro é este: o órgão (ou órgãos) encarregado da interpretação da lei constitucional não pode chegar a um resultado que subverta ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido (...). É um princípio importante (...) nas suas relações com o legislador e o governo (...)." [23] (sublinhamos!).

Ora, a exegese levada a efeito pela Procuradoria da Câmara de Florianópolis não se compadeceu deste princípio de interpretação da Constituição, pois subverteu o esquema organizatório estatuído na Lei Orgânica no que toca a relação Legislativo/Executivo, ao querer que a partir do inciso VIII, do artigo 39 da LOM, no qual se prescreveu regra de legiferação sobre disciplina legal a ser conferida ao tema "aquisição de imóveis por doação" – portanto regra de função legislativa desempenhável com o Executivo – se retire norma que determine o controle de função administrativa do Executivo pelo Legislativo, ao se praticar em prol do Município aceite de doação de bens imóveis – preceito que estabelece hipótese de controle, função fiscalizadora da Câmara sobre o Executivo.

- O princípio da unidade da constituição: "...quer significar que a constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições com suas normas. (...). Daí que o intérprete deve considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios." [24]

Ora, se como visto, no artigo 14, I, letra "a" da LOM, concreta, clara e expressamente, exige-se autorização legislativa para doação de imóvel pelo Município, no capítulo sobre "Bens Municipais", seria contraditório, antagônico ao Texto Constitucional municipal se entender que no artigo 39, VIII, tratante de competência legislativa do Município a ser desempenhada pela Câmara com o Prefeito, se estabeleceria agora a hipótese (por inferência, por construção, por larga ilação...) de exigência de autorização legislativa para o Município receber doação. O legislador é inteligente, quisesse tal disciplina a teria deixado a cargo expresso, claro e seguro do artigo 14 da LOM.

- o velho princípio da interpretação liberal, já destacado no início deste parecer, pelo qual garantias – separação de poderes – interpretam-se ampliativamente, e competências, poderes, restritivamente – controle limitante da ação do executivo -, dita a impropriedade da exegese levada a efeito pela Procuradoria da Câmara. Assim, o artigo 39, VIII, jamais poderia ser interpretado ampliativamente ao ponto de dele se extrair regra de controle sobre preceito em que se estabeleceu regra de legiferação.

56. Tendo em conta essas ponderações, podemos concluir:

a) o inciso VIII, do artigo 39 da LOM, consagra regra que apenas estabelece que a Câmara Municipal, através de processo legislativo ordinário, deverá aprovar projeto de lei que discipline o procedimento administrativo de aquisição de bens imóveis por doação, projeto que deverá ir à sanção ou ao veto do Prefeito Municipal;

b) nem o inciso VIII do artigo 39 da LOM, nem qualquer outra norma integrante de seu texto determinam que o Executivo, quando donatário o Município de bem público imóvel, sem ou com encargos, deva pedir autorização prévia ao Legislativo para efetivar o negócio jurídico de doação;

c) há única disciplina expressa na LOM sobre "doação de bem imóvel e autorização legislativa específica", é aquela em que o Município é o doador de bem público imóvel, com ou sem encargos, e para que o negócio jurídico seja válido deverá ser solicitado pelo Prefeito, previamente, anuência da Casa Legislativa, conforme artigo 14, I, letra "a", da LOM, matéria, de resto, já tratada infra-organicamente desde 1964 em Florianópolis, por força da Lei municipal ordinária 639/64. Lei, ao que tudo indica, recepcionada pela Lei Orgânica Municipal vigente [25].

e) a aplicação dos métodos tradicionais de interpretação jurídica e o manejo dos princípios de interpretação constitucional rechaçam qualquer manipulação exegética que deseje atribuir ao texto do inciso VIII do artigo 39 da LOM norma que ele não consagra: controle imediato, efetivo e atual do Legislativo sobre o Executivo municipal nas hipóteses de aquisição de bens públicos imóveis por doação, com ou sem encargos.

d) Se houvesse regra municipal expressa exigindo autorização legislativa específica para aceitação de doação de bem imóvel sem encargos ela seria inconstitucional

57. Esse tópico não é imprescindível ao deslinde da consulta, e nem iremos aqui aprofundá-lo como ele mereceria caso fosse necessário à conclusão do parecer. O tratamos como alerta do jurista, do professor, do advogado consultor aos homens das leis, aos feitores de normas pelos canais institucionais do Estado de Direito: os senhores parlamentares, especialmente os senhores parlamentares do legislativo de Florianópolis.

58. Entendemos, segundo o quanto exposto sobre o princípio da separação de poderes, que se lei ordinária municipal disciplinar o processo aquisitivo de bens imóveis por doação (inciso VIII, do artigo 39 da LOM), e exigir, autonomamente, sem regra prevista na Lei Orgânica florianopolitana, a anuência prévia do Legislativo solicitável pela Chefia do Executivo, ela será inconstitucional, nesta parte, por regular matéria sob reserva de constituição, por instituir controle político-parlamentar não por norma constitucional, mas por norma ordinária.

59. Todavia, entendemos que mesmo se houvesse previsão na Lei Orgânica desse controle do Legislativo sobre o Executivo, nesta específica matéria de doação de bens imóveis – com ou sem encargo ao Município -, a norma orgânica municipal seria inconstitucional em face da Constituição Federal, por violação a separação de poderes, eis que no plano federal não se encontra disposição constitucional similar autorizando esse controle do Legislativo federal sobre atos do Executivo central. Haveria malferimento à separação de poderes por construção de regra esdrúxula municipal, não simétrica à norma constitucional federal, segundo podemos inferir, especialmente, da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, exposta no paragráfo 21 deste parecer.

e) A doação se conformou às exigências jurídico-privadas e jurídico-públicas para sua realização, restando ato jurídico perfeito, eficaz e não desconstituível por nulidade ou revogação

60. O contrato de doação objeto deste parecer conformou-se a todas as exigências necessárias à sua legitimidade jurídica, à sua valia de direito, tanto as advindas do Direito Privado quanto as provenientes do Direito Público. Regras legais e princípios constitucionais foram observados para sua realização, não havendo qualquer tisna apta a cercear-lhe os efeitos na ordem do Direito, restando ato jurídico perfeito e acabado, extinto por consecução de seu objeto, por exaurimento de seus fins.

61. Vejamos as normas de Direito Privado acatadas pelo contrato de doação em comento:

a) os agentes envolvidos na qualidade de doador e de donatário são capazes, e aptos seus representantes legais para representarem as pessoas jurídicas privada e pública envolvidas no contrato – cumprimento do artigo 104, I, do Código Civil;

b) o objeto, doação pura e simples de bem imóvel ao Município de Florianópolis, é lícito, pois de propriedade do doador por justo título, possível, eis que estava na livre e desimpedida disposição pelo doador, e determinado, ante a mensuração de sua extenção e limites descritos na escritura pública que o levou a termo – cumprimento do artigo 104, inciso II, do CC;

c) a forma para realização do ato, escritura pública, exigida pelos artigos 108, 541 e 1.245 do Código Civil combinados com os artigos 167, inciso I, item 33 e 218 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), foi regular e eficazmente cumprida;

d) não foi preterida qualquer solenidade que o Direito Positivo, Municipal ou Nacional, considerasse essencial para sua validade, pois, como visto exaustivamente, o aceite da doação pura e simples não dependia de prévia anuência do legislativo de Florianópolis (não ocorrência do artigo 166, inciso V, do CC);

e) o Direito Positivo, Nacional ou Municipal, não declarou expressamente sua nulidade, nem lhe proibiu a prática sem cominação de sanção correspondente (não incidência do inciso VII, do artigo 166, do CC);

f) como afirma a escritura pública de doação, se verificou o cumprimento do artigo 548 do Código Civil, pois a Empresa Doadora, ao doar o objeto do contrato, não se desfez de todos os seus bens, nem quedou-se com renda insuficiente para sua subsistência empresarial;

g) também se respeitou o artigo 549 do Código Civil, pois mesmo os sócios da Empresa Pronta ao doarem o bem objeto deste parecer não excederam a parte a que poderiam dispor em testamento.

h) igualmente, houve acato ao artigo 555, do CC, pois a doação foi pura e simples, e não se poderia sequer cogitar de descumprimento de encargo, para fins revogatórios do contrato, assim como não se pode esperar "ingratidão" de pessoa jurídica de direito público interno.

62. As normas de direito público acatadas pelo contrato civil de doação pura e simples:

a) artigo 2º, letra "c", parágrafo único, letra "c", da Lei de Ação Popular (Lei 4.717/65), foi respeitado, pois do objeto do contrato de doação e sua consecução não importou em violação de lei, regulamento ou qualquer outro ato normativo, como exaustivamente demonstrado acima;

b) artigo 2º, letra "b", parágrafo único, letra "b", da Lei de Ação Popular (Lei 4.717/65), foi respeitado, pois a forma do ato não importou na omissão ou na inobservância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato;

c) tendo em conta as normas acima descritas, tanto as de direito público quanto as de direito privado, que compõem o bloco de legalidade a ditar a correspondência do contrato de doação ao princípio constitucional da juridicidade administrativa, vê-se que o ato é legítimo por que respeitou a legalidade administrativa (artigos 5º, II c/c 37, caput, da CR) ;

d) pelo fato de ter havido aceitação de doação pura e simples de bem imóvel, que passou a constituir arruamento da municipalidade, bem de uso comum do povo, sem quaisquer ônus ou encargo de qualquer natureza ao Município, vê-se que o aceite vantajoso da liberalidade atentou para os princípios da economicidade da despesa pública (artigo 70, caput, da CR), no que tange a gestão patrimonial do ente público;

e) também acatou o princípio da legitimidade prescrito no artigo 70, caput, da CR, eis que, como consta dos autos de processo legislativo n. 11.499/2005, houve regular e concorrida audiência pública e reivindicação da associação de bairro para nominar "Alameda Santa Mônica" o bem imóvel objeto da doação.

63. Tendo em conta a juridicidade, a perfectibilidade legal e constitucional do contrato de doação, e mais, o fato de ele ter se exaurido, pois a propriedade do bem doado já foi transferida regularmente ao Município donatário, já integra seu patrimônio, podemos dizer com Diogenes Gasparini, Direito Administrativo, obra citada, que se deu a extinção do ato administrativo por cumprimento de seus efeitos (p. 97): o aceite da doação. Houve execução do ato e alcance de seus objetivos, adquirir imóvel, através de doação sem encargo e sem ônus. Pode-se dizer, de forma mais perfeita, que houve extinção do contrato de doação por conclusão de seu objeto, por cumprimento de seus objetivos (p. 620 e 623/624).

64. Em conclusão deste tópico, as normas jurídicas pré-faladas vigentes ao tempo em que o contrato de doação se efetuou e seu cumpriu na inteireza de seu objeto e fins, fizeram-no, perante a ordem jurídica, ato jurídico perfeito (artigo 6º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil – Decreto-Lei 4.657/42, c/c artigo 5º, inciso XXXVI, da CR), protegido pelos princípios constitucionais da segurança jurídica e da legalidade administrativa.

Sobre o autor
Ruy Samuel Espíndola

Advogado publicista e sócio-gerente integrante da Espíndola e Valgas Advogados Associados, com sede em Florianópolis/SC, com militância nos Tribunais Superiores. Professor de Direito Constitucional desde 1994, sendo docente de pós-graduação lato sensu na Escola Superior de Magistratura do Estado de Santa Catarina e da Escola Superior de Advocacia da OAB/SC. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina (1996). Atual Membro Consultor da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB/Federal e Membro da Comissão de Direito Constitucional da Seccional da OAB de SC. Membro efetivo da Academia Catarinense de Direito Eleitoral, do Instituto Catarinense de Direito Administrativo e do Octagenário Instituto dos Advogados de Santa Catarina. Acadêmico vitalício da Academia Catarinense de Letras Jurídicas na cadeira de número 14, que tem como patrono o Advogado criminalista Acácio Bernardes. Autor da obra Conceito de Princípios Constitucionais (RT, 2 ed., 2002) e de inúmeros artigos em Direito Constitucional publicados em revistas especializadas, nacionais e estrangeiras. Conferencista nacional e internacional sobre temas jurídico-públicos. ruysamuel@hotmail.com, www.espindolaevalgas.com.br, www.facebook.com/ruysamuel. 55 48 3224-6739.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Doação de imóvel, sem encargo, a ente público: desnecessidade de anuência legislativa . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2872, 13 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/19074. Acesso em: 23 nov. 2024.

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