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É possível a edição de portarias normativas pelo juiz da infância e da juventude

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Agenda 08/08/2008 às 00:00

SOBRE A PORTARIA COMO EXPRESSÃO DE ANSEIOS COMUNITÁRIOS

            Quanto a este item, data maxima venia, Excelência, permitir-me-ei registrar entendimento diferente. Se os anseios unânimes "da comunidade, do Ministério Público, do Conselho Tutelar e mesmo das crianças e adolescentes", de determinada localidade afrontarem ditames constitucionais especificados em diretrizes de Lei Federal como é o caso da Lei 8.069/90, eles não poderão ser atendidos.

            A Portaria Judicial, portanto, deve respeitar e referir peculiaridades locais [9], podendo até atender a anseios municipais, mas sempre e tão somente quando estes não contraditarem as diretrizes maiores mencionadas. Data venia, Excelência, entendo, inclusive, que o Magistrado não deve vocalizar apenas seus próprios anseios, em sentido estrito. Embora consulte sua consciência, sendo inevitável o subjetivismo inerente à sua formação – tema espinhoso na doutrina -, reporta-se à Lei Maior e aos usos e costumes em sentido mais amplo que o desejo da sua comunidade. Seu cargo não é político ou representativo, neste sentido. Na hipótese de uma comunidade em desajuste, em situação de anomia ou dominada pela emergência de lideranças em desvario, poderá tantas vezes ser necessário ao Magistrado atuar contra aqueles interesses anômalos.


SOBRE O DIREITO AO LAZER E A PROTEÇÃO INTEGRAL

            É sabido que o ordenamento jurídico estrutura-se como um sistema. Só assim examinando se o compreende, em visão panorâmica que identifica relações e parentescos necessários. Por evidente, também as normas componentes do ordenamento, quando individualmente tomadas, só podem ser bem compreendidas dentro de visão sistêmica. Tal deve ser a leitura de artigos, itens e parágrafos da própria Lei. Tal deve ser o entendimento da norma, a partir da relação de conexão, subordinação ou complementaridade que mantém com outras normas.

            Nenhuma norma ou artigo reina absoluta. Ela se inter-relaciona. Por isso é que, como reiteradamente têm se pronunciado os Tribunais superiores, "não existem direitos absolutos". Por isso é que o direito ao lazer, constitucionalmente garantido, na oportuna menção que faz o douto parquet, do Art. 227 da Carta Maior, somente subsistirá se atendidos seus iguais direitos à dignidade, vida, saúde, respeito, bem como se estiverem a salvo de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

            Não por outra razão, atribuiu o legislador ao Juiz da Infância e da Juventude a missão de disciplinar o ingresso de menores de 18 anos em estabelecimentos de lazer e diversões. Pretende-se que crianças e adolescentes tenham lazer, mesmo que indicado à sua faixa etária, desde que haja segurança, respeito e ausência de negligência em relação a sua proteção integral.


SOBRE A ATUAÇÃO DA AUTORIDADE JUDICIÁRIA DIANTE DE ESPETÁCULO RECOMENDADO A MENORES

            Sob novas venias, parece-me que a proteção integral exigiria mais que a mera verificação quanto à adequação do espetáculo à sua faixa etária. Ao classificar um filme, o Ministério da Justiça não se pronuncia sobre as condições das salas de exibição. Estas demandam outras verificações, do Corpo de Bombeiros, da municipalidade, bem como do Poder Judiciário. Logo, se vê que a recomendação do conteúdo do espetáculo é apenas um dos itens ligados ao tema. Não se pode dispensar a atuação subsidiária de outros órgãos.

            Para exemplificar, digamos que um filme infantil seja exibido em cinema situado em prédio sabidamente condenado, sem que tenha havido providência da autoridade municipal. Ou pensemos em show infantil realizado em ginásio no qual que sejam duvidosas as condições de segurança. Outro exemplo é o de cinema que esteja recebendo adolescentes uniformizados, em horário escolar. É óbvio que, nestes casos, a Autoridade Judiciária precisará atuar. E, isso, embora muitas vezes até aconteça a partir de provocação paterna, poderá ocorrer independente dos genitores, estejam ou não acompanhados os adolescentes.


SOBRE A POSSÍVEL NECESSIDADE DE ALVARÁ SEMANAL PARA CINEMAS E TEATROS

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            Tentando consolidar o raciocínio de ser absurda a Portaria, diz o parquet que, da forma em que se colocam tais questões na Portaria, cinemas e teatros demandariam Alvará semanal do Juízo. Escuso-me pela assertiva mas, a ilação não é razoável.

            Cinemas são estabelecimentos regidos por normas próprias, instalados em caráter de permanência e sujeitos a rígida fiscalização municipal, exibindo filmes indicados conforme faixa etária da clientela, através de norma federal de reconhecida seriedade. Tal realidade não impede, entretanto, que os cinemas estejam sujeitos às fiscalizações do Juízo da Infância. Como anteriormente explicitamos, a classificação indicativa não exclui a atuação do Poder Judiciário, em prol dos direitos infanto-juvenis, inclusive com a possibilidade de exigência de Alvará Judicial.

            Entretanto, por analogia, não parece aplicável a hipótese de necessidade de Alvará semanal, data venia. Também merecem classificação indicativa por faixa etária jogos de computador e diversões eletrônicas. São produtos industriais, como o é o espetáculo cinematográfico. Tal característica, que impede improvisos e alterações sobre o produto acabado, torna confiável, a princípio, a classificação indicativa, dispensando-se, portanto, a necessidade, neste particular, de Alvará para cada produto.

            A intervenção do Juízo para inibir o acesso de menores aos produtos de que aqui se trata, quando houver eventual divergência quanto à classificação do Ministério da Justiça, não se fará, portanto, pela via do Alvará. Deverá ser instaurado procedimento próprio.

            Logo, o Alvará aqui referido apenas poderá tratar de aspectos complementares, como por exemplo, vedação de ingresso com uniformes escolares, verificações de segurança, manutenção dos arquivos necessários em face da recente Portaria do Ministério da Justiça (autorizações dos responsáveis), etc. Sendo assim, não seria necessário ‘Alvará semanal’.


SOBRE O PODER FAMILIAR

            Entende, o Ministério Público, que o Poder familiar está sendo vilipendiado, diminuído ou invadido pelas determinações da Portaria.

            Data maxima venia, não parece existir plenitude no exercício do poder familiar. Há temperos. Por exemplo, a classificação de filmes do Ministério da Justiça permite o acesso de adolescentes acompanhados de genitores ou responsáveis formalmente autorizados a filmes indicados a faixa superior à sua idade. Exclui da prerrogativa, entretanto, a faixa de filmes indicados para maiores de 18 anos. Ou seja, impõe um limite claro à discricionariedade do poder familiar.

            Isso porque trata-se de um poder CONDICIONADO AO EXERCÍCIO DE UM DEVER. Ou, como afirma a Promotora da Infância e da Juventude, Dr. PATRÍCIA PIMENTEL DE OLIVEIRA CHAMBERS RAMOS, é "muito mais do que um bônus, a autoridade parental é um ônus". [10] Por isso é que pode ser destituído ou suspenso o poder familiar. É evidente que tal medida extrema e radical só ocorre em casos clamorosos. Pais, em princípio, amam e tratam bem e direcionam corretamente sua prole.

            Entretanto, com o segundo pós-guerra, e mais acentuadamente a partir dos anos 60, erodiu-se o modelo de família nuclear, fundado na autoridade paterna. Acelerou-se a revolução nos costumes, com o novo papel da mulher, acrescido da maior aceitação social de novas formas de relacionamento sexual e familiar, com a relativização da predominância masculina.

            Nos países latinos tal experiência defrontou-se com um estreitamento dos horizontes políticos, estrangulando as liberdades democráticas. Aquelas demandas sociais represadas confundiram-se com os movimentos de redemocratização. Vitoriosos estes, encontram aquelas espaço de crescimento, agora potencializado pelos efeitos da globalização e pela revolução midiática.

            Logo, aqueles anseios sociais, potencializados, multiplicaram-se exponencialmente. Tais pleitos não eram reprimidos, pois qualquer reparo era inibido, como manifestação antidemocrática. Na verdade, ressalvados os excessos, cautelas honestas e precauções fundadas foram injustamente taxadas de reacionárias. Neste contexto, jovens de ontem, reprimidos pelo autoritarismo político e familiar, freqüentemente tornaram-se os pais de hoje, em dúvida sobre os reais limites dos seus deveres, tornando-se permissivos.

            O comovente depoimento da atriz Irene Ravache em recente edição da revista feminina Marie Claire, confirma o que aqui se diz. Conhecida por seu engajamento político e militância feminista, no contexto em que examinava à repórter sobre o drama da dependência química do seu filho, a atriz relembra criticamente a educação que proporcionou, em que a liberaridade e mitigação da autoridade se confundiram com avançada pedagogia democrática. Disse a artista:

            "Primeiro, eu era muito insegura. Em vez de seguir a intuição, eu seguia o modelo vigente, que era o de não avançar muito no espaço. A gente não queria ouvir a palavra disciplina. Essa palavra soava horrorosa aos ouvidos de quem viveu o regime militar. A intuição mostrava outra coisa, mas eu queria ser o máximo como mãe, amiga dos filhos, avançada. Eu não fiz bem esse papel, fui mal escalada, vou ficar devendo." [11]

            Ressalve-se, no caso, a retomada de consciência e a coragem para enfrentar a batalha da recuperação do filho. Mas bem se vê que, em muitos casos, "devolveu-se a plenitude do poder familiar", a genitores já agora carentes de referências. O modelo patriarcal antigo não mais se mostra adequado. Da situação de uma espécie de anomia neste campo, posições como a da mencionada atriz fazem ver a possibilidade de um novo modelo que privilegie não o autoritarismo, mas a indispensável autoridade.

            Não é tarefa fácil, já que as escolas padecem da mesma falta de parâmetros, que, no limite, levam a que professores sejam agredidos por alunos em sala de aula. A educação dos jovens, com acesso irrestrito - para bem e para mal - às intermináveis opções de informação dadas pela internet e outras mídias, demanda novos paradigmas.

            Por oportuno, reivindicarei aqui novo trecho esclarecedor do já citado estudo de Stuart Mill sobre a liberdade. Em capítulo memorável combate a então vigente supremacia do pátrio poder sobre os direitos de educação devidos aos filhos. Faz ali a defesa da relativização do pátrio poder e da liberdade de seu exercício em face dos direitos maiores do infante, aos quais devia o Estado proteger. Daí parte para a incandescente defesa de que aos pais se obrigue a matrícula escolar de seus filhos. Nesse contexto prepara o terreno para o seu discurso com a seguinte frase:

            "É no caso de filhos que noções de liberdade mal aplicadas são um verdadeiro obstáculo ao cumprimento pelo Estado de suas obrigações". [12]

            Portanto, a defesa da plenitude irrestrita do poder familiar pode, muitas vezes, acabar sendo a mera apologia da tirania que subtrai direitos.

            Se permitir a ousadia, Excelência, qual deveria ser o papel do Juiz da Infância e da Juventude neste contexto? Substituir-se aos genitores? Parece evidente que não. Entretanto, como tenho aprendido acompanhando a jurisdição de Vossa Excelência, por muito penosa que seja a dificuldade de tal missão, deveria, orientado pelas diretrizes constitucionais, pelo princípio da precaução e pela impossibilidade de consentir nas lacunas, normativas ou institucionais, atuar firmemente em suporte ao poder familiar legítimo e consciente.

            E tal atuação, muitas vezes se configurará na forma da edição de Portarias Normativas.


SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DA PORTARIA JUDICIAL E O PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL.

            Para garantia da eficácia da lei, permitindo um ambiente de segurança jurídica, respeita-se no direito pátrio, o princípio da presunção de conhecimento universal da norma posta. Tal conhecimento ficto, entretanto, não dispensa a necessidade da máxima publicidade da lei.

            Dentre os vários papéis que a Portaria Judicial pode cumprir, um dos mais importantes é o de divulgação de lei existente, cujo conhecimento amplo se considera relevante naquela jurisdição. Maior eficácia alcançará a norma, quanto maior for a sua publicidade. Melhor a compreensão pública a seu respeito, certamente maior o grau de adesão à sua teleologia.

            Data venia, ao dizer que "a não observância do disposto nesta Portaria sujeita o infrator às sanções previstas na Lei nº 8.069/90 e demais leis aqui citadas" não cremos que Vossa Excelência estará incorrendo em inconstitucionalidade ou excesso. Além do alerta conseqüente, em beneficio dos destinatários da ordem, quanto às sanções das leis mencionadas, deixa-se evidenciada a possibilidade de punição à luz do Art. 249 do ECA.

            Por sinal, embora haja divergência doutrinária na interpretação do referido artigo, somo no entendimento da corrente que verifica existirem, na verdade, duas determinações. A primeira parte do Art. 249 é endereçada aos detentores do poder familiar, quando descumprem os deveres que lhes são pertinentes. A parte final é endereçada à coletividade, quando desatende determinação da autoridade judiciária ou do Conselho Tutelar.

            Tal é o entendimento de TARCÍSIO JOSE MARTINS COSTA e de VALTER KENJI ISHIDA [13]

            Dada a relevância dos direitos tutelados, parece não só correto, como indispensável, que prevaleça tal lúcida interpretação. Trazer os deveres impostos pelas entidades mencionadas ao mesmo patamar de gravidade que se atribui ao poder familiar é garantia da eficácia necessária de tais deveres.

            Não seria razoável que, atribuindo o legislador responsabilidades ao Conselho Tutelar, e mesmo à Autoridade Judiciária, não estipulasse a sanção por descumprimento de suas determinações, fazendo necessário o recurso a outro diploma do ordenamento, inclusive, no ilustrado entendimento do Promotor de Justiça, criminalizando tal conduta. Que, entretanto, parece-me que melhor se resolve administrativamente. Ora, onde, em todo o Estatuto, tratou o legislador de tal tema, a não ser exatamente no Art. 249?

            Logo, data venia, não descumprirá Vossa Excelência qualquer princípio de direito, nem incorrerá em inconstitucionalidade ao editar a portaria em questão. Reitere-se que a portaria, via de regra, não se limita a reproduzir a lei, mas a dar-lhe a minúcia necessária à sua aplicação. Relembremos o constitucionalista italiano MASSIMO SEVERO GIANNINI:

            "Não é necessário que a norma de lei contenha todo o procedimento e regule todos os elementos do provimento, pois, para alguns atos do procedimento estatuído e para alguns elementos do provimento pode subsistir discricionariedade". [14]

            Desta citação o eminente constitucionalista José Afonso da Silva conclui que "isso quer dizer que os elementos essenciais da providência impositiva ao de constar da lei", ou seja, a lei será sucinta, vindo a minúcia por norma própria.

            Notar que, sendo diferentes os conceitos de ‘legalidade’ e ‘reserva de lei’, temos que o Juiz Menorista edita portaria normativa amparado na legalidade, e também por não ser obstado por reserva de lei. Nos temas da infância, a combinação do Art. 72 [15] do ECA com o Art. 3º, excluem a reserva de lei, admitindo ‘outras obrigações’, além das previstas no ECA, bem como a asseguração ‘por lei ou por outros meios’ na garantia dos direitos em questão.

            E tudo o que aqui se diz é harmônico com a diretriz dada por mandamento constitucional (Art. 227), instituidor de direito fundamental, portanto, de aplicação imediata.

Sobre o autor
Denilson Cardoso de Araújo

Serventuário de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Escritor. Palestrante.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Denilson Cardoso. É possível a edição de portarias normativas pelo juiz da infância e da juventude. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1864, 8 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16864. Acesso em: 23 dez. 2024.

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