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Parecer sobre a desestatização da Cedae

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Agenda 08/01/2019 às 13:40

A operação político-financeira perpetrada pela União, com o condicionamento do empréstimo de R$ 3,5 bilhões de reais à concretização do processo de desestatização da CEDAE, vai de encontro ao pacto federativo, e viola a harmonia e a autonomia que devem existir entre as comunidades políticas que compõem o Estado.

EMENTA. DESESTATIZAÇÃO DA CEDAE. ANTIJURIDICIDADE DO PROCEDIMENTO. VIOLAÇÃO AO PACTO FEDERATIVO E À MORALIDADE ADMINISTRATIVA. O condicionamento, pela União, do empréstimo federal de R$ 3,5 bilhões de reais à concretização do processo de desestatização da CEDAE, entidade financeira e economicamente saudável, vai de encontro ao pacto federativo, por violar a harmonia e a autonomia que devem existir entre as comunidades políticas que compõem o Estado brasileiro, bem como transgride o princípio da moralidade administrativa, na medida em que consubstancia verdadeira dilapidação dos bens e haveres da Administração Pública.

De igual sorte, a ausência de prévia manifestação dos municípios afetados com o processo de desestatização, que indubitavelmente partilham com o Estado do Rio de Janeiro do poder concedente e da titularidade do serviço de saneamento básico, reforça a violação ao princípio federativo.

O Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros decidiu, no dia 01 de fevereiro de 2017, submeter a esta Comissão de Direito Administrativo, para exame e elaboração de parecer, a Indicação nº 002/2017 de autoria do consócio Dr. Fernando Máximo de Almeida Pizarro Drummond, que tem por objeto a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos - CEDAE.

De início, justifica-se o maior lapso temporal para a feitura deste parecer em função da imprescindibilidade de análise da Lei Estadual nº 7.529/2017, que só veio a ser publicada no Diário Oficial em 08.03.2017.


1 – APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA

Em sua Indicação, alega o i. Dr. Fernando Máximo de Almeida Pizarro Drummond, verbis:

A privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) voltou a ser discutida como uma das soluções para a crise financeira do Estado do Rio de Janeiro. Em reunião com o presidente Michel Temer, o governador Luiz Fernando Pezão disse à GloboNews que aceita “em parte” a concessão, primeiro à União e depois à iniciativa privada.

A proposta é que a privatização da CEDAE, empresa tradicional fluminense, ocorra como contrapartida de auxílio financeiro para atender as emergências financeiras que sofre o Estado do Rio de Janeiro como sofrem os demais Estados e Municípios deste país.

Essa contrapartida é exclusiva e só se aplica ao Estado do Rio de Janeiro, está desalinhada com a tendência mundial onde as empresas que prestam serviços de água e esgoto são consideradas essenciais à saúde da população, portanto, são ou estão sendo estatizadas.

Assim, por se tratar de tema sensível, relevante e de interesse não só da população do Estado do Rio de Janeiro, mas da nação, é que se propõe esta indicação, para que após admitida quanto a sua pertinência seja encaminhada e distribuída para relatório e apreciação do Plenário.

Diante da referida Indicação, erguem-se, de plano, algumas questões e linhas de análise, quais sejam:

a) a CRFB/88 e a legislação ordinária dão viabilidade jurídica ao condicionamento do futuro empréstimo federal - R$3,5 bilhões de reais ao Estado do Rio de Janeiro - à alienação das ações da CEDAE para pagamento dessa transação?

b) Há amparo normativo para a realização da autorização de privatização da CEDAE sem a oitiva e manifestação prévia dos municípios diretamente envolvidos com a questão, tal como se fez no caso?


2 – PRÉ-COMPREENSÃO DO TEMA

Não podemos esquecer que toda interpretação realizada dentro do ordenamento jurídico põe em relevo a expressão discursiva de uma atividade intelectual, ou seja, a interpretação é o discurso do intérprete, formado tanto pelo significado dado pelo exegeta aquele objeto, como pelos argumentos usados para justificar a interpretação.

Assim, impõe-se ao parecerista, como formulador de opinião jurídica, enunciar de antemão a sua pré-compreensão sobre o tema, o que significa dizer, como destacado por BARROSO[1], explicitar o seu ponto de observação e os valores e fatores que influenciam sua argumentação, por dever de honestidade intelectual e por dever ético, tudo de forma a permitir que a apreciação e a crítica da fundamentação adotada seja realizada de uma maneira mais completa.

Afinado por este diapasão, desvelo o meu sentir idiossincrásico sobre a chamada privatização: a) perfilo-me aos que condenam o crescimento desmedido do Estado, contudo tenho que ele deve garantir o primado de igualdade entre os homens, devendo intervir na ordem econômica e social a fim de buscar tal desiderato, ainda que de forma subsidiária ou pela via do fomento; b) a privatização não pode ser vista como um fim em si mesmo, tampouco servir a propósitos individuais, políticos, corporativos ou partidários inconfessáveis e sub-reptícios.


3 - A HISTÓRIA DE FORMAÇÃO DA CEDAE E SUA MISSÃO

A partir de 1960, com a mudança da capital do país para Brasília, a cidade do Rio passou a ser o Estado da Guanabara, e, do outro lado da baía, Niterói era a capital do Estado do Rio de Janeiro. À época, eram duas as empresas de saneamento básico no Estado da Guanabara: a Empresa de Saneamento da Guanabara (ESAG), responsável pelos esgotos; e a Companhia Estadual de Águas da Guanabara (CEDAG), que prestava o serviço de abastecimento de água.

Já em 1975 houve a fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro, formando um só Estado-membro, o que implicou na integração das empresas dos dois antigos Estados, juntando ESAG, CEDAG e SANERJ (Companhia de Saneamento do Estado do Rio de Janeiro), esta última a responsável pelos serviços de água e esgotos do território fluminense. Essa foi a gênese da CEDAE, constituída em 01.08.1975.

A CEDAE, hoje, opera e mantém a captação, tratamento, adução, distribuição das redes de águas, além da coleta, transporte, tratamento e destino final dos esgotos gerados dos municípios conveniados do Estado do Rio de Janeiro (64 dos 92 municípios, com operações de abastecimento de água; 32 municípios com operações de esgotamento sanitário), tendo por missão institucional[2] “prestar serviços de referência em abastecimento de água, esgotamento sanitário e demais soluções em saneamento ambiental, de forma sustentável para o desenvolvimento sócio econômico e preservação do meio ambiente, com foco na rentabilidade e satisfação da sociedade, clientes e acionistas.”


4 – A CEDAE NA ESTRUTURA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA

  Ainda antes de adentrar na análise propriamente dita da “privatização da CEDAE”, insta esclarecer como está situada a organização administrativa do Estado brasileiro, em quaisquer de seus entes (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios), bem como as formas de prestação dos serviços públicos previstos no ordenamento jurídico pátrio, para, afinal, situar a CEDAE dentro dessa sistemática.

A organização administrativa do Estado se calca, mormente, em duas situações fundamentais, quais sejam a centralização e a descentralização.

Conforme escólio de CARVALHO FILHO[3], “Quando se fala em centralização, a ideia que o fato traz à tona é o desempenho direto das atividades públicas pelo Estado-Administração. A descentralização, de outro lado, importa sentido que tem correlação com o exercício de atividades de modo indireto”.  

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O serviço público centralizado é aquele prestado diretamente pela Administração – Administração Direta (União, Estados e Municípios), e o descentralizado é o repassado à Administração Indireta (autarquia, fundação, empresa pública, sociedade de economia mista), ao setor privado e também ao Terceiro Setor[4].

A CEDAE se constitui como sociedade de economia mista, com 99,9996% de suas ações ordinárias sob a titularidade do Estado do Rio de Janeiro, ou, noutras palavras, a CEDAE tem por objeto a prestação de serviços públicos econômicos descentralizados.

No tocante à descentralização dos serviços públicos, insta esclarecer que ela pode ser realizada por outorga ou por delegação (esta, adiante-se, é o caso em que se enquadra a CEDAE).

A outorga caracteriza a transferência da titularidade e execução da prestação de serviços públicos e atividades, através de lei, sendo que dita titularidade não pode sair das mãos da Administração, isto é, a outorga só pode ser dada à Administração Direta, e a parte da Administração Indireta constituída pelas pessoas jurídicas de direito público (autarquia e fundação pública), e, não, às sociedades de economia mista e às empresas públicas (pessoas jurídicas de direito privado).

Por outro lado, na delegação transfere-se só a execução dos serviços ou atividades, também por meio de lei. Esta transferência é feita para a Administração Indireta (autarquia, fundação pública, empresa pública, sociedade de economia mista e agências reguladoras). Há também a hipótese da delegação ser feita para particulares por meio de contrato, conforme previsão do art. 175 da CRFB/88, como exemplificam as concessionárias e permissionárias de serviço público. Pode-se ainda delegar por ato administrativo a particular; por meio de autorização.

Do exposto, tem-se que o Estado do Rio de Janeiro descentralizou os serviços públicos por meio de delegação à CEDAE (via edição de lei), entidade que integra a Administração Pública Indireta, constituída como sociedade de economia mista, com personalidade jurídica de direito privado.

A priori, não haveria que se falar em privatização da CEDAE, pois entidade privada ela já o é, mas, sim, tratando-se de empresa estatal, o termo mais indicado seria desestatização, tanto mais que o caso sob exame, como veremos, trata-se de venda de ações de empresa estatal ao setor privado, uma espécie do conceito amplo de privatização[5].

A desestatização, inclusive, é o termo disciplinado pelo direito brasileiro, desde os idos de 1990, com a Lei nº 8.031 (criou o Programa Nacional de Desestatização), revogada pela Lei nº 9.491/1997 (alterou os procedimentos relativos ao Programa Nacional de Desestatização).

  Assim, à luz da especificidade do caso - venda de ações de empresa estatal ao setor privado -, passa-se a adotar neste trabalho, de modo exclusivo, o termo desestatização.


5 – ESTUDO SOBRE A VIABILIDADE JURÍDICA DO CONDICIONAMENTO DO EMPRÉSTIMO FEDERAL À ALIENAÇÃO DAS AÇÕES DA CEDAE. DA AGRESSÃO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIAS DO PACTO FEDERATIVO E DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA

O processo de desestatização da CEDAE, publicamente defendido pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro e pelo Presidente da República Federativa do Brasil, encontraria sua justificação primeira na “crise financeira do Estado do Rio de Janeiro”, e iria ao encontro da consecução da solvabilidade estatal.

Em verdade, a desestatização foi idealizada a partir de exigências feitas pelos bancos públicos federais - Banco do Brasil - BB, Caixa Econômica Federal - CEF e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES -, sem embargo da ordenação direta da própria União por meio do Ministério da Fazenda, como uma garantia de pagamento à União pelo prometido empréstimo de R$ 3,5 bilhões de reais.

De fato, a Lei Estadual nº 7.529/2017, publicada no Diário Oficial em 08.03.2017, não deixa laivo de dúvida sobre essa regência da União, consubstanciando essa norma uma dupla autorização do Poder Legislativo ao Executivo Estadual: primeiro de oferecer, em garantia ao empréstimo federal de R$3,5 bilhões de reais, as ações da CEDAE de titularidade do Estado; depois, alienar essas ações ao mercado e utilizar os recursos resultantes dessa operação para a quitação do referido empréstimo.

Veja-se, nesse sentido, o teor dos dispositivos dessa Lei:

Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a alienar a totalidade das ações representativas do capital social da Companhia Estadual de Águas e Esgotos - CEDAE, inclusive quando importar transferência de controle, nos moldes estabelecidos na Lei Federal nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. 

Parágrafo único. As disposições da Lei Estadual nº 2.470, de 28 de novembro de 1995, não se aplicam à operação de que trata o caput.

Art. 2º Enquanto não efetivada a alienação de que trata o artigo 1º, fica o Poder Executivo autorizado a contratar operação de crédito no valor de até R$ 3,5 bilhões junto a instituições financeiras nacionais ou internacionais, organismos multilaterais e bilaterais de crédito, agências de fomento ou agência multilateral de garantia de financiamentos.

§ 1º. Fica o Poder Executivo autorizado a oferecer em garantia à instituição credora e/ou em contragarantia à União as ações de sua titularidade com o fim de viabilizar a obtenção de aval da União à operação de crédito de que trata o caput.

§ 2º - Os recursos resultantes da operação de crédito prevista no caput deverão ser prioritariamente utilizados no pagamento da folha dos servidores ativos, inativos e pensionistas.

Art. 3º O Poder Executivo terá o prazo de até 6 (seis) meses, prorrogáveis por igual período, para a contratação de instituições financeiras federais responsáveis pela avaliação e estruturação da operação de alienação das ações de que trata o art. 1º.

Art. 4º- Deverá ser garantida a tarifa social para os serviços de abastecimento de água e captação de esgoto para imóveis residenciais localizados nas áreas identificadas como de interesse social, nos termos do Decreto nº 25.438 de 21 de julho de 1999.

§ 1º A diferença entre tarifa social e a tarifa domiciliar padrão não poderá ser subsidiada pelo Estado do Rio Janeiro.

§ 2º - A tarifa social de que trata o caput deste artigo somente poderá ser extinta por lei.

§ 3º - A regulamentação da tarifa social de que trata o caput desse artigo dar-se-á por ato do Poder Executivo.

Art. 5º Os recursos resultantes da operação de alienação das ações representativas do capital social da Companhia Estadual de Águas e Esgotos - CEDAE serão obrigatoriamente utilizados para a quitação da operação de crédito de que trata o artigo 2º, não se aplicando o disposto no artigo 2º da Lei Estadual nº 2.470, de 28 de novembro de 1995.

Parágrafo único. Observado o disposto no artigo 5º, o saldo do resultado da alienação será destinado ao abatimento de dívidas, na seguinte ordem, observado o disposto no artigo 44 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000: I - dívidas refinanciadas com bancos federais garantidas pela União;  II - dívidas do Estado com a União.

Art. 6º Fica o Poder Executivo autorizado a promover as modificações orçamentárias que se fizerem necessárias ao cumprimento do disposto nesta Lei.

Art. 7º O Poder Executivo enviará à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro - ALERJ, em até 60 (sessenta) dias após assinatura da operação de crédito de que trata esta Lei, cópia assinada do instrumento, onde deverá constar as condições, prazo, juros, amortização, encargos, carência e forma de pagamento da operação de crédito de que trata o art. 2º.

Art. 8º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

  Confirma esse domínio, essa sujeição imposta pela União, a notícia veiculada no sítio eletrônico do próprio Estado do Rio de Janeiro, senão vejamos:

“O Governador Luiz Fernando Pezão sancionou, nesta quarta-feira (08.03.2017), a lei que autoriza a alienação das ações da Cedae, aprovada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) no dia 20 de fevereiro. A venda da empresa é uma das contrapartidas exigidas pelo Governo Federal para viabilizar um empréstimo de até R$ 3,5 bilhões para o Estado. Além disso, a previsão é de que em três anos, junto com outras medidas, a privatização assegure cerca de R$ 62 bilhões para os cofres do Estado, garantindo o reequilíbrio fiscal conforme prevê o Termo de Compromisso assinado com o Governo Federal.

Segundo a lei, a avaliação e a estruturação da operação de venda da Cedae devem ser definidas em seis meses, prazo prorrogável por mais seis. Nesse período, o processo será debatido com a sociedade, a prefeitura do Rio e os demais municípios.

 A possibilidade de alienação das ações da Cedae viabiliza um ajuste de mais de R$ 62 bilhões no Estado e confirma o esforço indiscutível do governo estadual na busca do equilíbrio das suas contas -, destacou o secretário da Casa Civil, Christino Áureo.

A lei determina também que os recursos resultantes da operação de crédito de até R$ 3,5 bilhões deverão ser usados prioritariamente para o pagamento da folha dos servidores ativos, inativos e pensionistas. Com o empréstimo, somado ao fluxo da arrecadação, o Governo espera restabelecer a normalidade do cronograma de pagamento.

 A tarifa social para os serviços de abastecimento de água e captação de esgoto para imóveis localizados nas áreas identificadas de interesse social deverá ser garantida e será regulamentada pelo Governo do Estado.

Os recursos resultantes da operação de alienação das ações serão obrigatoriamente utilizados para a quitação das operações de crédito. O saldo deverá ser destinado ao abatimento de dívidas refinanciadas com bancos federais garantidas pela União e para o pagamento de dívidas com a União.[6]

Pois bem, toda essa operação político-financeira, relativa ao primeiro passo para a desestatização da CEDAE, vai de encontro ao pacto federativo[7], a corromper em substância a harmonia e a autonomia que devem existir entre as comunidades políticas que compõem o Estado brasileiro, in casu, a do Estado do Rio de Janeiro em face da União, tudo a deslegitimar a formulação urdida por esta última.  

A União apodera-se de uma entidade estadual, travestindo esse domínio sob a figura de uma moeda de troca, ou seja, vincula o seu empréstimo à desestatização da CEDAE, o que não se amolda à Lei maior, bem como ao Decreto-Lei nº 200/1967, que preconiza, em seu artigo 6º, que as atividades da Administração Federal devem obedecer ao princípio fundamental da descentralização, isto é, colocá-la em prática no plano da Administração Federal para o das unidades federadas mediante transferências e repasses financeiros pela via, respectivamente, do estabelecimento de parceria com o Governo Federal ou ajustamento de convênios de natureza financeira[8]. 

Ademais, o próximo passo do processo de vassalagem do Estado do Rio de Janeiro já pode se antevisto, pois, consoante previsão no §3º e §4º do artigo 2º da Lei nº 9.491/1997 - Estatuto do Programa Nacional de Desestatização - o BNDES, “por solicitação” de Estado-membro, pode firmar ajuste para “supervisionar” o processo de desestatização de empresa controlada por unidade federada, prestadora de serviços públicos, sendo que a licitação para a outorga ou transferência da concessão do serviço a ser desestatizado poderá ser realizada na modalidade de leilão.

Ora, o atual Estado brasileiro não é unitário, ou seja, não tem e não pode ter o poder econômico e político de forma centralizada e insuscetível ao fortalecimento de seus Estados-membros, sendo que, conforme prevê o artigo 18 da CRFB/88, decorre do sistema federativo a autonomia na organização administrativa dos Estados federados.

Mas não é só, até mesmo sob o ponto de vista estritamente econômico-financeiro, erguem-se vozes abalizadas na sociedade as quais o Direito, sob a ótica do necessário exame da eficiência e da economicidade do iminente ato administrativo de alienação, pelo executivo, das ações da CEDAE, não pode dar de ombros, do que é exemplo a palavra do professor e economista da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Istvan Kasznar, proferida de modo exclusivo a este parecerista, em 14.02.2017:

“A CEDAE é uma empresa atuante em regime de monopólio de exploração do mercado fluminense de águas tratadas e esgotamento sanitário. Isto lhe confere um absoluto domínio de mercado, assegurado por lei.

Reestruturada e transformada em empresa mais competitiva e controladora de custos de produção, entre 2008/2013, a CEDAE passou a gerar rentabilidade. Isto a transformou em objeto de interesse de altos grupos de poder, gananciosos. No regime econômico e semi-capitalista de Estado vigente no Brasil, extremamente volátil, a privatização da CEDAE se tornou obsessão daqueles que querem convencer os cidadãos fluminenses de que essa é uma solução sine qua non para sanear o Estado do Rio de Janeiro. Não é, pelo contrário.

A CEDAE gera resultados financeiros, logo mais caixa e mais liquidez, ao Estado. Privatizá-la na bacia das águas econômicas, quando existe recessão no Brasil desde 2015, joga para sumamente baixo o valor presente líquido da empresa para lances de privatização. É vender um patrimônio público estadual, erigido a duríssimas penas, por um valor simbólico.

Dada a fragilidade institucional vigente, caso um grupo econômico se assenhore da CEDAE, corre-se o alto e evidente risco da população e a estrutura produtiva ficarem a mercê de preços crescentes para a água. Isto pode adicionar inviabilidade à produção fluminense. Por ser a água, bem como seu tratamento, um bem público de ordem estratégica e submissa à mudança climática global, os temores de qualquer sazonalidade podem justificar preços mais altos, a representar forte elemento inibidor para a sociedade e a economia fluminense.

Por essas razões, no momento, somos contra a privatização da CEDAE, nos moldes em que estão sendo configurados.”

Como bem realçado pelo economista Istvan Kasznar, em 2008 a CEDAE foi reestruturada e, a partir de então, tornou-se uma empresa mais competitiva e com geração de lucro, sendo que a autorização de alienação das ações da CEDAE, tal como conduzido o processo, além de ofender o princípio federativo, viola o princípio da moralidade administrativa, cristalizado no artigo 37 da CRFB/88, na medida em que consubstancia dilapidação dos bens e haveres da Administração Pública Indireta do Estado do Rio de Janeiro. Ademais, se consumado o ato, pelo Chefe do respectivo Poder Executivo, de garantia do empréstimo com as ações da CEDAE, isso por si só desafiará a aplicação dos artigos 10 e 11 da Lei nº 8.429/1992 - Lei de Improbidade Administrativa, além de constituir ato de gestão temerária.

De tudo o que até aqui exposto, tem-se que a Lei Estadual nº 7.529/2017 adentrou no ordenamento jurídico perpetrando agressões constitucionais  insanáveis, já tendo sido inclusive objeto de ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade pelos partidos políticos Rede Sustentabilidade e Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) junto ao Supremo Tribunal Federal.

Ditos partidos, a par de questionarem que, previamente a edição da Lei nº 7.529/2017, não houve qualquer discussão sobre a aptidão do novo regime para atender às necessidades de garantia da saúde e de preservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, também apontam violação aos princípios da razoabilidade, da moralidade administrativa e da responsabilidade fiscal. De igual sorte, afirmam que a autorização para a desestatização da CEDAE, votada em regime de urgência, não foi submetida à apreciação da Comissão de Saneamento Ambiental, o que iria de encontro à exigência prevista pelo Regimento Interno da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro - Alerj. 

Sobre o autor
Marcelo José das Neves

Mestre em Direito pela Universidade Cândido Mendes UCAM, Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UniRio. Graduado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro -UniRio. Pós-graduado em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas - FGV/RJ. Articulista e Especialista em Direito Administrativo. Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região TRT/RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Marcelo José. Parecer sobre a desestatização da Cedae. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5669, 8 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/71067. Acesso em: 24 nov. 2024.

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