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Abuso no exercício do direito

Agenda 12/01/2014 às 16:53

Ruídos provocados por vizinhos. Perturbação do sossego. Acionamento da Policia Militar. Abuso do direito. Princípio da solidariedade que se impõe.

RELAtÓRIO

A sra. X, residente em edifício familiar, na zona sul de Belo Horizonte, encaminha-me documentação, solicitando manifestação sobre a possibilidade de ingressar em juízo com ação indenizatória, por dano moral, decorrente de fato ocorrido em janeiro/2013.

Narra que sempre teve relacionamento cordial e até mesmo amistoso nos edifícios em que já residiu.

Atualmente, foi a 1ª. moradora de seu prédio (há 9 anos) e lá tem grandes amizade, sendo alguns vizinhos verdadeiros irmãos. Sempre foi cumpridora de seus deveres de condômina e sempre procurou colaborar nas questões pertinentes ao Condomínio, notadamente nas elaborações de sua Convenção e do Regimento Interno.

Em muitas ocasiões de sua vida, teve noites indormes, motivadas por desentendimentos familiares, o que é fato normal da vida, por isso sempre relevou  a questão e sempre reagiu com elegância e  mesmo cristãmente.

Em relação a barulhos provocados por vizinhos, há anos vem tolerando-os, procurando adequar-se em um canto de seu apartamento, a fim de desenvolver suas atividades intelectuais.

Ocorreu que, em  JANEIRO/2013, já na 3ª.noite indorme, em virtude de ruídos provocados por vizinhos, teve um “surto”, um descontrole emocional, aumento da pressão arterial, e ela própria também passou a fazer barulhos, andando de sapatos de salto alto, abrindo  e fechando portas, com a aparelho de som em volume elevado, por volta das 3.30 horas da madrugada. Na verdade, confessa  a Interessada que teve vontade de “sumir no mundo”, com a roupa do corpo, para se ver livre dos ruídos e poder dormir, pois tinha sono e começava a sentir vertigens.  Seis meses antes, perdera irmão, sobrinho e cunhada, entes muito queridos, em acidente na estrada.

O casal do apartamento inferior, inquilinos de  quase 01 ano,  pessoas já bastante maduras, acionou a Polícia Militar, sendo que 02 policiais compareceram à residencia da Consulente. Teve o casal, ainda, a audácia de mentir, dizendo  aos policiais que não era a 1ª. vez que ela se portava daquela forma. Mais lúcidos foram esses que, ao perceberem que estavam diante de uma senhora distinta, de 64 anos de idade, mas passando por um grande estresse, conversaram, pediram que reduzisse o volume do som e se despediram.

Esta foi a 1ª. e única vez que a sra. X sofreu uma intervenção policial.

No edifício residem 24 famílas, sendo 22 condôminas, de níveis  educacional e ético elevados. Os inquilinos não atentaram para esse aspecto tão importante, quando se busca um lugar para viver (CONVIVER) na sociedade.

Documentos e declarações anexados comprovam que a Consulente é pessoa de inquestionável reputação e muito sociável. Sobre sua pessoa, relacionamento pessoal, hombridade, distinção e conduta profissional pessoas de renome, cuja palavra tem fé pública, declaram no melhor dos sentidos, o mesmo acontecendo com pessoas mais simples. À parte titulações acadêmicas, o  reconhecimento em sua área profissional,  ter sido dirigente de entidade espírita por quase 30 anos, ter a gratidão de seus filhos, a intervenção policial destoou completamente de tudo que construiu e envolve sua vida, por longos anos. Vários vizinhos mostraram-se incrédulos, o mesmo ocorrendo em seus ambientes profissional e religioso.

Por fim, trata-se de cidadã exemplar, de hábitos metódicos, cumpridora fiel de todas as normas jurídicas e éticas e que, residindo só, inteiramente voltada ao estudo e à escrita, guarda muito silêncio em seu apartamento.

Toda a documentação juntada demonstra a veracidade de tudo aqui relatado.


PARECER

Atribui-se aos árabes o aforismo : “ O parente mais próximo é o vizinho”; mas a própria Bíblia sagrada, ao se referir à amizade, em seus Provérbios assenta : “Mais vale o vizinho que está perto do que um irmão que está longe” (27.10), significando, pois, que deve reinar a solidariedade entre pessoas  que se CONVIVEM. As normas  jurídicas  foram elaboradas para disciplinar essa CONVIVÊNCIA.

O princípio da solidariedade é tão importante, no estado democrático de direito, que a Constituição da República de 1988 erigiu-o, entre outros, como fundamental à organização da sociedade,  em sentido bem amplo,“ipsis verbis”:

“Art. 3º  Constituem objetivos fundamentais da República Federal do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária”,

que, na lição de José Afonso da Silva, é  “sociedade livre, justa, fraterna e solidária” (Curso de direito constitucional positivo. S. Paulo: Malheiros, 1992, p. 131).

O legislador do Código Civil brasileiro de 2002 (Lei nº 10.406, de 10.1.2002), afastando-se da linha individualista dos Códigos posteriores ao Código Civil francês, estabeleceu como linha mestra o homem em sua convivência em sociedade; erigiu princípios básicos que compõem a ossatura de todos os institutos do Código.  Examinando detidamente seu corpo jurídico, ao longo dos anos de sua elaboração, nele temos o princípio da socialidade (pelo qual prevalece o valor coletivo), o da eticidade (valorização do ser humano, no qual a ética, a boa-fé, os bons costumes, etc, regem os elementos da licitude da conduta e se determina aos julgadores guiar-se por eles); o princípio da operatividade/concretude (que direciona as normas jurídicas à aplicação efetiva, real e rápida aos anseios do homem, pois, direito que não se realiza ou direito que tarda a vir é direito inexistente, é “não direito”). Enfim, assenta as normas diretrizes de uma sociedade justa e solidária.

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 O avanço maior deu-se com a positivação da teoria do Abuso no exercício do direito, caracterizado como ato ilícito, teoria que já se havia sedimentado amplamente na doutrina e na jurisprudência.

“ Também comete ato ilícito quem abusa de seu direito ao exercê-lo”  (art.187).

 O legislador de 2002 entendeu que devia incluir na categoria genérica da ilicitude, como espécie de ato ilícito, o abuso de direito, afastando a controvérsia reinante sobre a figura, demonstrando a relatividade dos direitos e não o absolutismo individual. Portanto, deve o exercício ser contido dentro dos limites de seu fim econômico ou social, da boa-fé, dos bons costumes.

Anteriormente ao atual Código Civil, já pontificava a doutrina : “Resumindo, podemos repetir que, do ponto de vista geral da antijuridicidade, o ato humano pode ser ilegal, ilícito ou excessivo. Ilegal, o realizado sem direito; ilícito, o de que resultou violação do direito alheio ou o prejuízo a outrem; excessivo, o que resultou do uso imoderado de prerrogativas jurídicas. Modalidade de ato ilícito, o abuso de direito, porém, com ele não se confunde, pois o abuso decorre do exercício de um direito: “é lícito na sua morfologia, mas não o é na sua gênese”. (LIMA, Hermes. Introdução à ciência do direito. 30ª. ed. R. Janeiro: Freitas Bastos, 1993, p. 92).

 “Cícero afirma, positivamente, que o direito deve ter um limite:   summum jus summa injuria” ( justiça excessiva torna-se injustiça). “O fundamento de seu pensar está na ideia moral da solidariedade humana, digamos, se é lícito exprimir por uma palavra moderna um sentimento antigo homines hominum causa esse generatos, ut ipsi  se, aliis alli prodesse possint” ( Os homens foram gerados por causa dos homens, para que possam ser úteis uns aos outros). (BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil dos estados unidos do Brasil. S.Paulo: Francisco Alves, 1919, V I, p. 424).

Quando o Código Civil determina, em seu artigo 1290, que o proprietário de nascente não poderá impedir ou desviar o curso natural das águas para prédios inferiores, além de preservar a função social da propriedade e dos recursos naturais, está aplicando o princípio da solidariedade. Igualmente ocorre pela proibição ao dono ou possuidor de prédio superior agravar, mediante realização de obras, a condição natural e anterior do dono ou possuidor do prédio inferior (art. 1288).

Dentro do histórico evolutivo do exercício regular do direito, PONTES DE MIRANDA enquadra-o  dentro de um processo dialético. A antiga máxima, dotada de absolutidade, (TESE), Qui iure suo utitur neminem laedit - quem usa de seu direito a ninguém prejudica - foi aquebrantada pela Sumum ius summa iniuria – excesso de justiça pode causar grande injustiça - (ANTÍTESE). A SÍNTESE deu-se ou com a inclusão do abuso do direito na classe dos atos ilícitos, ou pelo emprego de regra jurídica de inclusão de enunciado proibitivo (como ocorre no BGB, § 226, no qual o exercício é proibido se apenas tiver por fim  causar dano a outrem), ou pelo enunciado de pré-exclusão de contrariedade a direito (não constituindo ilícito o exercício regular; contrario sensu, o exercício irregular ou abuso do direito são atos contrários ao direito). (Cf. Tratado de direito privado. Parte Geral. Rio Janeiro: Borsoi, 1954, t. II, p. 291). (Sobre Abuso do Direito confira-se : Amarante, Aparecida. Excludentes de ilicitude civil. In: jusuol.com.br).

As características, não cumulativas, do exercício regular do direito,  no Brasil, consistem:

-  Exercício sem fim de causar dano a outrem, seja de ordem patrimonial ou moral;

-  Exercício que denota a existência de qualquer interesse legítimo;

-      Exercício com responsabilidade e moderação;

-    Exercício dentro da órbita do próprio direito, seja dentro do limite traçado pela lei, seja pelo não desvirtuamento de sua essência, observando os requisitos da finalidade econômica ou social, princípios da boa-fé e dos bons costumes.

Não apenas a lei estabelece os limites do exercício, mas ainda os costumes, a equidade, a ordem social, o espírito de justiça, a solidariedade social, etc. O conceito de equidade, hodiernamente, encerra a aplicação da lei conforme as circunstâncias especiais de cada caso, relativamente ao que for razoável e justo, considerando-se que o exercício rigoroso da lei tornála-ia injusta no caso concreto.

Condensando as ideias: o Código Civil atual eliminou qualquer dúvida  ao preceituar,   caracterizar como ato ilícito o abuso do direito. Além do excesso  do exercício expresso em lei, há excesso nos limites ditados pelos fins econômicos ou social, pela boa-fé, pelos bons-costumes.  Enfim, há abuso seja sob aspecto subjetivo ou objetivo, isto é, independentemente de existência de culpa, bastando haver desvio de sua finalidade; o animus nocendi não é requisito único.

O conceito de abuso do direito é formulado por AGUIAR DIAS como sendo:

“Todo ato que, autorizado em princípio, legalmente, se não conforme, ou em si mesmo ou pelo modo empregado, a essa limitação. Há, ninguém duvida, um direito de prejudicar. Mas para que se possa exercer, é preciso estar autorizado por interesse jurídico-social prevalente, em relação ao sujeito passivo da ação prejudicial”. (AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. R. Janeiro: Forense, 1983, v. II, p. 495). 

A doutrina do abuso do direito acha-se sintetizada pelo ilustre civilista BEVILÁQUA. Aponta a contribuição da Sociologia para a solução do problema. Se o direito tem por função manter em equilíbrio interesses sociais que se colidem, desvirtuará do seu destino, quando se exagerar, no seu exercício. (Op. Cit., p. 425).

2. Nem se argumente que se trata de caso de legítima defesa a atitude dos inquilinos. Por ser a noção de legítima defesa unitária, vale recorrermo-nos das disposições em codificações diversas. Nosso Código Penal (Decreto-Lei n. 2.848, de 1940, com a redação dada pela Lei n. 7.209, de 1984, modificadora da Parte Geral), traça suas linhas conceituais, in verbis:

“Art. 25- Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

No exercício da defesa, o estado de ânimo do agente é fator considerável, todavia, segundo a doutrina, a sua avaliação somente é feita em caso de excesso, donde se conclui: Quem excede voluntariamente, encontra-se fora dos limites de defesa. Quem excede involuntariamente, por erro determinado do caso, ou por erro de outra maneira inculpável (e é aqui que podem ser tomadas em exame as condições especiais subjetivas), entender-se-á considerado como em estado de defesa.

Pode ocorrer, ao contrário, que os limites são excedidos por imprudência, negligência e outros comportamentos análogos;  nesse caso, deve considerar-se como acontecido um fato culposo, penalmente incriminado, se o fato é previsto pela lei penal como delito culposo, e se considera, portanto, para todos os efeitos, fora dos limites da defesa. (Cf. D’AMELIO, Mariano et FINZI, Enrico. Codice civile. Firenze: Ed. G. Barbèra, 1943, v. III, p. 239)

 Na esfera cível, é suficiente haver, no excesso, negligência ou imprudência. (PONTES. Op. Cit., p.277). Nesse caso, haverá ilicitude, tanto assim é que poderá haver legítima defesa contra o excesso, mas legítima defesa contra legítima defesa não existe.

“A intensidade e a extensão da agressão, mais as circunstâncias do caso, é que delimitam a intensidade e a extensão (mais as circunstâncias de defesa) dos atos com que o agredido há de procurar excluir, no mundo fático, a agressão”. (PONTES. Op. Cit., p. 282)


CONCLUSÃO

A questão que se formula é: a atitude dos inquilinos, “exercendo um direito”, foi adequada ou excessiva e resolveu o problema?  Só podemos considerá-la excessiva, pois não houve moderação, razoabilidade, solidariedade. Não resolveu a crise emocional da Consulente, só fazendo gerar-lhe mais ansiedade, continuando a andar pela casa, tanto que, no dia seguinte, teve de buscar socorro cardiológico.

 Na sociedade atual, principalmente no direito de vizinhança, os conflitos não se resolvem “a ferro e fogo”. No caso, o bom senso aponta  como atitudes corretas o socorrer-se de outro ou outros vizinhos, já que a Consulente não é uma baderneira, é bastante conhecida no prédio, ou até mesmo avisar um de seus filhos, pois há cadastro deles na Portaria do edifício.

Respondendo a consulta formulada, entendo que cabe perfeitamente o pleito indenizatório, por dano moral, obeservado o prazo prescricional determinado pelo artigo nº.  art. 206, § 3º,V,  do Estatuto Civil.

Sobre a autora
Aparecida I. Amarante

Procuradora do Estado de Minas Gerais. Ex-professora-adjunta de Direito da UFMG. Doutora em Direito Civil. Escritora.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARANTE, Aparecida I.. Abuso no exercício do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3847, 12 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/26372. Acesso em: 2 nov. 2024.

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